segunda-feira, 28 de março de 2016

Contos soltos: Jornada para Elidoränne parte 1

“Crec!” fez a casca de ovo quando foi pisoteada.

- De novo – Dantho repetiu pela milésima vez. Sua voz mantinha o mesmo timbre irritante de autocontrole das últimas quatro horas.

Liam não queria mais reclamar, xingar ou amaldiçoar os céus (já havia feito isso dezenas de vezes antes e não conseguiu roubar sequer a mínima reação de seu mentor) contentou-se com um suspiro de alívio e voltou para o início da estrada de ovos quebrados. Suas sobrancelhas lutavam para impedir que as gotas de suor salgassem seus olhos – a tensão de se manter furtivo era tão insuportável quanto a de preparar o corpo para uma dezena de chicotadas e quando se faz isso por incontáveis vezes, o desespero passa a ter o poder sobre o corpo do indivíduo.

“É uma tarefa impossível” pensou Liam, mas não se convenceu disso. Não era ingênuo. Passara a acreditar que seu mentor era a pessoa mais indicada a lhe ajudar a alcançar seu objetivo. Desde que iniciara essa tarefa, Liam aprendeu não somente a desenvolver seus próprios métodos de furtividade, como também aprendera a manter a concentração, controlar a raiva e a organizar seus pensamentos de tal forma que, por vezes, notou-se num estado de mente em branco – sentia como se fosse um sopro, ou uma lenta folha seca a rodopiar, caindo da copa de uma árvore gigantesca. E não era só isso. Notou que podia ouvir o silêncio. Os barulhos mais ocultos daquele bosque, do bater das asas de um pássaro ao rastejar de um lagarto nas pedras passaram a lhe parecer íntimo e familiar.

A cinquenta e oito tentativas anteriores (Liam estava contando) o aluno havia ultrapassado a barreira de sua própria persistência. Quase se convenceu de que ele não necessitava daquilo, que já estava preparado para o que der e viesse – Não existe mais razão para que eu continue com essa tarefa. Ela é impossível – resmungou Liam.

- Quando essa certeza passar por sua cabeça, apenas se lembre do que você pretende fazer com esse ensinamento e calcule o que é racional e impossível novamente – respondeu Dantho, austero.
Liam pensou “o maldito está certo”.

A quarenta e três tentativas anteriores (Liam já não sabia porque sentia necessidade de contar) o ego tentou convencê-lo a desistir. Dantho era vinte e três anos mais novo que Liam (Liam tinha 42 anos), como um moleque feito esse poderia ensinar alguma coisa a alguém tão mais experiente?

E Liam sabia o quanto ele mesmo era experiente. Nunca foi um simples lavrador ou comerciante. Nem sequer era um simples aventureiro. Era um desbravador (e isso Liam gostava de dizer). Com suas próprias mãos e pernas ele havia escalado os montes gelados de Nevaska, feito a peregrinação dos nômades do deserto de Quéops, jogado as cinzas de sua primeira amante no mais alto vulcão de Sazancros, compartilhado a própria caça com as tribos de Chattur’gah e visitado os corredores mais luxuosos da Ordem Arcana. Então, porque precisava da ajuda daquele garoto?

Dantho, a sombra fugaz, era como o chamavam. Esse título tinha bastante peso na concepção de Liam. Seus passos não emitiam barulho. Ele era uma sombra e, por vezes, Liam se obrigava a olhar na direção de seu mentor na metade do caminho de ovos quebrados com receio que Dantho simplesmente esvaecesse repentinamente (parou de se preocupar com isso na centésima primeira tentativa).

É. Liam precisava da ajuda de Dantho. Liam não queria morrer logo agora que provara tantas vezes, a si mesmo, que sua loucura o tornara um personagem sobrevivente e único. Gostava de pensar nisso. Gostava de pensar nas suas aventuras e sua memória (talvez fortificada por causa de sua loucura) era exemplar para decorar com perfeição cada nuance das paisagens que ele presenciou. Ele nem precisava de tinta e pincel para reviver as emoções dos ventos congelantes de Nevaska, da morbidez dos pântanos da Floresta Cinzenta ou do relaxante toque das águas límpidas das cachoeiras de Rivergate (embora tivesse desenvolvido o hábito de desenhar essas paisagens, independente disso. Ele precisava mostrar ao menos uma minúcia da emoção que ele sentia ao alcançar um de seus objetivos).

Falávamos de loucura. Liam não consideraria sua temeridade como loucura não fosse o julgamento de outras pessoas. De todas as outras pessoas. Existia uma lógica diferença entre o palpitar do coração de Liam e o dos heróis. Heróis lutavam por alguma coisa. Estes eram destinados a salvar pessoas e eram necessários para o mundo. Liam era um desbravador, um herói egoísta (nem mesmo se preocupava com outras pessoas além de si próprio). Era movido pela curiosidade. Uma curiosidade insana de conhecer, de tocar e pisar em todos os lugares mais inalcançáveis do mundo. E esse sentimento é incontrolável, Liam sabe disso.

A única coisa que poderia impedir Liam de viajar para seu próximo ponto do mundo era a idade. O tempo era seu maior inimigo – “Desgraçado seja o tempo que quer ser o senhor de meu destino” replicou Liam, uma vez só. Não era de repetir as mesmas frases – e, sendo um humano... lhe sobrara pouco.

Com tanto tempo perdido em viagens, era curioso como Liam havia arranjado algum momento de sua vida para deixar um herdeiro (seu nome era Zeus, sua amante, quem sabe o nome?). Quando ficou sabendo da notícia, dividiu suas emoções entre a felicidade e a angústia. Qual homem (que preste) não cederia ao contentamento de ter um filho? Liam sabia que não era errado aquele sorriso bobo que insistia em desenhar no próprio rosto quando pensava em seu pequeno bebê. A angústia, por outra parte, porque sabia que o pequeno garoto seria a sua cura.

Uma cura. Liam sabia disso. Sabia porque havia acontecido a mesma coisa com Iorg (seu pai). Então, Liam decidiu que não poderia ver seu filho antes de concretizar sua última viagem.

Liam
“Isso tudo vai valer a pena” – pensou Liam na metade do caminho de casca de ovo – “Somente se eu for testado terei a chance de entrar e visitar Ellidoränne”.

Eis a última peregrinação do experiente Liam. Ellidoränne, a floresta encantada dos elfos. Um lugar onde jamais um humano ou membro de outra raça havia pisado sem ser devidamente encontrado e castigado pela raça que se julgava superior. Liam precisava contar a seu filho sobre aqueles bosques. Contar com detalhes.

- Você conseguiu – falou Dantho, interrompendo o pensamento do aluno.

Liam olhou para o chão ao redor e percebeu que estava se equilibrando num único pé, joelhos arquejados e braços estendidos como se estivesse numa corda bamba. Estava ridículo, mas isso não importava. A estrada de ovos quebrados estava às suas costas. Ele havia conseguido e, curiosamente, não havia sido o primeiro a ter notado isso.

***

- Então, você é Mandloran, o abandonador – falou Liam com o dono do casebre de barro, palha, panelas amassadas, lençóis frágeis de tanto lavados, lenha estocada, fogão de argila e janelas pequenas.

Dantho havia ficado a três meses atrás. Liam pagou a ele uma quantidade exorbitante de peças de ouro pelo treinamento (Liam não questionou, mas se martirizou durante uma semana tentando se contentar com o fato de que havia gastado uma nota para sofrer enquanto pisava em cascas de ovo que ele mesmo havia arranjado e, consequentemente, apanhado como um condenado num jogo de gato e rato que seu mentor criara para mais um de seus ensinamentos exóticos). Agora, ele precisava conhecer Ellidoränne antes mesmo de pisar lá. É por isso que Liam estava ali, naquele casebre isolado do mundo.

- Se sou, você deveria temer – comentou o dono do casebre, embaixo de seu chapéu longo de palha desfiada – alguém que carrega a alcunha de um traidor e que prefere viver recluso de tudo carrega bastante motivos para ser temido.

- Eu não o temo – respondeu Liam e estava decidido disso. Tentou observar os contornos daquele personagem e finalmente encarou uma orelha pontiaguda, típica dos elfos, se alongando por debaixo de seu chapéu. Era apenas uma orelha longa. A outra parecia cortada. Liam ficou curioso, mas não era esse tipo de conversa que ele pretendia ter com Mandloran.
Mandloran se sentou no chão, de pernas cruzadas, e serviu-se de um chá (deveria ser um chá, tinha o cheiro de chá, pensou Liam). Liam se sentou na mesma posição a pouco mais de dois metros dele e nem se importou em não estar compartilhando o “chá” com o abandonador.
Enquanto Mandloran se inquietava com o silêncio do visitante, Liam observava a moradia escassa do elfo – você deseja beber de uma das fontes de Ellidoränne? – perguntou o elfo misterioso.

- Não – respondeu Liam.

- Procura algum tipo de madeira em especial que só nasce nos bosques élficos?

- Não – Liam não se surpreendera com o fato de Mandloran estar passando tão longe da resposta.

- Deseja surrupiar uma das magias élficas proibidas? – aquela seria uma opção verdadeiramente audaciosa, julgava Mandloran. Liam percebeu isso porque o olhar do elfo finalmente havia se encontrado com o dele num compartilhamento de desconfiança.

- Não – Liam teve que repetir a mesma resposta, mais uma vez.

- Então, o quê? – Mandloran desistiu de adivinhar.

- Eu quero visitar a terra dos elfos o mais profundo que posso alcançar.
Mandloran cuspiu um pouco do chá que ainda estava em sua boca numa reprovação amedrontada. A resposta foi tão inesperada que o elfo abandonou a bebida e o chapéu de palha de sua cabeça.

- Você seria capturado logo no primeiro dia – adiantou Mandloran que agora parecia não se importar em ofuscar seus olhos verdes, sua orelha direita mutilada e o rosto fino e triangular – para passar por despercebido nos bosques élficos é preciso um treinamento incomum e...

- Eu já tive tal treinamento – Liam cortou o assunto – a sombra fugaz foi meu mentor.
Mandloran deveria ter se impressionado mais (pensou Liam) mas a única coisa que o elfo fez foi se silenciar e assentir minuciosamente com a cabeça - ... e o que seu mentor lhe ensinou?

- Eu aprendi que quanto menos filho da puta eu for, mais chances terei de alcançar meu objetivo – Liam concluiu aquela resposta ali, imediatamente. Nunca havia pensado nela antes - ... no sentido poético da expressão, claro.

- Sentido poético? – Mandloran de repente se viu fisgado pelo assunto.

- Sim. Se fosse no sentido literal, eu nunca teria chance. Literalmente, eu sou filho de uma prostituta, então...

Mandloran permaneceu austero e silencioso durante poucos segundos antes de se entregar a uma gargalhada incontrolável que consumiu alguns minutos da conversa. Liam não se importou com isso (estava mesmo torcendo para que o elfo tivesse bom humor).

- Esse é o tipo de piada que você nunca escutaria em Ellidoränne – acrescentou Mandloran, enxugando lágrimas de contentamento com as costas da mão.

- Eu vim à procura de cultura.

- Claro que veio. Sua cabeça está cheia de perguntas e elas virão junto com a tempestade que está por vir – ainda com um débil sorriso estampado no rosto, Mandloran observou as nuvens negras que cobriam o céu a poucos metros de seu casebre.

Sem se importar em explicar para seu único visitante em anos, Mandloran entupiu a lareira improvisada com tocos de madeira secos e acendeu uma chama que demorou a se espalhar. Pendurou uma chapa de madeira em frente à janela (a janela de seu casebre) e deu boas-vindas à escuridão amena que se propagou em seu lar assim que ele fechou a porta.

Liam podia estar preocupado, mas a única coisa que invadiu sua cabeça naquele momento foi a noite que provara do líquido xamânico oferecido pelos indígenas do Vale do Vento Escaldante, em Neblina. A noite não tinha lua, trovões ressoavam no horizonte distante e um princípio de fogueira começava a crescer entre ele mesmo e o mestre Punho de pedra.

Mandloran esquentou mais um pouco daquele chá estranho e se sentou em frente ao seu convidado com recipientes cheios de água esverdeada. Liam não foi convidado à provar da bebida, mas se serviu do mesmo jeito (embora não estivesse com demasiada fome ou sede).

- Por onde quer que eu comece? – perguntou Mandloran.

- Comece por você – respondeu Liam bebericando o chá verde e curiosamente com o gosto muito parecido com a bebida xamânica do mestre Punho de pedra.

***

Eu sou Mandloran. Somente. Sem sobrenome. (Liam não se importou com isso, também não compartilhava seu sobrenome) ... e escolhi abandonar meu lar à três vidas humanas atrás. Vocês, humanos, provavelmente já teriam se esquecido do cheiro e da paisagem de sua terra natal (já, desse trecho, Liam não concordou muito) mas, nós elfos, se nos concentramos muito no nosso transe, às vezes podemos sentir o cheiro dos crisântemos, lírios, narcisos e da terra molhada pelos rios límpidos de Ellidoränne. Esse lugar foi o meu lar e ele seria chamado de paraíso por qualquer outra raça.

Lá, a noite sempre tem lua. Um prata mágico que emana do céu sempre cheio de estrelas. De dia, o sol é glorioso, ameno e radiante. As árvores são gigantescas e esparsas. O caminho sempre está livre para os elfos, rodeado pelos anéis de flores e plantas elegantes. Os animais nunca fogem se não é temporada de caça. Riachos de água pura tingem o céu de arco-íris. Essa é a terra protegida pelos meus familiares.

Infelizmente, para alguns excêntricos, essa paz é inquietante. Eu sou um desses. Um dos insanos (Liam se interessou bastante nessa parte da conversa) que desejavam conhecer o resto do mundo. Não que eu considerasse Ellidoränne uma prisão. Ela é muito maior por dentro do que você pode calcular nesses mapas feitos por humanos. Existem mundos dentro de árvores, refúgios além das cortinas de água e impérios colossais abraçados pela natureza. Eu não poderia te explicar o porquê de minha decisão de abandonar aqueles bosques (e nem precisava, Liam o entendia muito bem).
Lahantas Shaed é o lugar onde brotou a primeira árvore. Regada de vida. De suas folhas brotam o orvalho capaz de curar até a mais terrível das doenças e maldições. Seus galhos tortuosos se espalham como um gamo, tentando alcançar o céu e quase o fazendo. Lahantas Shaed é mãe. A mãe de minha raça. Muitos humanos acreditam que ela seria a própria Gaiëha, mas estão enganados. A primeira das árvores é apenas uma representação física e mortal de nossa deusa, mesmo assim, um dos seres mais poderosos desse mundo em que você pisa, viajante.

Há muitas histórias sobre a primeira das árvores, mas todas se limitam a milhares de anos atrás, quando ela ainda interferia na vida de todas as raças. Nossa religião explica que ela foi plantada pela própria Gaiëha, que a assistiu crescendo deslumbrada e satisfeita com a criação. Gaiëha simpatizou tanto com a primeira de suas criações que decidiu regar o mundo com ela e para isso criou os isilindil, os pássaros azuis.

Quando Lahantas Shaed floresceu pela primeira vez, os isilindil coletaram suas sementes e voaram para além dos horizontes acompanhados por suas caudas anis e suas asas incansáveis. Os isilindil eram seres de pura magia. Durante a noite, voando alto, eles mais pareciam com estrelas cadentes. Muitos deles voaram durante dias, meses e anos. Pousaram em terras férteis e plantaram as sementes da primeira árvore. As sementes cresceram e deram forma as primeiras árvores de nosso mundo, ainda móveis e inteligentes. Dotadas de uma sabedoria incapaz de ser encontrada atualmente. A estes seres, nós elfos, demos o nome de elröhir, os primeiros entes. E foram os elröhir que deram vida aos demais entes e às árvores, aos bosques, às florestas, às selvas e vegetações variadas espalhadas pelo mundo. Os elröhir ainda vivem. São entidades capazes de guiar espíritos. Mentores daqueles que protegem a natureza.

E foi assim que Gaiëha contribuiu na criação do mundo. Ela o deu vida, beleza e inspiração. Seus filhos, feitos à sua semelhança, somos nós, os elfos. Éramos uma raça amigável. Os humanos e a maioria das demais raças civilizadas concordavam com isso. Se convenceram por muito tempo que a presença de um ou mais elfos na sua fila de cidades de pedra era um prestígio. Julgavam-nos sábios, poderosos e solícitos. E nós éramos. Confiamos nos humanos, principalmente, porque estes souberam pedir ajuda. Ensinamos aquilo que nos havia sido presenteado com sabedoria: a magia.

E nos arrependemos. A mente dos humanos se mostrou frágil demais e se corrompeu diante um poder que eles acharam que nunca iam dominar. Eles rasgaram o véu arcano, manipularam, dobraram, refizeram, como a costura de um pano muito velho, mas que ainda agasalha o suficiente. Nós os perdemos para a guerra. Muitos de minha raça derramaram as primeiras lágrimas de tristeza e fracasso quando assistiram o que os humanos fizeram um contra o outro usando o presente que lhes fora ofertado. Alguma coisa nos elfos havia sido roubada para sempre.


quarta-feira, 23 de março de 2016

Sobre cogumelos e infinita sabedoria


Kaiross achava engraçado como cogumelos pareciam com pênis. Se a teoria dele estivesse certa, Chattur’gah tinha um milhão de partes fálicas espalhadas, plantadas ao redor de raízes ou presas como sujeira nas axilas das árvores. Achava ainda mais engraçado o fato de ele fumar aquelas coisas.

Soprou a fumaça esverdeada do seu cachimbo de três ranhuras e riu, mostrando seus dentes amarelos e seu contentamento débil. Uma dezena de folhas caíram das árvores e foram guiadas pelo vento, mas Kaiross atribuiu aquele acontecimento ao caleidoscópio de cores perturbadoras que se propagava ao redor de seus olhos e fazia uma dezena de gafanhotos dançantes rodopiarem no ar enquanto tocavam violinos.

- Tem certeza que esse é o cara que Asafe nos recomendou? – reclamou Jack, ensimesmado.
Aramyn teve que afirmar, mesmo concordando com a desconfiança do halfling. – Parece brincadeira, mas esta é a única clareira habitada nessa região. – Khali pôde confirmar isso.

O grupo analisou os arredores e pareceu intrigado com o significado da palavra “habitável”. Aquele lugar era um antro do caos. Não era um local que algum deles pudesse considerar lar, mas, tinham que concordar numa coisa: parecia uma casa perfeita para a criatura feita de folhas e galhos que estavam assistindo fumar cogumelos.

As árvores se entrelaçavam como se estivessem numa eterna ciranda, de braços-galhos unidos, protegendo um trio de pedras pontiagudas encrustadas de símbolos xamânicos. Gaiolas cúbicas feitas de madeira com ossos de galinha pendurados, aprisionando pequenos montículos de bonifrates desmontados. Havia também penas que rodopiavam em espirais num barbante, uma dúzia de potes sujos contendo vísceras de criaturas aleatórias mergulhadas em água gelatinosa e o cheiro demasiado adocicado que invadia narinas e tornava tudo mais alucinógeno e colorido.

Ficaram ali, esperando uma reação. Aramyn já havia sido alertado de como lidar com pessoas ensandecidas e aquela coisa se encaixava bastante nesse quesito. Kaiross continuou sorrindo e olhando para o nada acima de seus olhos enquanto seguia um rastro invisível no ar – Dance para mim, pequena condessa.

- Agora já chega – Freya se precipitou com o machado em mãos e nem estava tentando ser ameaçadora – a gente tem um trabalho a fazer antes de chegar na maldita montanha e eu estou cansada de ficar assistindo esse demente.

- De quem você tá falando, mulher do machado? – Kaiross respondeu repentinamente, como se sempre estivesse participando da conversa – Você não sabe que o druida é uma figura de extrema sabedoria? – ele se levantou imperante e meia dúzia de folhas tomaram a liberdade de se desprender de sua armadura selvática. – Pois, eu sou um desses e sei que se vocês estão aqui é porque precisam se humilhar e pedir a minha indispensável ajuda.

- Err... sim, Kaiross – adiantou-se Aramyn afastando Jack com um leve toque ao notar que o pequeno não havia gostado da forma audaciosa com que a coisa-planta havia se dirigido ao grupo – Nós fomos indicados por Asafe, o vigilante dos espíritos, até aqui e, sim, precisamos de sua ajuda.

- Foi isso que eu disse, coroinha – Kaiross desceu de seu patamar de pedra enquanto escondia às pressas, e a plena vista, sua coleção preciosa de cogumelos – Agora sabem que eu não estava falando idiotices quando disse que os druidas são os maiores sábios desse plano – espanou com as mãos a sujeira de sua vestimenta vistosa de folhas e galhos verdejantes e deu-se a impressão que ele estava sentado ali a muitos dias.

O grupo se entreolhou e permaneceu em silêncio. Imaginavam que o druida tinha mais do que um pequeno discurso a apresentar.

- Controlem suas malditas mentes e falem logo o que vocês vieram me implorar! – Kaiross quebrou o silêncio com uma interpretação histérica de bruxo maligno. Alguns esperaram a risada maquiavélica no final da exclamação, mas isso não aconteceu.

Todos permaneceram assombrados. Não porque o druida parecia intimidador, mas porque não sabiam com que palavra começar aquela falácia. Todos sentiram uma repentina confusão apertar suas mentes. Era a simples presença daquela criatura inesperada que provocava isso. Uma aura alucinógena que deixava suas sanidades vulneráveis e, talvez, a causa disso fosse aquele olho. O olho esquerdo. Todos notaram que aquela órbita amarela lutava em saltar das pálpebras do druida e se movimentava rapidamente, a íris perscrutando um espaço diferente a cada piscadela paranoica.

- Nós perdemos um aliado recentemente. Alguém que julgamos indispensável para a nossa última luta. Sua alma ainda perambula pelas redondezas dos portões de mármore de sua raça e decidimos resgatá-la – respondeu Aramyn, com uma curiosa dificuldade de encontrar as palavras no meio da explicação.

- Hum. – Kaiross levou a mão ao queixo e por poucos segundos pareceu se esforçar para tomar uma decisão – Tudo bem – e quando teve, enfim, sua meteórica decisão, o simples dar de ombros da criatura-planta chocou até o menos interessado em julgar caráteres (Varuz, é claro).

Kaiross abriu caminho entre os heróis, praticamente desfilando entre eles e, minuciosamente, os obrigando a se afastar enquanto tomava um rumo totalmente desconhecido. O tempo que levou para um dos heróis reagir foi bem maior do que o tempo de decisão do druida.

- É isso? – vociferou Freya – “Tudo bem”?

Kaiross encerrou sua leve caminhada e disse – Vocês são o grupo que está indo até as Montanhas Tempestuosas enfrentar a primeira maldição, não é isso? – perguntou ainda de costas a todos.

- Bem... é isso – respondeu Khali, quando percebeu que Freya não iria responder.

- Algumas loucuras são imperdíveis – Kaiross respondeu e, apesar de todos do grupo observarem o druida de costas, todos tiveram a impressão de que a criatura-planta esboçava um sádico sorriso amarelo de contentamento. Mesmo Azanthe e o Ceifador, reclusos em seus espaços vazios e afastados, retribuíram os olhares de dúvida compartilhados entre o grupo.

- Então... – continuou Kaiross, alheio à desordem que ele provocava - ... alguém pode se encarregar do caminho? Estou completamente perdido.

(Um sábio druida perdido na floresta que é o seu lar?)

Depois de um dar de ombros, Khali precipitou-se acompanhado por Freya.

- Então, coroinha, me diz onde exatamente vocês precisam de meu precioso e ilimitado auxílio – Kaiross iniciou o assunto imediatamente logo depois de seus três primeiros passos e todos tiveram a impressão de que ele fazia amigos rápido (apesar de seu atípico comportamento).

- Bem, não sabemos. Asafe nos falou de um fogo que nunca se apagava e...


- Oh sim! A chama eterna... – Kaiross interrompeu admirado – isso vai ser intrigante – pôs o braço ao redor do pescoço de Azanthe e continuou a caminhada para através das árvores. Íntimo. – Você gosta de cogumelos?