quarta-feira, 19 de abril de 2017

Prelúdio da Nona Prole



O grupo começava a queixar-se da trilha estreita e perigosa na qual Ophelia os indicava prosseguir. Albion cortava as cortinas de cipós, trepadeiras e raízes que insistiam em crescer ao redor de tudo. Todos notaram que a caminhada era lenta e cansativa. O suor lhes molhava o rosto e os mosquitos aproveitavam-se da invasão suculenta de sangue não-orc.


A luz que se expandia do lampejo divino afastava a escuridão provocada pelo refúgio oco de espessas copas de árvores e uma cúpula de vegetais e espinhos que cobria tudo e fazia com que as trilhas ficassem ainda mais difíceis de serem notadas.

- Devemos parar por alguns minutos. Tenho dificuldade de encontrar o caminho certo, preciso pensar um pouco - revelou Ophelia.


Sethos repousou o lampejo no meio de todos e notou que a luz pouco se intensificava. O clérigo do deus-sol estava acostumado com aquela reação, mesmo sabendo que sua luz divina era mais poderosa do que a de outros conjuradores. Aquilo significava a presença de uma Prole Sombria. Ele podia notar os nuances da sombra perscrutadora tentando romper o esplendor de seus raios de sol. Recomendou que o grupo fosse breve, pois não era seguro permanecer no mesmo lugar por muito tempo.


Albion sentou-se na única pedra presente no lugar. Todos os demais se sentaram num chão de gavinhas e raízes pouco agradáveis, exceto Ophelia, que preferiu ficar de pé analisando os arredores e o próprio Alamut, pois é uma esfera de luz flutuante. O guerreiro permanecia tolerante ao peso de seu ofício temporário: abrir passagem pelo matagal insistente à sua frente, enxugou as gotas de suor que deslizavam sob sua face.


Alamut notou o desgaste físico de seus heróis tentando, em vão, neutralizar o incômodo que aquela selva incrustada em pedra lhes fornecia. Flutuou até Ophelia e perguntou:

- Você está perdida, não é.

- Não sou uma boa rastreadora. Estou fazendo o que posso, tentando forçar a minha memória, mas essa escuridão não facilita. Na minha terra há grandes florestas, algumas tão fechadas quanto esta, mas nunca nos perdemos. Simplesmente olhamos para o céu e nos deparamos com um dos vulcões de minha deusa. Reconhecemos cada um, por isso, sempre sabemos onde é  o norte.

- A bênção de sua deusa a ilumina aqui, nessa masmorra, tão distante de suas terras. Você está fazendo um ótimo trabalho.

- Phoebe é uma deusa que merecia mais devotos. Especialmente entre os humanos. Ela ergueu a voz contra o próprio pai para oferecer a estes a evolução e a reencarnação através do fogo divino. Minha missão é difundir sua religião nas terras ermas. Sou uma abençoada da fênix.

- Não foi mera coincidência encontrá-la aqui, no meio de nosso caminho. Foi vontade divina.


Ophelia assentiu com a cabeça, satisfeita com a observação. Virou-se para o grupo e em tom mais elevado revelou:

- Os orcs vivem em algum lugar dessa caverna, protegidos por essa cúpula de vegetais. Eu e meus seguidores nos deparamos, certa vez, com um líder religioso deles. Um xamã, talvez. Lembro-me agora que ele portava o símbolo de duas luas em foice, entrecortadas por garras.

- O símbolo de Yunna! - indagou Sethos, surpreso com a revelação.

- Lunna? Esta não é a deusa dos licantropos? - perguntou Aensell.

- E da lua… e das maldições. - completou Sethos.

- É uma inimiga da sua religião, Sethos? - perguntou Alamut.

- Costumava ser, antes da aparição da Rainha de Jade. Agora é uma deusa em redenção, esperando que os deuses tenham compaixão dela. Eu não sei se lhe tenho pena ou ódio. Selloth e Yunna têm uma relação… complicada.

- Talvez seja uma deusa que mereça ser ouvida - intrometeu-se Jade e sua mania de reconciliação.

- Sinceramente, não sei como lidar com culto à ela. É uma deusa de múltiplas faces. Por vezes é caridosa e aliada, em outras vingativa e selvagem. - explicou Sethos.

- Temos bons argumentadores entre nós e, até onde sei, a diplomacia sempre é a melhor arma - replicou Jade.

- A diplomacia é a melhor arma até onde a paciência do inimigo mostra-se valorosa - discordou Albion, segurando sua alabarda com firmeza.

- Seja qual for a nossa decisão, devemos nos lembrar que lidamos com orcs. Qualquer teoria nos mostraria que as porcentagens de sucesso diminuem com a presença dessas criaturas - Aensell concluiu, imerso em sua mania de racionalização.

- Não devemos simplesmente encontrá-los e dar cabo de suas vidas sem saber quais são as motivações destes - argumentou Jade - eles podem estar cegos devido aos seus dogmas, mas não demorarão a notar que temos um inimigo em comum e que uma aliança seria mais proveitosa do que a eliminação de um pelo outro.

- Eu concordo - falou Sethos lembrando-se da antiga união entre Selloth e Yunna.

- Farei o que vocês ousarem fazer. Não vou estragar a estratégia do grupo, mas ficarei com alabarda em mãos até onde achar que for preciso. - disse Albion.

- Os orcs foram responsáveis pela matança de muitos de meus aliados aqui - acrescentou Ophelia - será difícil encará-los sem impor minha justiça sobre eles, mas irei seguir a vontade de vocês, pois não farei guerra em um lugar que se deseja paz.

- As porcentagens seriam bem maiores se conseguíssemos nos aliar aos orcs - concordou Aensell.

- Então devemos continuar por esse caminho - indicou Ophelia, como se repentinamente soubesse que lugar seria o certo.

- Então, vamos continuar… - Albion tomou grande fôlego antes de levantar-se e abriu caminho pela selva cavernosa.


Eis que, em algum lugar distante daquele ponto, um meio-orc contemplava a antiga entrada para um templo de Yunna. Cobertas pela selva, as runas que ainda eram visíveis estavam desgastadas no abandonado santuário da deusa-lua. A muito tempo os orcs abandonaram a fé na deusa e isso angustiava aquele contemplador.




É Thurgag, irmão de Körum, antigo líder da tribo orc dessa masmorra. Thurgag entrou na luta contra a gigantesca criatura monstruosa de quatro cabeças e a viu arrancar, sem dificuldade, a cabeça de seu irmão. Tomou a liderança ali mesmo e exigiu que sua tribo abandonasse o combate. Foi essa, então, a primeira vez que os Nazksasha - a tribo orc que venerava a lua - se viram obrigados a abandonar uma luta. Aquela decisão marcou Thurgag como um líder covarde. Muitos orcs dizem preferir ter morrido na luta do que adiar o sofrimento, mas Thurgag tenta liderá-los com a sabedoria do sobrevivente e, por isso, estava ele agora em frente ao esquecido templo de Yunna.


Horas atrás ele adentrara aquele templo em busca de vestígios, talvez, alguma resposta que facilitaria sua luta contra a criatura invasora. Encontrou tarde demais.
Eram estátuas, esmagadas pela corrosão do tempo, cobertas por uma lona de raízes e trepadeiras. Tão esmigalhadas que tornou-se difícil reconhecer o que cada estátua representou um dia. Encontrou uma parede desmoronada, marcada por runas muito antigas e impossíveis de serem identificadas por ele. Nenhum orc, nem mesmo seu outro irmão Ron’gar - o xamã da tribo - seria capaz de decifrar aqueles símbolos. A deusa-lua não poderia ajudar sua tribo.


Sem sucesso, pôs-se a pensar em outra forma de enfrentar a besta, até que uma dupla de orcs chegou ao seu encontro.

- Thurgag, irmão, temos notícias sobre os outros invasores. - falou um dos orcs.

- Deveriam entregar essas notícias à Ron’gar, foi ele quem os mandou se sacrificar numa luta desnecessária contra esses inimigos.

- Ron’gar é sábio. Ele sabe como os orcs devem agir. Precisávamos saber que tipo de ameaça poderíamos enfrentar.

- E então?

- Eles são fortes. Muito fortes - revelou o segundo orc.

- Podemos pôr em prática o plano de Ron’gar - acrescentou o primeiro orc.

- Qual seria o plano?

- Jogá-los contra a criatura, para que estes a enfrentem e a enfraqueçam. Não acreditamos que eles sejam capazes de derrotá-la, mas, eles podem nos dar alguma chance de vitória.

- Como vocês sobreviveram a eles? - perguntou Thurgag.

- Eles… eles nos deixaram ir. - respondeu o primeiro orc, envergonhado.

- Vocês fugiram, então.

- Nenhuma sacerdotisa foi trazida. Falhamos. Não poderemos usá-las na nossa luta. Não havia porque lutar. - explicou o segundo orc.


Thurgag concordou. Concordou inteiramente com a desculpa.

- Quem são os invasores?

- São quatro. Eles se aliaram à paladina da deusa do fogo. Há entre eles um poderoso guerreiro empalador. O seguidor de um deus estrangeiro, capaz de invocar colunas de chamas. Uma sacerdotisa da deusa da cura mais do que eficiente e um bruxo capaz de invocar o poder do trovão e do raio. Nenhum de nossos trolls sobreviveu ao ataque. Todos morreram em poucos minutos!

- Fale-me sobre o bruxo.

- Ele não só rivalizou com os poderes de Ron’gar, como nos pareceu superior. Não parecia seguir um deus.

- O que ele carregava?

- Ele tinha um cajado de fogo eterno! - revelou o primeiro orc depois de pensar por algum tempo.

- E carregava consigo anotações. Um tomo cheio de pergaminhos. - completou o segundo.

- E quanto à sacerdotisa de Amaryllis?

- De quem?

- Da deusa da cura…

- Oh sim, ela! Não carregava armas, assim como as outras. Se manteve longe da luta e curou os ferimentos de seus aliados com muita efetividade.

- As sacerdotisas de Amaryllis evitam confronto, não é mesmo?

- Sim, irmão. Elas evitam. Tentamos trazer algumas delas conosco e tudo o que elas fizeram foi… orar… - explicou o segundo orc.

- Ótimo! - contentou-se Thurgag.

- Não me parece ótimo, irmão. São fracas e estúpidas. Não lutam, só morrem!

- É exatamente o que precisamos por agora, irmão. - deduziu Thurgag.


A dupla de orcs se entreolhou duvidosa, sem entender o que se passava com seu líder.

- Vocês dois, reúnam outros cinco de nossos irmãos. Não comuniquem nada a Ron’gar - exigiu Thurgag.

- Mas, irmão…

- Ron’gar, meu irmão é o mais sábio de nossa tribo, mas ele possui a sabedoria dos orcs, talvez, não seja isso que precisemos agora. Façam isso… ele teve sua chance, devo tentar algo agora.


A dupla de orcs demorou para concordar, mas, enfim, seguiu as ordens de Thurgag. Menos de uma hora depois, Thurgag e outros sete orcs engalfinhavam-se na selva cavernosa em busca de algo…

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