segunda-feira, 9 de outubro de 2017

Cronologia da Quarta Guerra da Era


1. Sazancros é palco da decisão definitiva de guerra entre os mortais e as hordas trôpegas;
2. Phoebe reencarna sob o aspecto físico e maduro da filha de Ophellia;
3. Phoebe convoca os povos em terra e deuses mortais para a guerra da era;
4. Os últimos dragões metálicos são recrutados;
5. Os povos mortais se reúnem em Sazancros para marchar contra a Cidade de Carne;
6. Os elfos declaram desavença para com os humanos e o uso exagerado da magia arcana. Carmine, yeshua da vingança necessária e senhora do fogo, é a porta voz dos elfos;
7. Os povos da Quarta Era marcham contra a Cidade de Carne;
8. Lorde Albion e Lady Magdalen consumam o casamento;
9. Dá-se início à Quarta Guerra da Era;
10. Os Arautos da Esperança adentram a Cidade de Carne;
11. Aensell é derrotado e consumido pela Cidade de Carne;
12. Os nove colossos são despertados pela Cidade de Carne;
13. A Ordem Arcana de Mordae entra em contato com a Corte Élfica;
14. Phoebe se sacrifica para tornar-se uma com Ophellia e desaparece;
15. Os elfos despertam Argalad e Argaladiel, os anjos de pedra;
16. Mordae e os elfos entram no embate;
17. Lorde Albion conhece a história de Bethril e Lady Magdalen reconhece ser portador do último vestígio de essência de Splendor;
18. Tiamat aparece;
19. Lorde Albion liberta a Dragocracia da prisão de pedra;
20. A Dragocracia enfrenta Tiamat;
21. Os colossos são derrotados pela aliança élfica;
22. Os Lordes da Cidadela de Sangue aparecem pela primeira vez;
23. Os Arautos da Esperança adentram o Abismo;
24. Acheron sacrifica Amaryllis;
25. Saulot renasce;
26. Saulot cria o portal que interliga o Abismo e Draganoth;
27. Hela d’Helm termina de escrever o 14º livro vermelho;
28. Lorde Splendor renasce sob o aspecto do Santo Fectos;
29. Saulot é selado;
30. Lorde Albion manda executar a Dragocracia. Garyx é o único sobrevivente.

Cavaleiros de Azran se reúnem para a Guerra da Era
Os primeiros indícios das Hordas Trôpegas
Os povos da Quarta Era contra as Hordas Trôpegas
Brighitte e sua montaria investindo contra as Hordas Trôpegas
Os Cavaleiros Eólicos contra o Exército Orc

Os licantropos de Yunnah investem contra os servos de Selloth
O inferno é invocado pela Cidade de Carne

A inevitável derrota dos povos da Quarta Era
Os nove colossos são despertados


A Corte Élfica se alia aos povos da Quarta Era

Os nove colossos são despertados como Mortalhas. Os elfos e os arcanos de Mordae se aliam aos Arautos da Esperança
A Quarta Guerra da Era está longe de acabar
Freya lidera a luta dos mortais contra orcs


Arcanjos élficos



O Povo da Quarta Era auxiliados por eidolons Élficos
A Ordem Arcana e a luta contra a Cidade de Carne
Os Guerreiros da Outrora
A derradeira investida

A última cena de uma Guerra da Era

quinta-feira, 31 de agosto de 2017

Sobre os povos mortais...

 
Os povos da Guerra da Era

           Era uma noite muito mais noite quando Freya matou a prole sombria que tinha forma de morcego e encerrou o combate das tribos do urso, lobo e águia contra os canibais da pirâmide de Ankhashadalûr e foi coroada líder da aliança. Os bárbaros de Chattur’gah reuniram seus arsenais e marcharam para Sazancross, sem titubear, ao pedido dela e todos perceberam que aquela havia sido a decisão certa pois, enquanto abandonavam o lar ancestral viram as sombras cobrirem a floresta de profanação. Freya havia sonhado com um pássaro de fogo e a tribo da águia acatou isso como uma dádiva de gente escolhida, enquanto a tribo do lobo, leal a seus comparsas, prometeram derramar sangue na maior das guerras.

            Zhor Drakhar havia profetizado algo bem anteriormente à marcha para a cidade do fogo. “Veem as eternas chamas em seus pedestais? Elas brilharão forte uma vez mais! Os líderes devem estar com suas armas em mãos e conceber a vontade de Hefasto, exatamente como escrito está nas pedras do deus vulcânico”. O anão de chumbo e fogo apenas confiou no êxito daqueles que um dia o libertaram e estes não falharam. As armas dos líderes anões golpearam as chamas eternas quando estas fervilharam anunciando o começo da maior das guerras. Machado, martelo e picareta se uniram e, unânimes, cederam as muralhas anãs e se apossaram das caravelas de madeira e aço, tomando caminho para a terra do fogo.

            Uma vez mais, depois de três séculos, os oráculos saíram de suas torres no deserto e sentiram as dunas nos pés durante a caminhada para a capital Mênfis, onde chegaram ao mesmo tempo, os seis, perante o trono da esfinge e divulgaram suas visões idênticas. Sethos reforçou as premonições contando sobre o mal denominado mortalha, tão escuro quanto o deserto da rainha dos chacais e sua palavra foi ouvida, pois o imortal havia transcendido corpo e espírito peregrinando pela escuridão sem jamais abandonar a fé no deus sol e, por isso, era digno de ser chamado de um dos mais sábios. Os nômades do deserto iniciaram a jornada atravessando os espelhos planares, criados a muito tempo pelos magos de sal.

            Os vassalos de Bahamut abandonaram o estreito quando os magos de Mordae ameaçaram criar a cúpula arcana usando os limites do anel de montanhas como fronteira da proteção. Eles derrubaram pinheiros e ergueram construções, lutaram arduamente contra os yeths, sabendo que ali nunca seria um lar. Esperaram pelo chamado da guerra que havia sido profetizada pelo deus dragão e esse aviso veio com Torkstone, livre da prisão de pedra, vindo da nevasca além. Os servos do dragão de prata já estavam preparados para uma longa andança e para a maior das guerras. Marcharam, também, para a terra do fogo.

            Gwyneth, por muito tempo, foi uma águia planando num céu solitário e cinzento. Ela observou as florestas se definharem sabendo que suas magias não serviriam para restaurar a vida nelas. A elfa, então, se deparou com as oito linhas perfeitas e organizadas que formavam o exército de seus familiares, marchando com armas iluminadas e lideradas pelos anjos de auréola pulsante. A canção das harpas élficas mantinha o perigo das sombras distante. O conselho dos patriarcas chegou a distintas decisões e apenas três dos sete grandes mantinham-se unidos às tropas, mas, de qualquer forma, Gwyneth ficou satisfeita pois, um único patriarca tem a força de um deus. Reuniu-se ao exército em direção a maior das guerras.

            Lorde Irun sonhou a premonição do pássaro de fogo pela terceira vez na vida. A primeira destas havia revelado a ele que quando, enfim, a terceira fosse apresentada, ele chegaria ao fim de seu reinado. Acordou suado e ofegante, mas satisfeito. Estava velho e havia passado por muito mais do que um espírito mundano poderia aguentar. Sempre quis morrer lutando, por isso, ficou agradecido com o fato de que seu último sonho o levasse à guerra. A última grande guerra da sua vida. As flâmulas esmeraldas foram mais uma vez hasteadas e os guerreiros da planície sem fim abandonaram o ofício de trabalhadores e voltaram a marchar em direção àquilo no qual eles nasceram e foram treinados a fazer. Anthrahaxx, o dragão de escamas metálicas, seguiu o grupo pela metade do tempo, em seguida, separou-se no intuito de concluir sua última missão antes da guerra. Apenas Lorde Irun soube o que era e, você, leitor, apenas suspeita o que seja.

...mas isso é história para outras anotações.


            Os seis exércitos se reuniram sob a terra vulcânica de Sazancross. Ao longe os heróis puderam contemplar a última resistência dos povos mortais borrar a terra e o céu de esperança. As garras e as presas dos bárbaros, o chumbo e o fogo dos anões, as visões e a sabedoria dos nômades do deserto, a lealdade e resistência dos vassalos de Bahamut, a beleza e perfeição dos exércitos élficos e as flâmulas esmeraldas, símbolo da valentia humana, drapejando pelos ares do único lugar ainda seguro do mundo. Aquelas são as almas que carregam o último resquício da existência de um deus de esplendor e que antecipam o final da Quarta Era.

domingo, 27 de agosto de 2017

Aventuras anônimas X

A aliança veio. A cidade de carne abandonou a capital dos anjos de pedra, deixando para trás somente os destroços de uma nova ruína, por cima de uma antiga.

Vieram primeiros os mercenários, pagos para averiguar os recorrentes perigos deixados pela hecatombe. Depois vieram os soldados e, enfim, os trabalhadores braçais. Eles ergueram as colunas e as paredes de mármore e granito, arrastaram as pedras que formavam o antigo pátio, usaram foice para rasgar a vestimenta de carne que cobria tudo e os cadáveres mutilados que eram tão comuns quanto os destroços.

Encontraram, então, Aldebaran e Arafat. Vivos. Eles foram empilhados juntos com tantos corpos e mal conseguiram tomar fôlego quando enfim se acordaram e sentiram o peso de dezenas de corpos sobre si.

- Arafat! Você está vivo?

Aldebaran foi o primeiro a erguer-se. Ele avistou o braço emoldurado pelas carcomidas placas de adamante pertencentes ao aliado. Segurou-a firme e tirou um Arafat atônito, caolho e frio da sepultura.

 - E agora, amigo?

Perguntou Aldebaran recostando-se na montanha de cadáveres.

Arafat ergueu o braço mordiscado e apontou para o horizonte longínquo.

- Foi para ali que a cidade de carne marchou.

Arafat assentiu.

- Entendi.

Ficaram parados por tempo incontável, até que o guerreiro de cicatrizes pôs-se a desmanchar a pilha de corpos.

- Você não vai desistir daquela cabeça, não é?

Arafat sequer respondeu. Continuou o árduo ofício. Um minuto depois Aldebaran o ajudou.

A dupla viajou para Draganathor, junto com a cabeça de Hidro, contornando a cidade de carne e se instalando na Torre da Dragocracia junto a outros heróis, esperando o maior dos confrontos.

***

Algum tempo após a catástrofe, um viajante vestido com uma velha túnica chegou à Cidadela de Ferro.

- Não se pode apenas visitar o barão. Não é assim que funciona, viajante – respondeu o taverneiro da estalagem na qual ele havia se instalado – sinto muito pelo seu braço, mas se nosso regente ajudasse cada visitante aleijado, teríamos um reinado cheio de implantes mecânicos.

Aquilo não foi o bastante para convencer o viajante. Ele comeu como se fosse a última alimentação. Tentou dormir, mas cedeu à insônia. A luz amarelada do luar invadia o quarto da estalagem, facilitado pela janela escancarada.

Hildegrim estava diferente. Mantinha o braço esquerdo amputado enquanto o lado direito de seu corpo estava em carne viva, incluindo o rosto, onde uma órbita necromântica inquietava-se em sua face. Toda sua pele ardia. Ele havia sido, mesmo durante poucos segundos, parte daquela mortalha. O cocheiro, agora incapaz de exercer sua profissão, passou aquela noite pensando se a sua vida não pertencia àquela cidade feita de carne. À Ivny.

Mal amanheceu e suas últimas moedas foram jogadas sobre o balcão da taverna.

- Ele vai até o barão – comentou um dos hospedados ao vê-lo saindo da estalagem – pobre pessoa. Não tem mais ao quê se segurar à vida.

Eram longas e amplas as escadarias de metal enferrujado que os levava aos portões mecânicos. Mesmo com apenas um dos ouvidos funcionando em bom estado, Hildegrim pôde ouvir o eterno tique-taque de engrenagens e polias que formavam a estrutura da cidadela. O ar pesado era amarronzado, uma imensa engrenagem girava na velocidade de um ponteiro longo de relógio fazendo elevar uma quantidade considerável de jaulas imersas no vapor de fumaça cinzenta. Aquele lugar, de alguma forma, estava vivo, funcionando, e sabia que ele estava ali.

Era isso que Hildegrim queria. Chegou a um enorme portão incrustado de peças mecânicas móveis e livrou-se da túnica, mostrando-se como o ser monstruoso que havia se tornado. Não muito diferente de uma cadavérica criatura da cidade de carne.

Os portões se abriram e Hildegrim nunca mais foi visto.

Ele, talvez, tenha sido o primeiro ser vivo ainda formado de carne que descobriu que o barão da máscara de ferro queria, contraditoriamente às opiniões do informante da estalagem, criar um reinado repleto de implantes mecânicos.
***

Somente alguém com força descomunal poderia remover a imensa parede que havia desabado sobre Koku durante a luta na cidade dos anjos de pedra. O pequeno garoto macaco manteve-se desacordado durante muito tempo e, quando enfim acordou, deparou-se com sua sina: morrer esmagado, sozinho e esquecido.

Até que aquele excêntrico viajante o encontrou.

- Mas o quê? – percebeu o viajante com cara de símio – tem alguém vivo aí?

Koku não respondeu. Não tinha forças para elevar a voz.

O viajante desavisado esticou o longo braço, alcançou o garoto macaco e o tirou, num único puxão, da sina mortal.

- Tá vivo, garoto?  - pôs-se o salvador a cutuca-lo com curiosidade.

Assim como Koku, o viajante era um símio. Se avolumava nos cotovelos, joelhos e pescoço, a pelagem típica dos macacos. O garoto nem sabia que existia seres como ele. O homem macaco soube que o garoto era forte e que iria sobreviver.

- É o seguinte, nanico: eu libertei você. Agora você deve me seguir até que eu te exija um serviço. Se for bem sucedido nisso, você estará livre para correr o mundo como bem quer. São minhas regras, entendeu?
Koku assentiu com um tímido e silencioso menear de cabeça.

- Ótimo! – o homem macaco o ergueu do chão e colocou na carruagem que Koku logo reconheceria com o antigo veículo de Hildegrim – mas, primeiro, darei um jeito nesses seus hematomas.

O homem macaco nunca se apresentou. Nunca revelou o próprio nome à Koku. O garoto macaco logo abandonou, também, o próprio nome e apenas se referenciava ao seu salvador como Mestre Símio.

***

Ninguém soube o que aconteceu com Golias, o meio gigante, embora mais tarde ele tenha aparecido, quase sorrateiramente, na estalagem do Dragão Uivante, onde se juntou aos heróis na luta contra a verdadeira cidade de carne.

O meio tempo entre esses episódios da jornada do arqueiro... é desconhecido.

sábado, 26 de agosto de 2017

Aventuras Anônimas IX

***

- Ei, garota, eu sei que você ainda pode se controlar, vamos lá, pelo menos tenta – Aldebaran gritava em meio à cidade de carne.

Ivny agora era a carne. Sua existência incrustada em uma coluna de pele, músculos e ossos sangrentos.

- Vamos, vampirinha, não me faz usar minhas preciosas contra você.

As lâminas irromperam em chamas ardentes.

- Incrível! Que poder magnífico! – comentou Hidro, a cabeça falante – tão poderoso é aquele que possui o Necronomicon que ele criou toda essa... coisa! – o rosto voltado para o cárcere mutilado, emoldurando todos os alicerces.

O gnomo estava mais focado na própria cobiça do que no perigo de se afogar em sangue e morte. À sua disposição estava Arafat, segurando-o com a indelicadeza de guerreiro bruto.

- Sua cabeça estúpida! Como pode invejar esse inferno? – interrompeu o guerreiro de fogo.

- Conhecimento é lei, meu caro Aldebaran. Mesmo para uma cabeça sem corpo.

- Eu vou destruir essa coisa, depois rachar o seu crânio, Hidro, nem que para isso eu tenha que deter Arafat e morra tentando fazê-lo! Estou lhe avisando!

- Não será preciso, idiota. Nós iremos deter essa coisa juntos. Eu não virei uma cabeça falante para se transformar no servo de um deus-lich.
Arafat assentiu e se esforçou para esboçar um sorriso entre as cicatrizes de seu rosto esfacelado.

Aldebaran deu um passo a frente e resvalou as lâminas de fogo uma na outra, provocando faíscas mais ardentes do que a do metal comum, puxou o fôlego e soprou como um dragão faria ao enxamear a arena com fogo arrasador.
A língua flamejante transformou-se em um véu de chamas e lambeu o pilar de carne.

Ivny estremeceu. Era dor. Olhou para os responsáveis. Um painel cinzento de vítimas.

- Não tem mais jeito, não é, garota? Mas, não se preocupe, Aldebaran dará um fim ao seu sofrimento! – o guerreiro de fogo ergueu uma das lâminas, feito uma tocha.

Ivny entregou-se ao frenesi. A montanha de corpos respondeu aos seus anseios. O pilar de carne se desfez e um braço gigante, cheio de dentes e ossos pontiagudos, varreu sua fronte.

Aldebaran saltou a tempo de esquivar-se, mas Arafat foi surpreendido pelo encontrão, ainda sem a espada empunhada. Aldebaran cravou uma das espadas flamejantes no gigante de carne e abriu o ferimento com a segunda. O sangue ferveu e a carne cauterizou, fazendo subir um cheiro de morte apodrecido. Arafat usava as manoplas da sua armadura de adamante para rachar crânios ou arrancá-los dos meio-corpos que estavam enterrados no rio de cadáveres.

O ar, então, se tornou repentinamente mais frio e lascas de gelo protuberantes se erguerem do chão e do pilar de carne. Arafat abraçou o braço gigante e o arrancou com demasiado esforço. O sangue congelado parecia pedaços de vidro vermelho quando o guerreiro de cicatrizes o jogou contra o pátio e este se estilhaçou.

Montado em uma dezena de cadáveres famintos, Aldebaran encontrava o caminho pelas vísceras do segundo braço gigante. Fumaça seguida de cinzas flutuaram do ferimento causado pelas lâminas flamejantes. Os mortos-vivos incrustados na massa de carne derreteram e ficaram encharcados de chamas e bolhas até que finalmente explodiram numa borbulha só.

- Vamos, vampirinha, eu sei que isso não é nem metade do que você pode fazer. Faça eu me arrepender de estar gostando dessa peleja.


Então, as aberrações mais delirantes sorveram pela cidade de carne. Corpos partidos, com intestinos arrancados, mandíbulas abertas como quelíceras, salivando fios de sangue derramados feito teias de aranha. Ossos e músculos atrofiados as faziam andar trôpegas. Famintas. O terror se alastrou no combate, mas Aldebaran e Arafat eram guerreiros experientes e, apesar de não terem visto coisa mais bizarra do que aquilo, sustentaram seus espíritos enclausurados no corpo. Os andantes gritaram um som estridente de agonia, como o de mil vítimas de pescoço quebrado e lançaram-se numa investida suicida. Costa a costa, eles giraram suas espadas num dueto de corpos que somente combatentes que haviam lutando muitas guerras juntos poderiam realizar com tal perfeição a ponto de ambos tornarem-se um só vórtice que fazia chover naquele mundo os resíduos da morte.


E mais mortos saíam do chão, desta vez com a pele derretida, lodosa como limo, com superfícies inteiras varridas pelas pústulas. Os braços eram tentáculos de carne que estrangulavam e chicoteavam como armas mortais. Puxava-os ao encontro da boca carcomida de dentes afiados e salivavam doença. Naquele dia, Aldebaran e Arafat não conseguiram contar suas vítimas. Arafat nunca havia feito essa matemática. Aldebaran, no entanto, parou no cento e doze e, foi nessa hora que ele desacreditou na vitória, pois cravou-se na montanha de cadáveres já vencidos, ossos pontiagudos de coloração negra e vítrea. Eles cresceram feito veias pulsantes e saltaram para a fora dos corpos mutilados na forma de milhares de presas. Os cadáveres passaram a morder tudo que encontravam pela frente, principalmente, a eles mesmos. Um devorando o outro até se transformarem em uma única criatura feita de cabeças, torsos e membros trespassados por lanças negras.

Os heróis, encharcados de sangue a ponto de serem irreconhecíveis, eram apenas feitos de espada e órbitas oculares ainda brilhando vívidas, porém tênues. Eles se entreolharam como se fosse aquela a última vez e a cena tornou-se lamentosa para qualquer um que ainda acreditasse na vitória deles. A massa única de mortos apenas se arrastava, fechando o círculo enquanto tinham a carne partida pelos golpes dos guerreiros.


As lanças negras eram tão fortes e inquebráveis que romperam a armadura de adamante de Arafat. Três destas trespassaram o corpo do herói de muitas cicatrizes e o delírio vagou por sua consciência ao ponto de quase desacordá-lo, mas Arafat entregou-se a uma fúria incontrolável de combate. Gritou, como nunca tinha gritado antes, era como o rugido de um leão. A boca tanto se escancarou que a pele que a cobria se rasgou, como uma costura forçada. As cicatrizes romperam-se em explosões de sangue. Durante a segunda saraivada de lanças negras, seu único olho bom foi sulcado até o interior do crânio.

Os tentáculos seguraram os braços e o torso de Aldebaran. Por dezenas de vezes ele os cortou e transformou em pele derretida, mas, enfim, o guerreiro das lâminas de fogo foi vencido. Os tentáculos tanto forçaram o corpo de Aldebaran que, em meio aos gemidos trêmulos de fome da mortalha de cadáveres, pôde-se ouvir o som de seu braço direito se deslocando. A massa de mortos-vivos o ergueu e forçou sua coluna até que o herói gritasse guiado pela dor lancinante de ter o corpo dobrado no ângulo de um arco longo.

Mas nenhum morreu. A mortalha ainda não queria isso.

Ivny, rainha daquele reino de horror permaneceu austera, incrustada numa parede de carne que se abria como as pétalas de uma rosa demoníaca. Ela mantinha os olhos vermelhos de frenesi. Sugou o ar em sua volta e um frio cortante como o de Nevaska surgiu no lugar. Os poros se dilataram e muitos tornaram-se furúnculos enquanto eram preenchidos pelo sangue que circulava em seus hóspedes para, finalmente, explodirem e o líquido vermelho evaporar sendo guiado até a boca faminta da vampira.

- IVNY!

Alguém interrompeu a alimentação.

Era Hildegram, o aleijado.

- Se é isto que você se tornou! Quero ser sua parte! – o cocheiro abriu os braços e caiu de joelhos, lamentando enquanto envolto de sangue e lágrimas – Você me tirou a vida a muito tempo. Sou parte sua, mestra! Faça-me sentir dor se for preciso, mas deixe-me perto de você!

Os olhos da mortalha se encheram de piedade. Ela caminhou até Hildegrim. As pétalas de carne se tornaram asas feitas de pele, flutuando envolta do ar frio. As lanças negras criaram um caminho para ela e, pelo minuto seguinte, o desfile de uma rainha trajando o vestido traçado pela morte debruçou-se sobre a arena até alcançar o aleijado. Foi como um abraço doloroso. Hildegrim não pôde evitar gritar. A boca de Ivny escancarou-se, partindo a mandíbula, abrindo do pescoço até os seios, como uma única boca cravada de presas vampíricas, preparada para devorá-lo vivo.

Koku saiu de seu esconderijo e lançou as sementes.

Eram sementes envoltas de fogo, catadas do templo dos Quatro que agora estava destruído e envolto de carne, assim como todo o resto. O garoto macaco soprou as sementes e os deuses elementais concederam o milagre. Elas se desmanchavam em chamas e pareciam prontas para explodir. Foi isso que elas fizeram, assim que foram arremessadas certeiramente na boca bizarra da mortalha.

Quando Ivny as sentiu, derretendo seu interior, largou Hildegrim. Ele foi arremessado como uma bola de sangue até os confins do terror. As sementes explodiram. Eram seis. Lanças de fogo trespassavam as vísceras da mortalha e encontravam uma fuga pelos poros, em cada estouro. A aberração gritou dolorosamente e toda a cidade de carne estremeceu.

Isso aconteceu por apenas meio minuto, mas foi o suficiente para Aldebaran e Arafat se livrarem, mesmo mutilados.

- O coração dela é um cristal verde! – alertou Koku – vocês vão encontrá-lo no estômago! Eu o vi enquanto as sementes criavam buracos no corpo dela!

Aldebaran armou-se com uma única espada flamejante, já que seu braço direito estava quebrado, e investiu contra a mortalha sôfrega, numa linha oscilante, pois estava tão trôpego quanto os mortos que ele havia eliminado. A lâmina ígnea foi cravada no peito da criatura que, logo, descobriu qual era a intenção do herói.

Ao invés de impedi-lo, cravou as presas no pescoço de Aldebaran, num abraço de morte que deixava o corpo do guerreiro cada segundo mais pálido.
Aldebaran fraquejou até ajoelhar-se, sem forças. Desmaiou enfraquecido. A lâmina não havia terminado o serviço.

Arafat agarrou o corpo de Aldebaran e o arrancou daquele lugar. A espada larga do guerreiro de cicatrizes cravou no mesmo ferimento que o aliado havia começado. Rompeu a carne até enxergar o brilho esverdeado contido no estômago da criatura, então, percebeu que seu braço se enterrava na carne da mortalha, como se estivesse sendo engolido vivo. Arafat sentiu as presas internas de Ivny morderem o braço que ele empunhava a espada, desprezando sua armadura de adamante. O guerreiro não tinha forças para se livrar daquilo e também não podia evitar que o corpo da vampira se regenerasse a ponto de enclausurar novamente o coração e pôr um fim ao fracassável combate.

Já prestes a ceder à mortalha sanguessuga, Arafat usou seu único braço livre para se armar com a cabeça de Hidro.

- O gelo não funciona contra essa criatura, idiota! Nós vamos morrer! – ralhou a cabeça.

Sem aviso prévio, Arafat enterrou a cabeça de Hidro nas vísceras da mortalha. As fuças se afogando em sangue que se misturava à saliva do gnomo.
Hidro sentiu a gema espinhosa lhe cortar os lábios. Abocanhou. Arafat o tirou das vísceras da criatura para, enfim, desmaiar sem forças.

A cabeça do gnomo bochechou o coração de Ivny na boca. Ajeitou-o entre os dentes e mordeu até estilhaçá-lo!

Ivny sentiu a monstruosidade devorar sua existência a ponto mordiscar a si mesma. Como uma serpente que devora o próprio rabo.

Hidro cuspiu os restos da gema espinhosa e riu sadicamente.

A mortalha, aos poucos, abandonava os alicerces de Zarast.


***

sexta-feira, 25 de agosto de 2017

Aventuras anônimas VIII

Nem mesmo quando os primeiros humanos pisaram em Zarast, encontraram a cidade em tamanha ruína como a daquela noite em que Ivny fez sua última caça. Séculos atrás, quando a linhagem dos conquistadores humanos foi humilhada e exilada da própria terra natal pelos dragões, o pai de todos encontrou refúgio nas ruínas de uma antiga cidade devorada pelo tempo. Esta era Zarast.

Sabe-se lá o quê guardava as ruínas onde os anjos de pedra foram erguidos. Os primeiros estudiosos teorizaram ser uma extinta civilização anã que, sendo incapazes de se refugiar no vulcão de Hefasto, viajaram pelas terras de Asaron e fundaram sua capital. Sabe-se, entretanto, que muito da arquitetura e simbologia encontradas nos confins da ruína, não se assemelha com a dos anões e nem mesmo com a de qualquer outra raça do mundo. Encontraram aquelas ruínas preparadas, como se estivessem esperando pela linhagem dos conquistadores humanos desde sempre. Os humanos imaginaram ser um presente dos deuses e, assim como os dragões criaram seu império sobre o cemitério de uma antiga civilização, os humanos criaram seu reinado em cima de outra.

Nunca se soube como aqueles que antes habitavam Zarast se extinguiram. Alguns teóricos falam sobre inscrições que provam que algo monstruoso e enorme está trancafiado no estômago da capital e que a coisa foi a responsável por eliminar os antigos habitantes a ponto de não sobrar resquícios de suas existências, porém, a maioria crê na teoria da escassez de alimentos e infertilidade da terra na época, pois este foi o primeiro desafio que a linhagem dos conquistadores humanos teve de enfrentar em seu novo lar. Tentaram de tudo, desde técnicas mais avançadas na agricultura até magias dos servos divinos da floresta. Nada deu certo até que o pai de todos clamou pelos mortos da última grande guerra, suplicando que seus sacrifícios na luta contra a dragocracia valessem a pena e que a vingança da raça pudesse ser concretizada. Os irmãos mortos na guerra choraram durante três anos e sete dias. Choraram água doce vinda dos céus como uma chuva e encheram reservatórios de água, encheram poços, lavaram o chão, criaram-se os rios e lagos e, junto a tudo isso, a terra tornou-se rica e fértil. O novo império dos humanos.

Vingança foi, então, a palavra mais proclamada no reino de Asaron durante todo o novo reinado dos conquistadores humanos. A terra regada pelas lágrimas de humilhação e raiva fez brotar no coração de cada humano que nascesse nas terras dos anjos de pedra o sentimento de vingança e ninguém aderiu mais a essa ideologia quanto o próprio príncipe do reino. Aisenn, o obsessivo. Triste, nostálgico e focado. Prometeu arruinar a dragocracia ainda durante seu reinado, prometendo dar aos seus herdeiros as antigas terras do império do pai de todos novamente.

Foi o príncipe quem fez o acordo com Mordae e, pela primeira vez, usou o poder imensurável da essência arcana, queimando, para sempre, a carne e as escamas de Garyx, o rei dos dragões vermelhos com uma magia acima da compreensão humana. Foi por causa das atitudes do príncipe que os elfos se reuniram na floresta mística e decidiram recrutar membros da própria raça para saírem do véu de proteção de suas terras para serem vigílias do mundo. Foi, também o príncipe, aquele quem Ivny viu na palma da mão de um dos colossais anjos de pedra, enterrando as lâminas gêmeas no estômago de um mago, naquela noite em que o céu ameaçava chorar mais uma vez por muito tempo.
Os olhos da vampira se adaptaram à noite e assistiram à queda da vítima, derramando-se pelo céu escuro, como as águas eternas das cachoeiras de Zarast sempre faziam. Os mesmos olhos reconheceram a figura principesca portadora das lâminas gêmeas, mesmo nunca tendo o visto. Reconheceram ainda mais duas figuras. Uma serpente lustrosa, com as escamas adaptadas à escuridão da noite em carvão. A criatura tinha o torso e a cabeça de uma linda mulher, dotada de volúpia encantadora. A cauda enroscava-se por entre os dedos de mármore da estátua de anjo de pedra e o rosto fitava outra vítima acuada sob a presença dos poderosos inimigos. Aensell.

“Aensell”, ela gritou e seu coração falho pulsou apodrecido na caixa torácica. O sangue subiu e tingiu os olhos da vampira de um vermelho demoníaco. Ela correu ao encontro do irmão.

***

Haviam seis patamares entre as longas escadarias que levavam ao topo do anjo de pedra, mas Ivny não chegou a ultrapassar o segundo. Desafiada pelo estado de frenesi e a furtividade de uma víbora, a vampira teve a cabeça decepada por uma lâmina fatal.

***

O corpo de Ivny não foi reduzido a cinzas, como o de um vampiro deve ser. Ao invés disso, sangrou. Sangrou um lago, como aconteceria com o cadáver de qualquer humano que tivesse perdido a cabeça.
Mesmo depois de um minuto, seu corpo ainda sofria pelos espasmos enquanto os vulcões de sangue circulavam por debaixo de sua pele. Os espasmos começaram movendo um ombro, depois, como se violentado por uma carga de eletricidade, o braço direito ergueu-se e a cena que se assemelhava a um zumbi saindo de sua tumba terminou nas garras vampirescas alcançando a cabeça de olhos cinzentos, caída a meia distância.

As unhas cravaram-se no topo do crânio ensanguentado enquanto o cadáver de Ivny se erguia, vencendo a morte. Moveu-se como uma marionete e enfiou a cabeça no ferimento do pescoço até que o corte que a havia arrancado torna-se uma fina linha de sangue tímido. Os olhos perderam-se no teor escuro novamente. Ivny estava consciente e, à sua frente, a sedutora mulher com corpo de serpente observava a lamúria morta-viva se concretizar.

- Interessante. Você é um deles e eu não pude reconhecer – comentou a serpente de voz irresistível.
Ivny tentou mover o corpo, mas não conseguiu. Estava presa aos encantos da voz daquela que havia arrancado sua cabeça com uma falcione grande, emoldurada de inscrições dracônicas que se apresentava, agora, empunhada pelas quatro mãos da criatura. Um demônio.


A vampira tinha medo. A serpente sorria.

- Oh, você também não sabia, não é? – a serpente encheu sua voz de ingenuidade e ironia – seu coração foi roubado, querida e ele é lambido continuamente pelas bruxas. É algo terrível de se descobrir, não é?

Ivny sofria. Queria morrer definitivamente. Esquecer da própria existência.

- Você tem potencial, garota. Assim como seu irmão – a serpente se arrastou até perto da sua marionete – por acaso, algum dia, você se perguntou de onde realmente veio?

Ivny tentava enxergar no horizonte escuro a presença de seu irmão. Quem sabe o veria uma última vez antes do eterno fim.

- Você não sabe também, não é? – a serpente ergueu um braço e tateou o queixo de Ivny com natural sedução – Você pensa que aqueles que lhe pariram foram heróis – uma revelação acompanhada por um riso de deboche – você é forte e perfeita para experimentos.

Ivny escutou o estômago da serpente revirar, chutado por uma inexistente cria que agora nadava pela região dos peitos fartos do demônio, como se quisesse escapar pela boca de sua prisão. A garganta da serpente avolumou-se, arranhada pela coisa que estava decidida a sair e, quando finalmente alcançou o céu da boca, um brilho esverdeado tingiu a escura garganta.

Mantinha-se parada, agora, uma gema bruta e espinhosa na ponta da língua do demônio. Brilhava cada vez menos intensamente. A serpente agarrou a nuca de Ivny e forçou sua cabeça até os lábios femininos se encontrarem e o ornamento, enfim, fosse vomitado para a garganta da vampira.

- Faça o que você foi criada para fazer, mortalha – a serpente abandonou Ivny que tossia violentamente tentando regurgitar a gema verde de espinhos, ineficazmente.

O corpo da vampira ficou livre das amarras do encantamento e caiu de joelhos, com as mãos agarrando o próprio pescoço enquanto as agulhas arranhavam a garganta.

“Aensell”, foi a única palavra que ressoou na sua consciência. “Aensell”, o eco tomou forma quando finalmente ela pôde gritar o nome do irmão e os anjos de pedra eram vestidos pelas túnicas de carne.


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sexta-feira, 4 de agosto de 2017

Aventuras anônimas VII

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Vinte e três dias se passaram.
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Zarast, a cidade dos anjos de pedra

“A cabeça acha que o meu destino e o de Arafat estão ligados a você”, foi o que Aldebaran revelou no terceiro dia, quando Ivny já desconfiava da aparição constante da dupla no Dragão Empalado, “Então, aproveitem, pois eu tenho peças de ouro para nos fartar de comida para um ano todo”. Arafat, é claro, permanecia calado e austero.

“Estamos esperando coisas diferentes, vampira”, acrescentou Hidro, a cabeça falante, “Você espera pelo seu irmão, eu espero pela decadência”. Quase tudo que o gnomo falava não tinha sentido (mesmo para Aldebaran), Ivny desistiu de tentar entender os disparates dele. E assim, ambos os grupos passaram a se encontrar constantemente. Durante vinte e três dias.

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“Cada semente plantada é uma nova vida que nasce. Temos o poder de conceder vida. Todos nós, Koku”, falava a sacerdotisa dos quatro, as divindades elementais que regiam a chuva, os ventos e a agricultura, cultuada pela maioria dos fazendeiros e mercadores de Zarast. Por quase uma semana, Koku procurou algum lugar dentro daquela metrópole construída na pedra. Um lugar que fizesse sentido. O templo dos quatro foi o único que o atraiu, talvez por causa de seu extenso jardim, das flores e árvores que se assemelhavam as de sua terra natal. “Posso visitar o templo quando quiser? Aqui me traz paz”, “Você será sempre meu convidado, jovem”, revelou a mulher de sorriso encantador. Koku fez isso, cada dia da semana, até finalmente se achar no direito de dormir naquele jardim. Não foi impedido.

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“Um, dois... TRÊS!”, contavam os trabalhadores, em uníssono. No final da contagem fizeram grande esforço físico para erguer a poderosa tora de madeira que seria usada como alicerce para a criação de um novo estabelecimento. Eram três homens acostumados com o serviço, mas o peso era demasiado. Golias os ajudou e só assim conseguiram. “Você é forte, grandão”, elogiou um dos homens, o mais velho, simpático e agradecido, “Talvez você pudesse nos ajudar com o restante. Eu pago”. Golias não precisava de peças de ouro, mas ajudou. No final, ficou tão feliz quanto os trabalhadores quando, enfim, terminaram toda a estrutura, após tantos pregos, marteladas, serrotes e barretes de madeira empilhados. Era o décimo sétimo dia de estadia na cidade dos anjos de pedra.

“O gigante camarada”, disse o velho trabalhador, “este será o nome da minha taverna”, afirmou isso dando leves tapinhas nas costas de Golias. Foi um ofício simples para o meio gigante, mas nada na vida dele, até aquele momento, havia sido tão representativo. Golias aceitou a homenagem e disse, tão calado quanto o mais tímido garoto: “Obrigado”.

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Hildegrim passou a pegar leve nas bebidas e nas palavras. Mal falava. Uma dezena de vezes foi confundido com um mendigo. Somente na segunda semana foi rever seus cavalos. Deslizou a sua única mão no pelo oleoso das montarias. Pareciam irmãos que não se viam a muito tempo. O cocheiro, com dificuldades, trouxe um balde de água, espuma e uma escova. Alisou a pelagem do equino, começando pela crista.

Foi apenas no quarto dia que o aleijado amarrou as rédeas nos cavalos e na carruagem. Subiu no trono do veículo mais uma vez, depois de muito tempo. Amarrou as duas cordas no único braço e, num trote de lentidão e paciência, cavalgou.

“Eu consigo”, ele pensou enquanto a carruagem se arrastava trêmula.

Conseguiu.

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Ivny apenas esperava. Dias no quarto, noites nos profundos esgotos de Zarast. Não podia ir embora da cidade dos anjos de pedra, por mais que a vista das estátuas colossais lhe provocasse arrepios. Aensell voltaria para lá, em algum momento.

Sendo inevitável caçadora, farejou vítimas nos becos escuros da cidade. Mergulhou na escuridão. Perseguiu ladrões, os emboscou, os matou. Alimentou-se. Sentiu cada vez mais fome. Precisava cada vez mais. Levou-os aos esgotos, apoderou-se de um lugar arruinado. Seu templo ou refúgio. Pendurou cada vítima no teto, em ganchos de açougue. Eram vilões. Tanto faz. Assistia o sangue escorrendo. Precisava deles vivos. Acostumou-se com a condição. Passou a gostar daquilo.

“Espere!”, gritava uma das vítimas, em vão, “Não faça isso! Eu imploro. Servirei a você agora e para sempre”, a oferta a atraiu. Ivny pensou duas vezes. O poder do domínio a tentava. Ela poderia garantir que o sujeito seria seu escravo e não teria pena dele, assim como tivera de Hildegrim, pois este era, certamente, um mau elemento.

Pensou melhor. Desistiu da ideia. “Agora não. Aqui não. É arriscado”, ela deduziu. Levantou-o como um pescador faz com o peixe e o pendurou num gancho, assim como as outras doze vítimas. Algo escorregou dos bolsos da vítima. Uma moeda. Nada mais do que um tilintar metálico e agudo nos esgotos.
A vítima perseguiu a queda. O resultado do cara ou coroa, naquele momento, era mais importante que a sua situação. Sem perceber, Ivny fez o mesmo. Assistiu a moeda mostrar seu resultado. O som foi encerrado, em seu lugar estava o resultado do silêncio.

O corpo pendurado gargalhou. Macabro. Ivny ficou confusa.
Era o vigésimo terceiro dia daquela espera e o chão do refúgio de Ivny tremeu, alvo do caos que ocorria naquele momento, na cidade dos anjos de pedra.


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