sábado, 28 de novembro de 2015

Três Escamas e o último voo



- Ragnar, acorde! – aconselhou Aramyn, agora de joelhos perante um corpo de olhos abertos e íris acinzentada como se parte da alma estivesse se esvaído do corpo. O clérigo de Splendor enraizou as próprias mãos no corpo do anão e recitou as preces mais poderosas de cura enquanto os malditos relâmpagos não paravam de mandar seus urros do céu. A magia divina era insuficiente. Aquele lugar tragava a fé de qualquer um e Aramyn manteve os olhos fechados e, em silêncio, lamentou o inevitável.

            Freya agora decidira gritar, a raiva rompera seu receio e agora sua missão era descer a lâmina de seu pesado machado nos orcs e ogros que a terra lamacenta vomitava. – Fique de pé, clérigo! A luta não acabou! – repetiu pelo menos três vezes como se aquele fosse um ritual que permitia que sua força de vontade continuasse viva e agressiva o suficiente para suspender a cabeça dos inimigos.

- Que grande merda! Eles são muitos, a gente tá se fodendo aqui! – reclamou Jack, o halfling enquanto saltava acrobaticamente entre os inimigos e deslizava o fio de seu manto em seus pescoços.
 - Solta logo uma daquelas magias explosivas, mago inútil! Você se esqueceu de como fazer isso justamente agora!?

- Por mais que meu treinamento tenha sido extremamente rígido em relação à concentração de minhas magias, esse ambiente é completamente voltado a silenciar minhas capacidades. – concluiu Varuz enquanto sentia o formigamento na ponta de seus dedos. Deveria ser um calor que se romperia de suas mãos, mas a soma de todo o rugido tempestuoso impedia a realização da magia - Não conseguem ver? Essa tempestade não é algo natural! É como um imenso ser criado para interferir nas nossas habilidades. Uma luta aqui é impossível de se vencer! Eu poderia dizer que sairemos derrotados daqui se não pensarmos em uma estratégia definitiva ou fugirmos.

- Que conversa é essa? Ainda somos os heróis aqui! Os inimigos não têm chance! Diga-me alguma coisa, índio desgraçado! – bravejou o halfling pelejando entre esquivas e ataques. A bárbara estava a poucos metros dele, sendo esmagada por uma clava enorme de ogro e se esforçando para erguer-se e contra-atacá-lo nas virilhas.

            Khali disparou uma de suas flechas na direção dos menires. A seta foi facilmente raptada pela ventania, como o indígena havia presumido. Ainda menos que o Azanthe, Khali não conseguia disparar suas flechas com eficiência graças à tempestade. Ele observou as flechas afiadas do arqueiro aliado descreverem caminhos aleatórios e, vez ou outra, atingir a perna ou o braço de um dos gigantes.

- Os xamãs nos menires! Aquelas pedras pontiagudas estão potencializando os raios. Minhas flechas nunca alcançarão lá. Nem mesmo Azanthe poderia fazê-lo.

- O inimigo reconhece cada uma de nossas habilidades – indagou Aramyn tornando a ficar de pé e lutando contra a morte aliada – Nos trouxe exatamente o desafio que impossibilita o uso de nossas magias e ataques. É uma luta impossível para os poucos fervorosos.

- Então, aqueles xamãs são o grande problema? Vou derrotá-los punho a punho e esse choro da derrota de todos vocês vai cessar! – difamou Jack e saltou sobre um amontoado de corpos mutilados.

- Jack espere! – gritou Aramyn, mas, entre um pé e outro, o halfling já se distanciava ignorando o alerta.

            Eis que os relâmpagos desabaram sobre o pequenino e cortaram o ar velozmente. Jack era ágil e, por pouco, esquivara-se da tempestade, mas, por fim, sentiu-se esganado por um ogro que se aproveitou do barulho ensurdecedor e atordoante do arco voltaico para surpreender o halfling. A mão gigante e enlameada cobria toda a cabeça de Jack e o espremia sem muitas dificuldades, sufocando-o e lançando-o contra o chão para então pisoteá-lo. Tarefa que não conseguiu graças ao atrevimento de Freya ao interferir com seu machado no meio dos dois.

- O que foi, Aramyn? – Jack perguntou meio atrapalhado enquanto se desenterrava da lama.

- Faça o que tem de ser feito, então, herói. – respondeu o austero clérigo, agora com a responsabilidade de guiar dois grupos.

            Jack retribuiu o pedido com um sorriso desajeitado e de confiança. Assentiu afirmativamente com a cabeça e continuou a investida contra os orcs xamãs.
Agora o resto do grupo era um plano de fundo que ficava cada vez mais distante para Jack. Mais orcs brotaram das águas sujas. Eles esperavam não tão pacientemente a primeira leva de sua raça sucumbir aos heróis e agora chegara a vez deles. Tinham um único alvo.

            O primeiro aproximou-se afundando seus pés pesados e tentando realizar um encontrão com o ombro. Jack saltou sobre ele usando uma de suas mãos como apoio nas costas do orc e iniciando uma acrobacia que terminaria por deslizar até o meio das pernas de um segundo. Eles estavam ficando para trás, mas, que se dane! O objetivo eram os xamãs que ele iria derrubar no final de sua corrida e estes ainda pareciam distantes.

Quatro orcs se avolumaram interceptando o caminho do halfling. Então, uma sombra se desmanchou no meio de tudo e saltou com sua lâmina finíssima sobre as gargantas das vítimas. O manto de escuridão corria ágil, ignorando o peso da chuva em suas vestimentas encharcadas. Saltava com presteza e tornava-se um borrão que aparecia e se apagava repentinamente. Apenas uma vez olhou para Jack e tinha a face de um demônio, pois esta era a máscara que o Ceifador usava.
Jack aproveitou-se do caminho livre provocado pelo seu aliado e encarou o objetivo com um riso que qualquer um poderia discernir como prepotente. A sombra aliada parou e seu manto manteve-se caído sobre os ombros enquanto a máscara deslumbrava algo que nascia das sombras projetadas pelos menires.

            O halfling focou a imagem e a viu transformar-se num par de asas coriáceas que se abriam e esticavam com o respaldar da ventania, moldando um corpo dracônico preenchido de escamas negras que trilhavam o caminho até uma língua bifurcada encharcada de ácido e um par de olhos vermelhos que, mesmo na escuridão e chuva, eram vivos como o sangue que acabara de brotar de uma vítima.
- Vocês estão brincando comigo!? A droga de um dragão agora não, né? – reclamou Jack para o nada e foi respondido pelo regurgitar da imensa criatura que usava os menires como apoio de suas grotescas e afiadas garras.

            Juntos, halfling e Ceifador rolaram para os limites da baforada ácida do dragão e notaram o líquido esverdeado misturar-se ao pântano que era as poças de água e lama no meio do caminho.
- Mudança de planos... – falou para o Ceifador – você mata os orcs xamãs. Eu encaro o dragão.
... e esse foi o combinado.

***

Relato: Jack  




            Estava claro que o mundo precisava de heróis quando eu nasci. Também estava claro que o grupo precisava de um herói naquele exato momento. Foi por isso que eu corri para o confronto e terminei encarando mais um dos filhos da rainha dos dragões negros. Então, sabe qual é a diferença de um simples aventureiro para um herói? Vou te dizer qual é: a audácia. E isso eu tenho muito!

Sabe... eu não tinha dúvidas de como tudo aquilo ia terminar, principalmente quando eu tomei as rédeas. Afinal, quantas vezes eu salvei esse grupo? Por isso chamei a atenção do bicho enquanto o Ceifador percorria sorrateiro o caminho até aqueles malditos xamãs apelões e seus raios. O dragão veio até mim, com garras e presas, então eu saltei acrobaticamente e me deixei levar, inteligentemente, pelo vento – já havia passado algum tempo de treinamento estudando essas rajadas de ar e não foi assim tão difícil notar qual era a hora certa de pular – quando me vi, estava exatamente onde eu queria estar: preso à asa direita do dragão, a cimitarra cravada na pele que brotava um sangue fervilhante.

            A minha montaria rodopiou no ar e eu me assegurei que não cairia naquele show de rodeio. As asas abanaram muito vento, mas a chuva ainda persistia em cair e molhava a mim e à criatura – suas escamas ficando cada vez mais escorregadias. Observei o campo de batalha nas alturas, de lá eu vi meus fiéis súditos golpearem os orcs e ogros formando uma montanha de cadáveres ao redor deles mesmos. Bem, tenho que elogiá-los: estavam fazendo muito bem seus serviços. Especialmente para a imbecil da bárbara que, só o que sabe fazer é bater. O mago e o clérigo tinham dificuldades para lançar suas magias, mas, era de se esperar: a magia sempre falha nas horas mais preciosas. Os arqueiros pareciam kobolds tentando acertar seus inimigos, um mais falho e patético do que o outro. Já o Ceifador estava com dificuldades para atravessar o campo de eletricidade que cercava os xamãs. Faltava a ele o que sobra em mim: audácia... eu já disse!

O dragão girou o corpo e minhas mãos já escorregadias soltaram a cimitarra e eu me vi deslizando pelas costas do bicho até conseguir segurar firmemente em sua cauda. Ali era um péssimo lugar, a cauda ziguezagueava no ar na tentativa de livrar-se de mim e até o dragão tentou me abocanhar num jogo patético de “morder o próprio rabo”. Não conseguiu.

            As escamas escorregadias me impossibilitavam de alcançar um lugar mais seguro nas costas da minha montaria quando, de repente: Zum! – uma flecha cravou ali, a poucos metros de mim. “Droga, os desgraçados querem me acertar?” foi o que pensei à primeira vista quando Azanthe disparou aquela flecha certeira. “Não... ele não pode ter feito isso em plena consciência.” E segurei a flecha tomando impulso até a parte inferior do torso dracônico. Foi aí que outro “zum” me soprou os ouvidos e outra flecha cravejou um pouco abaixo do ombro do bicho. Dessa vez foi o precipitado erê.
E aí me veio a ocorrência: Definitivamente eles não estão fazendo isso com plena convicção. Eu já havia ouvido e lido sobre isso. Sabe? Sobre como as coisas curiosamente acontecem afim de trilhar o caminho de sucesso para um herói e era claro que isso estava acontecendo naquela hora! Esperei o momento certo e apenas deixei-me deslizar a cambalhotas até a segunda flecha. Já estava bem perto de minha cimitarra novamente.

            Um raio irrompeu a poucos metros de mim. O dragão teve de se esquivar. Bem, pelo menos daquelas descargas elétricas eu estava seguro e, logo, o grupo inteiro estaria livre daquelas coisas. O Ceifador havia saltado em rodopios para dentro do círculo de eletricidade que cercava os xamãs e, para ele, ficou fácil degolar gargantas e livrar-se dos inimigos. Depois, feito uma sombra, sem brilho heroico nenhum, ele veio com algumas acrobacias baratas e tentou agarrar-se ao dragão. Como se fosse uma coisa simples. Tudo que conseguiu foi resvalar o sabre nas escamas e cair na escuridão.
Lá, do outro lado, o acúmulo de inimigos finalmente parecia ter cessado. Eu vi o índio acertar a garganta de um ogro quase a queima roupa. Depois, Aramyn estava declamando mais um de seus “blablablás” inspiradores quando o arqueiro doente e a imbecil correram em direção ao dragão que me servia de montaria. O mago estava tentando contornar sua inutilidade e, ao erguer as mãos contra o céu tempestuoso, uma concentração elétrica preencheu a ponta de seus dedos e a rajada foi lançada na direção da criatura voadora. “Que se foda o pequeno halfling, afinal, ele não está segurando no dragão, não é?” – embora eu deva confessar que o raio sequer encostou em mim e ainda atordoou a criatura, o que me permitiu saltar e alcançar minha cimitarra novamente.

            Minha lâmina havia cravado profundamente na criatura e dificilmente sairia, mesmo com meus esforços. Bem, eu não podia perder minha arma, não é? O que fiz foi puxá-la com tanta força que, por um momento, pensei que ela estava fincada numa pedra. A cimitarra não saiu, em compensação meus esforços latejaram no dragão e ele despencou durante alguns segundos, perdendo altura de voo e me fazendo ser levado pelo vendaval. Tal foi minha surpresa quando caí sobre o bicho novamente, me segurando numa terceira flecha que havia se cravado à ele em algum momento que não percebi.

Era o terceiro golpe que Freya havia dado no menir. Cortava-o como se fosse uma árvore – me lembrei que seu machado era apropriado para isso. Foi nesse terceiro ataque que a imensa pedra cheia de runas despencou. Ela chutou a rocha na direção que queria e ela desabou sobre o dragão que, por pouco, se esquivou, mas não se livrou do baque totalmente. Tive que ficar de pé nas costas da criatura e saltar na hora certa afim de me esquivar do peso do menir. Vi três escamas serem arrancadas.

            Aramyn conjurou mais uma de suas magias pouco efetivas, mas de algum jeito conseguiu instigar Azanthe a acertar o dragão negro na boca do estômago. Khali ainda estava chafurdando os orcs e ogros, embora para mim, todos já estivessem mortos. Acho que ele estava saqueando. Sei lá... não confio em índios.

Seja como for, aquele combo de ataques e danos foi demais para o dragão e o coitado decidiu fugir. Ele rodopiou no ar, livrando-se de mais ataques ao alcançar uma altura impossível para flechas e mergulhando numa escuridão densa e chuvosa que impossibilitava Varuz conjurar a magia certa.

            As asas engolfavam uma quantidade imensa de ar e isso propulsionava ainda mais o voo do dragão. Ele fugiria se pudesse. Mas, meus caros amigos: Eu estava lá!
A luta era entre mim e minha vítima. A velocidade apenas me atrapalhava a conseguir se deslocar e mesmo manter-me agarrado às escamas do dragão. Você não pode imaginar como as rajadas de vento eram fortes! Qualquer um teria sido arrebatado, mas, como eu já disse, eu tinha mais do que horas ou dias de treinamento enfrentando fortes rajadas de ar e aquilo não iria me desesperar.

 O dragão alcançou as nuvens negras da tempestade e eu senti o frio me cortar a pele. Lá em cima é definitivamente muito frio, mas, pelo menos as fortes rajadas de ar não são tão constantes e eu me aproveitei para escalar escama por escama. O bicho pareceu perceber minha estratégia e, logo, desceu rompendo as nuvens e rodopiando. Eu estava longe de minha cimitarra e o meu manto laminado não seria tão efetivo àquela disposição. Me assegurei que ficaria agarrado ao dragão até que me ocorresse outra ideia.

            Então, ele rodopiou novamente e eu deslizei de seu pescoço, conseguindo segurar em uma escama. Mas não qualquer escama! A escama que me agarrei estava bem próximo de uma parte desprotegida de seu corpo: o lugar onde três escamas haviam se soltado anteriormente. Mais um toque do destino, mas este não seria o último.

“Se, pelo menos, estivesse com a cimitarra em mãos” – eu pensei e automaticamente desviei meus olhos até onde ela estava. Presa na asa direita do dragão. Também notei outra coisa: a forte pressão das rajadas de ar começava a, vagarosamente, desenterrá-la da carne da criatura. Tive uma ideia.

- É só isso que você pode fazer, filhote de dragão? – incitei destemidamente meu inimigo e a resposta me veio rápida. Ele rodopiou pela terceira vez e eu me certifiquei que continuaria agarrado às escamas.

            Eu estaria mentindo se dissesse que estava esperando exatamente por aquilo, mas, bem, eu havia pensado na possibilidade. A cimitarra soltou-se da asa direita do dragão e cortou o ar, girando em espirais lacerantes e vindo parar na minha mão! Como as grandes histórias bárdicas contam e a plateia desconfia da veracidade, eu estava lá, presenciando aquele momento. O meu momento. Infelizmente não tinha plateia. Ou talvez tivesse! – Noroi! Agora você vai saber com quem está se metendo.

Enterrei a cimitarra na brecha das três escamas e o sangue fervilhante brotou acompanhando um urro dracônico que se misturava a tempestade. A criatura não rodopiava, nem conseguia arrebatar o vento ascendente que golpeava suas asas e, por isso, caía velozmente.

            Posso dizer que me desgrudei da criatura despencada algumas vezes, mas acabei alcançando suas asas, cauda e chifres afim de sustentar o dano da queda. O dragão se debruçava tentando evitar minhas constantes tentativas de usá-lo como apoio – como se quisesse que eu e ele tivéssemos o mesmo destino. Então, escutei o estrondo do pescoço da criatura varrer o chão lamacento, criando ondas pantanosas enquanto se arrastava pelos muitos metros que se passaram quando finalmente havia alcançado o chão e, mesmo naquele instante, o dragão se esforçava para me ver esmagado. Ele não conseguir, claro. Resfolegou, as asas partidas pararam de se debater, pulmão e coração pararam de exercer suas funções e o sexto filho da rainha dos dragões morreu comigo em cima dele!

            Precisei esperar um longo tempo até que meu grupo me alcançasse. Quando me viram, eu era um herói imponente e indestrutível, pisando na cabeça do dragão, com a cimitarra fincada em sua garganta. Nem mesmo o céu cinzento e apático daquele momento diminuiu meu brilho!

- Porque vocês demoraram tanto? – eu falei.


            

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

O Trovão de Deus


“Na verdade, eu demorei. Demorei para me descobrir assim: dono de uma história de pessoas solitárias, de perdas e ausências e que, por tal motivo, abracei-a com afinco até compreender o porquê de tanta empatia. Sou como quem escapa pelas páginas de um romance, ainda confuso e sem me importunar com o tempo. Aqueles que preciso amar são sombras residentes da alma de estranhos”.

            Pensamentos eram o mantra do príncipe. Sem a motivação dos demais, ele seria como um vento brando mudando de direção. Débil e imprudente. A incerteza perfurou sua alma quando o peso da responsabilidade o alcançou tão cedo, carregando entre adagas afiadas o fardo que era manter-se vivo mesmo afetado pelas lembranças de morte.

“O sangue que pulsa lento e frio do corpo dela. A carne arranhada pela vontade de um destino cruel. O final trágico que inspira vingança. Alguém escreveu isso para você, jovem príncipe. E assim deveria acontecer. ” – estas foram as últimas palavras de Cyril, pronunciadas ainda afogadas em sangue. Sangue que lhe subia a garganta, fugindo da dor que era ter a lâmina do príncipe enterrada no estômago. Poucas vezes o príncipe lutara como naquele dia. Vingança é uma palavra pesarosa para quem se atreve a blasfemá-la, mas a sina do príncipe, dali em diante, seria aquela.

            E permitiu-se continuar assim: consumido pela dependência que eram as dores que ecoavam em seu peito. E desembainhou a lâmina do príncipe outras várias vezes, assim como agora desembainhava contra o inimigo.

“O destino de uma inúmera quantidade de vítimas é recorrência de sua dor, príncipe dos Anjos de Pedra. Quantas cabeças precisaram ser cortadas até que o sangue dos inocentes escorresse e, enfim alcançasse as torres do seu Palácio da Vingança? ” – praguejou Balberich e sua lâmina fria implorou por sangue.

A lâmina do príncipe farejou a ameaça e sua gêmea foi desembainhada. Um vórtice de energia criado da soma das vontades do príncipe e das lâminas crepitou e suas faíscas encontraram uma escuridão densa e agora acovardada pela emanação luminosa.

“Quero que o seu fim seja um alento às minhas memórias, Balberich. Não haverá golpes de misericórdia. Se você acha que a agonia do seu sofrimento fará de mim alguém menor, terá o prazer de me ver tornando-se um monstro enquanto minha espada faz seu ofício. ” – respondeu o príncipe e havia uma mistura confusa de austeridade e escárnio desenhados em seu rosto.

“Você fala como um de nós, príncipe da vingança. Se lhe resta um pouco de alma, saiba que ela está irremediavelmente incompleta. Um futuro manipulado pelo frágil toque de um mutilado não é a inspiração que um povo precisa. Você os fará temer e seu reino devorará a sombra que há de chegar em breve. ”

            Os disparates trouxeram incertezas ao coração do príncipe. Seus punhos vacilaram e durante alguns momentos as lâminas gêmeas sentiram o fraquejar da consciência de seu portador e deixaram-se inundar pelas sombras projetadas pela espada fria do inimigo. O príncipe encaixava suas ideias na mente, mas não conseguia formular qualquer defesa psicológica até que a voz experiente de um rei soou em seus ouvidos, como se estivesse sendo sussurrada ali, tão próxima. A voz lembrara ao príncipe uma das principais estratégias dos vilões com língua de prata: desmoralização. Incutir a dúvida era uma das espertezas inimigas e ele não podia se deixar abater por aquilo.

Mas, porque era tão difícil se desenganar daquelas palavras ilusórias?

            A fria espada inimiga dançou no ar espalhando uma chuva de pó cortante, como minúsculas partículas de vidro afiado sendo projetados junto à sua arremetida. O príncipe teve pouco tempo para reagir e descreveu um giro rápido com a lâmina gêmea sentindo o peso agudo da arma inimiga quase resvalar seu rosto e arrancar sua orelha. Balberich continuou a rodopiar a espada e a ponta aguçada tracejou um corte letal subindo pelo ventre do alvo. O príncipe afastou-se, mas ainda assim a espada feita de frio deslizou sobre a armadura de couro, se aprofundando e rasgando o que podia.

            Com a mão apalpando a boca do estômago, o príncipe analisou o estrago do ataque inimigo e percebeu que o corte não havia sido profundo. Estendeu as lâminas gêmeas e preparou sua rodada. Antes que pudesse pensar em como agir, sentiu o sangue subir-lhe a garganta e jorrar por sua boca e narinas. Atordoado, o príncipe vomitou o líquido vermelho enquanto a vertigem preenchia seus olhos.

“Está confuso, príncipe? ” – desdenhou Balberich com um curto sorriso desenhado no rosto. “É impossível sair imune de um ataque desferido por Naz’beth, a de hálito afiado. O que está sentindo foi provocado pelo seu próprio sistema respiratório. Algo involuntário e letal quando enfrenta o poder de minha espada. ”

            O príncipe tirou o excesso de sangue da boca com as costas da mão e esperou que seus olhos focassem alguma coisa novamente. “Vidro.” – assentiu enquanto analisava suas mãos e notava finas partículas cortantes, tão leves quanto o ar, se moverem como nuvens de vapor.

“Não se trata de simples vidro. Naz’beth foi forjada no Vale dos Ventos da Luxúria, o segundo inferno, onde uma ventania constante rasga a alma das vítimas. Sua lâmina foi forjada a partir da crisálida de demônios-mariposa, criaturas que passam a eternidade devorando o peito dos pecadores que tiveram suas almas desfeitas pelo amor. ” – Balberich riu de sua própria explicação. “Um tanto dramática sua sina, não é mesmo, príncipe? Mas, eu tenho certeza que os escritores da geração arruinada que nos espera, se esforçarão para descrever essa luta abusando de todo teor histórico. Ah! A morte de um príncipe, não poderia ser mais romântica! ”.

“Porque você está cantando vitória, Balberich? ” – indagou o príncipe se recompondo do momento de surpresa. “Você acha que o portador das lâminas de Citadel irá sucumbir numa luta contra um mísero servo do lado perdedor? ” – esboçou um sorriso vermelho, manchado pelo próprio sangue.

“Bela maldição é a sua língua, príncipe dos supostos vitoriosos. Talvez essa luta de egos seja mais impressionante que a justa prestes a ocorrer. ” – Balberich girou a espada fria e uma nuvem de poeira vítrea circundou seu corpo inofensivamente.

            Era um embate, o príncipe precisava responder em combate da melhor forma possível. Prendeu o fôlego e saltou sobre o inimigo, as duas lâminas descrevendo a mesma linha de ação e encontrando-se com a espada fria do inimigo. O príncipe escutou o barulho de vidro sendo quebrado quando Balberich bloqueou e girou o corpo desviando-se da parte principal do impacto. A nuvem de poeira vítrea saltou contra o rosto do príncipe, enquanto Balberich apertava o punho de Naz’beth e a crisálida sobrenatural reconstruía a lâmina afiada novamente.

O príncipe tossiu e cuspiu mais sangue, pois prender a respiração não impedia que a nuvem vítrea penetrasse em suas narinas e, enfim, se misturasse ao próprio fôlego. Afastou-se usando uma das lâminas como defesa para, então, perceber que a arena se tingira de vermelho. O vidro havia lacerado acima das sobrancelhas e agora o sangue escorria sem controle diante sua visão. Por pouco, o poder do hálito cortante não cegara o príncipe e agora ele sabia que teria poucas chances nessa luta.

“Você ainda consegue enxergar, príncipe? Que sorte a sua! ” – debochou Balberich.

            O príncipe pensara em se armar com o arco, mas refletiu pouco antes de perceber que aquela não seria uma boa ideia: o inimigo não era imóvel, podia trazer consigo a nuvem vítrea e acertar um alvo a curto alcance com um arco era perigoso, principalmente se o agressor estivesse armado.

Balberich aproveitou-se do impasse e saltou ofensivamente contra o príncipe. A espada fria rastreando o caminho para o peito inimigo e, por pouco, bloqueada pela lâmina da mão hábil. Era notável a lentidão da defesa inimiga, pois, o príncipe, além de ter uma cortina de sangue sobre os olhos, protegia os pontos vitais e tentava impedir que a nuvem de vidro mutilasse definitivamente seus olhos. Foi por isso que Balberich conseguiu realizar um segundo ataque contra o rosto de sua vítima e, satisfeito, sentiu a espada fria açoitar a face inimiga, rasgando como papel a pele abaixo do olho direito, tão profundamente que o príncipe pôde sentir o gosto de sangue descer-lhe pela garganta.

            Ofegante, o príncipe ganhou distância. Atordoado, o príncipe perdeu o equilíbrio e tombou, caindo de joelhos. Mutilado, o príncipe regurgitou mais sangue e sentiu seus pulmões latejarem de tanto arder.  

“Você já deve ter notado que as chances de vencer um combate contra mim e Naz’beth é nula. Dizem que quando alguém está prestes a morrer, a consciência cria uma série de imagens importantes na mente, é como se você as tivesse encarando diante um espelho. São lembranças da ruína. Eu acredito que você esteja enxergando-as agora. Suas ruínas houveram de ser muitas, mas, acabou. Pode sossegar, príncipe dos mutilados. Você não precisa mais se importar com nada. Não irá se importar sequer com a dor, daqui a alguns segundos. ”

            A nuvem de vidro ainda rasgava a pele do príncipe. Rodopiava em espirais cortantes, mutilando mãos, braços, pernas e torso. Ainda teimavam em inundar suas narinas e perfurar seus olhos. Fatigado, ele levantou o rosto e encarou as minúsculas partículas vítreas dançando no ar e formando a imagem de seu passado. O príncipe ficou boquiaberto diante as lembranças perturbadoras. O hálito cortante era agora um espelho revelando sua derrota e tinha Balberich como plano de fundo.

Enraivecido pela gana de seu inimigo, o príncipe atacou a imagem de vidro a sua frente resultando num estilhaçar cortante que lacerou ainda mais seu corpo. Sua lâmina fiel emanou uma descarga elétrica furiosa, afastando cada partícula vítrea de sua frente. Ele observou aquilo com curiosidade.
“Não adianta, meu nobre inimigo. Você já absorveu o veneno mental que Naz’beth exala e tem poucos minutos antes que seu corpo e consciência se esvaiam completamente. ”

“Não acho que vou precisar de minutos para dar um fim a esta luta, Balberich. ” – afirmou decididamente o príncipe, levantando-se entre a exaustão e o jorro de seu próprio sangue com as lâminas gêmeas firmemente presas aos seus punhos.

“Eu confesso que estou te menosprezando, príncipe. Qualquer um já teria sucumbido aos efeitos da minha espada. Parece que eu terei de lhe mostrar um ponto final definitivo. ” – Balberich avançou contra o príncipe como uma seta aguçada, adornada pelo fio da navalha que era o vapor vítreo.

            O príncipe titubeou visivelmente desequilibrado e ajoelhou-se perante a imagem oferecida pelo reflexo de Naz’beth. Enfiou as lâminas gêmeas no chão afim de apoiar o corpo para que este não tombasse inteiramente. Esperou a aproximação do inimigo e impôs uma descarga elétrica quase inofensiva ao seu redor enquanto se esforçava para desviar-se do golpe letal, afastando-se até uma área segura.

“É essa sua estratégia? Essa estática criada pela sua lâmina serve apenas para assanhar meus cabelos! ” – debochou Balberich.

“Para que Citadel fosse erguida, nós, a primeira linhagem, enfrentamos inúmeros desafios. Exércitos infindáveis que arrastavam seu terror nesse e em outros mundos. Quando o aspecto do primeiro deus profano emergiu de sua prisão divina, derrotar-nos foi sua primeira intenção. Ele marchou com suas criaturas de trevas até nosso antigo lar e inundou nossas terras de sangue e ruína. O primeiro de minha linhagem subiu até Angraheim, o palácio dos reis, cujo o topo alcança as nuvens e lá recebeu a benção do primeiro deus. O céu inteiro respondeu ao seu chamado de vingança e os arcos voltaicos formados de relâmpago deram forma às espadas gêmeas que agora você vê, Balberich. ” – o príncipe erguia-se, renovado de confiança e inspiração. Sua veracidade apunhalou Balberich desprevenido e este ouviu cada palavra do discurso a espera de um resultado. – “Em suma, as lâminas gêmeas são a voz da primeira existência divina. Elas são o Trovão de deus e seu poder não pode ser equiparado a qualquer arma forjada na boca do inferno. ”

O silêncio assolou o campo de batalha enquanto os céus relampejavam assentindo às palavras heroicas do jovem príncipe. Portando as lâminas gêmeas, ele andou a passos curtos em direção ao inimigo. O rosto estampando certeza.

            E Balberich não se afastou. Encarou aquele rosto austero que a princípio não lhe parecia um desafio e agora paralisava cada músculo de seu corpo.

O príncipe alcançou a distância planejada e fez com que o Trovão de Deus ecoasse uma centelha elétrica e divina que fez as partículas vítreas ao redor de Balberich se afastarem, como os lados opostos de um imã. O portador de Naz’beth agora estava totalmente desprotegido.

Nem mesmo a língua de Balberich, afiada em palavras, conseguia se mover agora e o príncipe não lhe deu um golpe de misericórdia. Fez suas lâminas dançarem. Elas cortaram o ar e desfiaram o peitoral de aço do inimigo, se enterraram nas entranhas, deceparam um braço, devoraram as vísceras e se alimentaram de sangue e vingança.

Quando o inimigo se engasgava com sangue, o príncipe apenas o observou.  

Quando os olhos do inimigo começaram a ficar cinzentos e inertes, o príncipe cravou uma de suas espadas na perna dele e reavivou sua dor.

Quando a língua do inimigo deu sinal de implorar, o príncipe a cortou.

Quando a consciência do inimigo começou a desaparecer, o príncipe tornou-se um monstro.

Quando o inimigo morreu, o príncipe se levantou e esperou que a chuva lavasse sua dor.


quarta-feira, 18 de novembro de 2015

A Teoria do Acaso


            Sigmund não se importava em dormir como os outros. Não se preocupava com as noites em claro. Ele nem sequer se incomodava com a solidão que sua biblioteca lhe proporcionava. Era o terceiro dia que ele permanecia em seu refúgio e sua única companhia era Sphynx, um gato preto, presente ofertado por djinni.

            A pilha de livros localizada no canto da sala repleta de estantes já não mais lhe servia. Tinha uma memória excepcional, conseguia absorver todas as informações de livros já lidos sem a necessidade de inspecioná-los uma segunda vez. Sigmund estudava presságios em cálculos que misturavam a aritmética, a geometria e intrínsecas operações matemáticas na tentativa de desenvolver a erudição de algo que ele denominara “teoria do acaso”.

            A teoria do acaso era um estudo raro e complicado e foi devido à excentricidade do assunto que Sigmund decidira doar parte de sua vida na tentativa de aprimorá-lo. É claro que ele não sabia no que estava se metendo: estudar o destino era algo que somente os tolos fariam, mas já estava obcecado demais com o conhecimento obtido que resolvera ignorar essa afirmação, principalmente depois que a teoria o ajudou a prever acontecimentos desastrosos.

Jogou o mínimo pedaço de giz num dos cantos da biblioteca – um lugar cujo já havia um amontoado destes – e friccionou os olhos com as costas das mãos tentando relevar o cansaço. Não adiantara. Despejou um pouco de chá numa porcelana e sentou-se frente a uma mesa invadida por livros, pergaminhos e anotações. Relaxou cada músculo e sentiu a cabeça latejar.

“ Encontrou algo, meu mestre? ” perguntou Sphynx se materializando feito fumaça cinzenta em cima da mesa onde Sigmund se apoiava.

“ Não, ainda. ” respondeu Sigmund bebericando um pouco do chá que já estava bem frio.

“ Então, finalmente alcançou o seu limite? ”

“ Eu alcancei somente um intervalo do meu limite. Só isso. Apenas preciso de um rápido descanso e pensar um pouco mais sobre a teoria. ”

            Sphynx ronronou e depois saltou para o topo de uma torre de livros em cima da mesa. A biblioteca estava trancada e não permitia sequer a passagem de uma fresta de luz – embora do lado de fora um lindo dia raiasse – apenas a luz de um candelabro de quatro velas proporcionava uma fraca iluminação ao aposento.

“ Você nunca cogitou que a teoria pudesse estar errada, não é, Sigmund? ” perguntou Sphynx com sua voz felina dotada de eloquência e sagacidade.

“ A teoria do acaso não está errada, nem certa. Ela pode mudar totalmente amanhã, basta que algo ou alguém resolva contorná-la. ”

“ Bem-vindo à inutilidade do assunto, senhor. ”

            Sigmund já não insistia em tentar convencer Sphynx sobre a veracidade de seus estudos, sabia que o desinteresse do djinni era típico dos seres astrais: aéreos e despreocupados. Não! A teoria do acaso não poderia ser desenvolvida por qualquer acadêmico. Sigmund era capaz de provar isso matematicamente.

            Sphynx encontrou uma posição confortável e pôs-se num descanso recorrente enquanto Sigmund provava mais um pouco do chá frio e lembrava-se de sua terra natal, a agora arruinada Azran. Sua mente era capaz de projetar as lembranças da primeira audiência na qual ele havia participado com o intuito de provar a genuinidade de sua teoria.

            Eram lembranças de vinte anos atrás, dos corredores iluminados da capital Brastav, das fontes que jorravam água límpida e se espalhavam em aquedutos que cercavam estátuas, fontes e imagens sólidas de representações heroicas. Das pontes de mármore construídas na forma de arco, abóbadas e jardins banhados de luz e serenidade.

Tannabullus era o senhor da magia naquela velha Azran. Um senhor de idade que havia juntado seus esforços enquanto jovem para desenterrar os segredos contidos em monólitos encontrados nas gigantescas ruínas de Chattur’gah. Foi inspirador para Sigmund palestrar uma de suas teses para alguém que ele considerava tão importante – boa parte da teoria do acaso advém de anotações encontradas nas ruínas de Chattur’gah e foi graças a esse achado que Sigmund pôde prever os principais acontecimentos que, mais tarde, lhe dariam o cargo de sênior da Ordem Arcana de Azran.

“ Não vim aqui no intuito de convencê-los que a fé é algo que se possa deixar de lado. Ao contrário, ela é uma variável de meus estudos, assim como a vingança, o heroísmo, o amor e o ódio o são. ” explicava Sigmund enquanto rabiscava a giz um quadro negro disposto na sala de audiências. Eram símbolos estranhos, pouco reconhecíveis para a maioria dos presentes. Estes se entrelaçavam em formas geométricas e gráficos espalhados pela tela escura.

“ Isto é o que costumo chamar de Espiral do Destino...” então, desenhou uma forma helicoidal no centro do quadro negro e destacou os encontros das linhas espiraladas com símbolos que representavam essas variáveis. “ Eu poderia preencher toda essa superfície com uma quantidade inimaginável de variáveis, poderia multiplica-las ou dividi-las entre si para alcançar praticamente qualquer tipo de resultado. A minha intenção, é claro, seria estabilizar esses resultados. O que quero dizer é que, através desses cálculos matemáticos poderíamos construir um equilíbrio de decisões que afetariam o destino. ”

            A prepotência do assunto instigou desconfiança nos docentes. Alguns rostos se contorceram de indignação, outros estreitaram os olhos afim de entender a que ponto aquilo iria chegar.

“ Uma manipulação do destino. É isso que você anda estudando, Sigmund. ” adiantou-se um dos membros docentes, esboçando claramente seu desprezo à teoria explicada. “ Um estudo eterno de acontecimentos. Você menospreza o conhecimento dos membros da área de clarividência de nossa ordem. Mesmo os iniciados na arte da vidência sabem que o destino é algo mutável. Não existe um futuro perfeitamente tracejado. ”

“ Eu estou certo que não existe mesmo, meu caro mentor Halias. E, é por isso que a teoria do acaso se encaixa tão bem. O destino é mutável, por isso estas variáveis influenciam os resultados e é sabendo disso que, através desses cálculos, poderíamos distinguir qual a melhor e menos arriscada variável que deveríamos utilizar e, não somente isso! Eu estou falando de um conjunto de expressões e coordenadas que nos levariam a dividir o peso dessas decisões entre essas variáveis afim de alcançar o resultado desejado. ” Sigmund rabiscava o quadro negro enquanto dirigia suas palavras à plateia sem necessariamente dá-lhes total atenção. “ Quero que vocês prestem atenção nesse cálculo, mais precisamente nestas incógnitas e a forma com as quais elas se eliminam até sobrar somente alguns símbolos manipuláveis. A expressão inteira nos indica um fator negativo que se acumula distanciando-se bastante de um resultado estabilizado. Se encaixássemos esses valores numa curva trigonométrica, veríamos que os resultados não são oscilatórios. Ou eles despencam em determinado momento ou se elevam a picos naturalmente inalcançáveis. ” desenhou um trio de curvas especificadas pelo seu estudo e percebeu que precisava de mais giz para continuar sua explicação.

“ Os exemplos parecem condizer com suas expectativas, Sigmund, porém, eles não nos prova nada. São apenas padrões criados e idealizados por você. Sua teoria pode ter alguma significância, é verdade, mas, com certeza é cedo demais para apresentá-la a esta audiência. ” concluiu um segundo docente.

“ É respeitável sua observação, meu caro Ciril, mas estes padrões não foram criados por mim ” Sigmund agora buscava um segundo giz enquanto um grupo de novatos acadêmicos distribuía ao corpo docente um punhado de pergaminhos “Se puderem analisar os meus cálculos mais detalhadamente, poderão notar que as variáveis se encaixam perfeitamente com os acontecimentos históricos que descrevem perfeitamente épocas longínquas, mesmo as que antecedem a evolução humana”.

            Os mestres arcanos agora se sentiam instigados pelo assunto, mesmo aqueles que menosprezaram a teoria do acaso poucos minutos antes, agora abriam os pergaminhos e passavam seus olhos ansiosos rapidamente pela inúmera quantidade de páginas da tese escrita. O conteúdo não se diferenciava do descrito na lousa, mais era mais amplo e detalhado. Iniciava-se com uma simples equação que logo se desmontava em um cálculo matemático abrangente. Incógnitas substituídas pelas variáveis da Espiral do Destino descreviam respostas e, cada resposta tinha uma explicação relacionada a algum acontecimento, apontados de forma genial pelo próprio Sigmund.

Os desconfiados mestres arcanos demoraram algum tempo analisando as anotações. Em seus rostos eles esboçaram as mais variadas reações, da surpresa incontida à dúvida, todos eles pareciam estar tendo alguma dificuldade para acertar o caminho certo, mas não levaria mais tempo até que eles soubessem exatamente até onde Sigmund queria chegar.

“As Guerras da Era! ” exclamou um dos docentes “Toda essa teoria foi capaz de calcular não somente seus resultados, mas também todo o caminho ocorrido até elas! ” Sigmund ficou satisfeito com a surpresa da declaração, “Todos os cálculos parecem plausíveis e convincentes! ” revelou um segundo docente que acabara de retornar à página inicial afim de analisá-las novamente. “Você está tentando provar que uma Guerra da Era está prestes a acontecer, é isso? ” indagou um dos mestres arcanos.

“Estou tentando provar que uma Guerra da Era já começou e que somos o primeiro alvo” respondeu Sigmund e seu rosto demonstrou severidade de tal forma que todos os presentes dirigiram suas atenções a ele.

            Pelos salões da capital de Azran ecoou o som da balbúrdia e das discussões sobre a veracidade dessa afirmação e, para variar, a maioria não acreditava nela. Sigmund já havia previsto isso.

“Se o que você está falando é verdade e se essa teoria do acaso estiver realmente certa, você tem a resposta para impedir a quarta Guerra da Era.”

“Sim, eu tenho.” e a afirmação soou tão austera e prepotente que o corpo docente esboçou a silhueta mais indignada possível.

            Alguns xingaram, outros debocharam, mas a resposta para essa desconfiança veio dois anos depois, com a visita das Hordas Trôpegas e a queda da capital de Azran. Disso Sigmund também se recorda com detalhes. É uma das lembranças que ele deseja apagar de sua mente, mas todas as noites as imagens de morte e destruição se projetam em seus sonhos.

“Talvez seja essa recordação o principal motivo de minha insistência.” pensou Sigmund e sua xícara de porcelana já estava vazia.

            Permaneceu mais alguns minutos em silêncio, de olhos fechados, permitindo-se inundar de más lembranças. Sphynx dormiu sobre a pilha de livro. Sigmund resolveu continuar seus estudos imediatamente.