quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Os ventos da tempestade e o sepulcro de mármore

A escuridão a cercava com braços de sombra que a envolviam em carícias. Ela era a amante. Cada elemento preso naquela escuridão maçante lhe era cativo. Lambiam sua nudez pálida e se hipnotizavam com sua desenvoltura cálida, pé ante pé, pisando em ilusão.

Eu não conseguiria me descrever como uma de suas sombras perseguidoras, pois o que me restava era o silêncio decadente que ela abandonava ao caminhar para distante do coração da montanha. Eu era um plano de fundo pouco detalhado e distante. Talvez, desnecessário. Mesmo assim, eu a segui.

E me arrastei, como tenho feito desde o primeiro fôlego da não-vida.

Eu sempre persegui um ponto final. Todos inevitavelmente se transformaram em reticências. Foi assim que me permiti consumir feito uma chama. Mesmo quando podia decidir para onde caminhava, meus pés perseguiam o casual. Então, fui atrás das pessoas que me interessavam. Os loucos. Loucos para viver. Loucos para expressar. Loucos pelo tempo não perdido. Aqueles que querem tudo ao mesmo tempo. Que não se desanimam esperando o prazo para, enfim, descansar para sempre. Aqueles que não falam sobre coisas óbvias e que se deixam arder. Arder feito brasa. Feito um incêndio que se propaga pela noite.

Mas mesmo o maior incêndio tem prazo para se apagar.

A primeira maldição olhou para o céu escuro de nuvens carregadas e desejou que a amplidão jorrasse lágrimas. Os ventos gritaram, os pingos de chuva caíram feito agulhas, relâmpagos formaram arcos luminescentes que ressoavam escondidos pelas nuvens escuras. E essas forças da natureza marcharam, como um exército ao comando de uma rainha.

Presumi que um dilúvio de morte iria abater os desavisados invasores.

***

Dentro do Apuaña


           O Apuaña era uma caravela de três andares. Definitivamente ela não ostentava o melhor dos vislumbres, seja devido ao seu pequeno porte, seja pela atual situação deplorável em que ela se encontrava. Quando adentraram a velha caravela, os heróis puderam ouvir seu piso ranger no esforço de sustentar um peso que a embarcação não sofria a muito tempo. Um solavanco e uma nuvem de poeira se estendia nos pés de seus novos tripulantes.

No convés principal havia espaço para dois mastros, mas apenas um ainda continuava intacto, apodrecido pela passagem do tempo. O traseiro possuía apenas os restos de estilhaços e fendas da madeira que um dia desabou, além de cordas de cânhamo frágeis que um dia serviram para hastear as velas. O mastro dianteiro ainda comportava os restos da vela rasgada e despedaçada. O vento trataria de desfiá-la completamente durante a viagem.

Na extremidade dianteira havia um timão emperrado e a visão do caminho por onde os heróis prosseguiam. Ali, Khali permaneceu atento durante quase toda a viagem, perseguindo o perigo que espreitava a escuridão adiante. Nenhum navegador era necessário, afirmou Asafe, o guia dos espíritos, assim que os aventureiros puseram seus pés na caravela. Dizia ele “O Apuanã já havia feito aquela viagem várias vezes e não precisava de alguém que o conduzisse”, e essa afirmação apenas aumentou as suspeitas do sobrenatural que a embarcação emanava.

A parte traseira era mais alta. Tinha-se acesso a ela após subir alguns pares de escadas. Lá em cima havia um amontoado de caixas lascadas, presas por redes e cordas, mas, simplesmente não havia nada dentro delas. Havia também o acúmulo de redes de pescas que os aventureiros julgaram como dispensáveis. O Ceifador permaneceu a maior parte do tempo na traseira do convés inferior tratando de seus assuntos silenciosos e dificilmente sendo perseguido ou vigiado pelos demais membros do grupo. Lá ele tentava racionar o resto de seu fumo e contemplava a fumaça que saía de seu cachimbo.

            Uma entrada simples, quase identificada como um alçapão vertical, dava acesso ao convés inferior, onde a desorganização e sujeira tomava conta. O grupo acostumou-se a deixar a entrada para o convés inferior sempre escancarada, de modo que qualquer barulho no piso superior pudesse ser ouvido com maior fluidez lá embaixo.

A primeira vez que viram o convés inferior, os aventureiros notaram que este precisava de alguma arrumação e, foi isso que fizeram. Estocaram os caixotes, enrolaram as cordas de cânhamo que haviam em demasia, bateram os finos colchões impregnados de poeira e estenderam as redes em varais improvisados, esfregando-as no intuito de livrar-se do mofo. Logo transformaram o lugar em algo aproveitável.

Descobriram um forno a lenha com algum estoque de carvão e desemborcaram uma mesa de pernas frouxas onde podiam realizar seus lanches. Nunca usaram o forno, pois carregavam a comida da viagem e não havia nada que pudessem fritar – chegaram a cogitar o ofício da pesca, mas decidiram que qualquer criatura trazida daquele rio lamacento poderia ser uma ameaça. Além disso a fuligem cobria o convés inferior com uma nuvem preta e, apesar de haver frestas e até uma condução que levava a fumaça para fora da caravela, esta não funcionava adequadamente e deixava o dormitório cheirando à madeira queimada.

            Finalmente, localizado na extremidade inferior da embarcação, havia um baú. O depositório estava cercado de runas de proteção que Aramyn reconheceu como as mesmas usadas na criação de um círculo de proteção. Acima do baú havia um esqueleto perfeito, segurando uma lâmina curvada que não havia sucumbido às ações do tempo, e cercado pelo limo e a umidade do lugar.

 Aramyn não havia detectado qualquer presença maligna, portanto livrou-se da ossada e permitiu, mesmo sob desconfiança, que o Ceifador tentasse abrir o depósito que se revelou apenas emperrado no final das contas. O exorcista analisou cada insígnia três vezes, tateando com a ponta dos dedos cada curva e baixo relevo. Logo depois revelou à Ragnar o achado, reforçando sua teoria de que o baú era um tipo de prisão.

- Então, talvez consigamos algumas respostas com ele. – afirmou Ragnar afastando-se do baú.

- Mas, como você pretende arrancar mais informações de um baú?

- Não do baú. – o anão recolheu o esqueleto e o moldou inteiro em cima do depósito.

            Não era a primeira vez que Ragnar comunicava-se com os mortos. A habilidade chamou a atenção do Ceifador que, debaixo de seu capuz, manteve-se atento à negociação necromântica. Foram poucas as palavras sussurradas para a conjuração da magia. Ragnar tocou a parte superior do crânio e o apertou enquanto pronunciava as palavras que o conduziria ao milagre. Todos no recinto escutaram o barulho de ossos estalando e, enfim, a mandíbula arreganhando-se para dar passagem a um sonoro eco de respiração profunda.  

“Quem se pronuncia?”

“Sou Apuanã, o filho dos ventos.”

“O que faz nessa embarcação?”

“Sou o veleiro, o timoneiro e o vigilante.”

“Qual o propósito deste baú?”

“Aprisionar. ”

“ Aprisionar o quê?”

“Qualquer mal que predominar no espírito da floresta.”

“Quanto tempo durará essa viagem?”

“Muito menos do que os mortais possam desconfiar.”

            E então abandonou os questionamentos. O baú foi esquecido. Era muito pesado e grande para ser carregado. Concordaram que o círculo de proteção poderia ser desenhado pelos clérigos e que, inclusive, havia um exorcista no grupo habituado a fazer isso. Não perturbaram mais a alma de Apuaña, mas descobriram que a embarcação, enfim, era conduzida por algo que estava além da lógica e prosseguiram viagem acostumando-se com os percalços e desafios na trajetória indicada pelo rio Aomame.

***

            O som do arrastar do casco da caravela sobre a lama das profundezas do rio Aomame finalmente indicara que a viagem fluvial havia se encerrado. Os aventureiros se entreolharam confusos de suas convicções. Estavam viajando a algum tempo sem enfrentar qualquer percalço, mesmo assim, pareciam exaustos, como se a ansiedade tivesse devorado suas vontades.

Mesmo assim pisaram na lama do Pântano das Moscas e sentiram a mistura do alívio da terra firme e a angústia do ambiente pintado de cinza e a muito não visitado por heróis. Observaram o céu carregado, as nuvens suportando um peso a dias com a intenção de, propositalmente, derramar-se sobre eles.

            Galhos tortuosos saltavam de poças salgadas que criavam bacias de líquido sujo e desafiavam os transeuntes a prosseguir pelo caminho certo ou serem devorados pelo próprio pântano. Enxames de moscas pousavam no que bem podiam, alimentando-se do ambiente podre e malcheiroso, de esqueletos sauróides de criaturas que haviam se afogado a muito na região e seus ossos agora serviam de pontes seguras para atravessar o ambiente inóspito.

- Enfim saímos de um ambiente degradante para um insuportável! – exclamou Jack – Essas malditas moscas são mais irritantes do que a bárbara.

- Nossa sorte é que elas são tão miúdas e desprezíveis quanto você, Jack – respondeu Freya enquanto analisava a ossada de vértebras que se estendia pelo caminho – elas não vão nos fazer mal enquanto nos preocuparmos em cobrir nossos ferimentos.

- Freya, seria melhor se você se concentrasse em me ajudar com os rastros e caminhos certos – resmungou Khali.

- Desde quando o índio acha que pode dar ordens? – reclamou a bárbara enquanto olhava atenta para a névoa que agora cobria o grupo inteiro.

- Não estou dando ordens, estou recomendando. Qualquer distração aqui e o grupo inteiro morrerá afogado nesse pântano.

- Engana-se você se acha que não sei disso, Khali. – resmungou a bárbara e chutou um crânio para uma das poças profundas – mas essa névoa não vai me permitir fazer muita coisa. Está muito densa.

            Mal havia encerrado o assunto e uma repentina rajada de vento golpeou a fronte do grupo e espalhou a névoa. Os ventos circundantes soaram rápidos e varreram alguns metros de horizonte após estapear o rosto dos viajantes.

- Porra! – gritou Jack indignado – você poderia nos avisar antes de lançar suas magias, Varuz.

            Varuz recompôs-se da posição realizada para conjurar a lufada de vento e esboçou um sorriso prepotente.

- Contente-se com o resultado. – afirmou o mago.

- Isso vai nos ajudar pouco. A névoa consumirá nossa passagem rapidamente. – observou Khali. 

- Então seria melhor que você fechasse a boca e se concentrasse no caminho, índio. – desdenhou Freya.

            Foi isso que ele fez, cansado de tentar ser complacente às atitudes de seus aliados.

***

Diálogo entre clérigos

- Eles sempre foram assim, Ragnar. Você sabe do que estou falando. Esses insultos. A princípio eu achei que um dia isso iria resultar em nosso desmanche, mas descobri que estava muito errado em minha desconfiança. Eles falam porque precisam saber que estão vivos e que estão vivos não somente por eles mesmos, mas para os outros. Mesmo que eles neguem isso, esse grupo acostumou-se com a dependência, no estado menos literal dessa palavra. Uma dependência que nos deixa forte. Eu não sei se suportaria o resto de minha caminhada não fosse por eles e, é claro que, dentre nós eu seria o único a admitir isso sem balbuciar. No fundo de suas razões, todos sabem o quão estamos ligados. Eu os conheço como ninguém. E isso não é prepotência de minha parte. Reconheço o esforço manipulativo de Jack para se manter incontestavelmente útil ao tentar engrandecer seus feitos e criticar com sátiras sarcásticas as habilidades dos outros. Noto no silêncio meditativo de Varuz sua capacidade de manter-se alheio às disputas e, assim focar-se ao objetivo que ele julga ser o mais importante. Percebo na selvageria de Freya a missão eterna de mostrar-se forte, não somente nos requisitos indicados por ela mesma, mas pelos outros e, venho estudando as atitudes quase mártires de Khali em suas tentativas de ser aceito no grupo o mais depressa possível. Todos nós somos difíceis de lidar, mas somos simples em essência. Sabemos que estamos no lugar certo, na hora certa e que estaremos juntos na luta final.

- Foi um bom discurso, Aramyn. Não sei para que finalidade, mas, foi um bom discurso. – Assegurou Ragnar enquanto espantava as moscas de sua barba.

- Queria impor ênfase no quão acho importante esse assunto para, enfim, tomar coragem e lhe fazer uma pergunta que deveria ter sido feita a algum tempo, pois reconheço que dentre meus três novos aliados, considero que você seja o mais aberto a argumentos. – disse isso e estreitou os olhos em direção à Azanthe e o Ceifador, um par de caminhantes obscuros, presos em suas próprias memórias.

- Os humanos dizem que os anões, por viverem muito, tendem a alongar conversas demasiadamente, pois para nós o tempo consome menos. Mas você, jovem Aramyn, deve ser uma das exceções da sua raça, assim como eu sou da minha. Faça-me a pergunta de uma vez e eu tentarei respondê-la da forma mais precisa possível, se eu for capaz.

- O que você tem a me dizer sobre seus aliados?

- Então é isso? – pôs-se em interrogação, procurando as palavras certas – Acho que devido a minha vida corrida e da quantidade de aliados mortos em combate, os quais eu nem pude me despedir corretamente, acabei me desinteressando pelo conceito da empatia. A única verdade é essa, Aramyn. Muitos vieram e foram embora muito cedo para o reconhecimento de um anão. Vou tentar te formular alguma desculpa plausível. Eu diria que conheço tão pouco meus aliados que desconfio deles.

            Aramyn não pôde disfarçar o semblante de surpresa perante essa afirmação. Ragnar reavaliou o rosto de Azanthe. Um par de olhos descoloridos fitavam o nada. O arqueiro estaria enxergando através do nevoeiro ou apenas seguia passivo a todos, sem discordar ou concordar com qualquer coisa? Era difícil saber. Aquele definitivamente não era o Azanthe de sempre.

- Eu poderia lhe afirmar que conheço o Azanthe como os fios de minha barba, mas estaria mentindo. Eu o conheci em sua plena juventude e lealdade à Azran. Sei que ele enfrentou o surto da loucura algumas vezes na vida. Muito mais do que qualquer um de nós. Eu não poderia te dizer se o semblante apático de meu amigo é devido à fortaleza que ele adquiriu ao suportar os empecilhos de sua mente ou se ele apenas está se deixando finalmente esmaecer perante o infortúnio de seu destino. Eu me preocupo com ele, é verdade. Tirei-o das trevas na nossa luta contra a muralha, mas, desde esse momento não consegui extrair nada de suas confissões. Ele parece ter esquecido boa parte de seu passado. Isso é bom e ruim. Mas, talvez, ele esteja recuperando os vestígios perdidos de sua memória, dia após dia, como se o silêncio lhe permitisse revirar o baú que se tornou sua cabeça. Outra verdade é que temo fazer-lhe determinadas perguntas. Acho que ele está protegido pela dúvida e se eu lhe der algumas certezas, não sei bem se ele continuará a ter forças para escolher se manter vivo.

- Definitivamente, eu também não tenho muito a dizer sobre o Azanthe. Seu comportamento é intrigante. Seu nome é relativamente conhecido. Eu não poderia dizer uma só palavra sobre ele, mas já ouvi alguns bardos cantarem sobre sua personagem. Isso é esquisito....

- Esquisito? Porque?

- Ter um alvo das canções bárdicas conosco. Eu fico tentando ligá-lo a aparência descrita nos versos, mas, nada parece convincente agora.

- Entendo. Acho que qualquer um ficaria assim depois de ter sua mente dividida em alguns pedaços.

-  E quanto ao Ceifador?

- Para falar a verdade, ele não está a tanto tempo conosco. O que sei é que ele tem um objetivo a ser alcançado aqui e que é exageradamente soturno para esconder até os mais sutis detalhes. Porque ele faz isso, eu não tenho a mínima ideia.

- E isso não te preocupa?

- Sinceramente? Não, por enquanto. Acho que ele está muito focado no que quer que ele tenha a fazer aqui. Todos já notaram seus repentinos desaparecimentos. Parece que ele não é do tipo que faz amizades ou alianças duradouras, mas conhece seus limites e, enfim, precisa de nós. Isso, talvez, o torne mais leal que a maioria aqui, até um ponto culminante.

- Parece que você tem alguma confiança nele.

- De forma alguma. Sempre tenho a sensação de que o grupo inteiro está sendo usado e isso aumenta a brecha de desconfiança que tenho para com ele. Ser leal até alcançar seu objetivo é uma coisa, mas ele pode se tornar um inimigo futuramente, quando sua lealdade não for mais referente à nós.

            Foi sob o julgamento clerical que as nuvens resolveram desabar suas lágrimas. Romperam-se acompanhando os relâmpagos e trovões e o que já estava encharcado pela água salgada, agora havia se tornado uma torrente líquida que chovia feito agulhas nos heróis.
Ragnar ficou paralisado. Sua barba ficava pesada devido ao acúmulo da água e sua armadura começava a tornar-se um incômodo. De repente, a cada passo, ele podia sentir o resvalar das bordas de cada filete de aço da sua vestimenta e os imaginava cortando, vagarosamente e incessantemente sua carne. Seu coração já não batia de forma coordenada como antes. Ele rufava. Como havia feito uma vez ao enfrentar a nevasca que se estreitava pelos portões do Desfiladeiro de Bahamut e enquanto empunha o lampejo divino contra a alma maculada de Azanthe. Não gostava daquela sensação. Significava muito mais do que apenas mal-estar. Era, de certo, um mau presságio.

- Ragnar, você está bem? – Preocupou-se Aramyn encarando os olhos turvos do anão.

- Eu estou. – não estava – Precisamos adiantar nossos passos. Quero resolver isso logo.

            Aramyn assentiu positivamente, deu passagem ao anão, mas desconfiou de sua marcha exaltante. Percebeu que o que Ragnar queria resolver não estava inteiramente relacionado ao combate que teriam no final do dia e, por isso, lamentou, pois descobriu que além de não reconhecer as atitudes de Azanthe e do Ceifador, também não tinha total controle sobre sua empatia para com o anão.

***

            Não importa quantas horas eles haviam perambulado por aquele pântano. Não importa o quanto a ansiedade estava consumindo a paciência de cada um até aquele momento. O primeiro desafio havia chegado cedo demais.

Os heróis tiveram o vislumbre do que esperava por eles na porta de entrada. Primeiro viram os relâmpagos cortarem o céu desorganizadamente, desenhando arcos elétricos que se uniam e se interligavam às rochas pulsantes incrustadas de símbolos xamânicos. Os menires eram o plano de fundo da guerra que estava prestes a ocorrer, eles ecoavam o grito da montanha, e a eletricidade azulada faiscava, dançando pelo céu cinzento como uma serpente de língua afiada. Em cada menir havia um orc praguejando pelas forças da natureza e pareciam controlar a intensidade furiosa da chuva que caía cegando a passagem que se amontoava de acúmulos de lama e água que escorria por todos os lugares.

A lama tomava uma dezena de formas que rapidamente eram lavadas pela chuva e davam o contorno a criaturas gigantes que se desenterravam com a ajuda de seus braços volumosos e troncos robustos preenchidos pela gordura barrenta. Os ogros cuspiam a lama e vomitavam a água suja. Eles escancaravam suas bocas de dentes apodrecidos durante seus urros de violência e pareciam aumentar de tamanho enquanto arrastavam troncos de árvores, reforçados com espinhos e ossos pontiagudos atados às extremidades, para serem usados como armas. Às suas costas os relâmpagos promoveram mais um espetáculo de faíscas voadoras quando ecoaram seus trovões e foram acompanhados por mais duas dezenas de orcs que saltaram de seus covis e se enfileiraram. À passos longos, se atropelavam, tomando passagem entre os gigantes.

A chuva pesou ainda mais. O vendaval arrastou as gotas de água que salpicaram o rosto dos aventureiros, e estes fecharam seus olhos, protegendo suas faces do castigo da tempestade. Podiam escutar o barulho dos pingos a açoitar os escudos e as armaduras metálicas num tinir discordante, agudo e perturbador. Os heróis se preparam de algum jeito, esperando a investida que acabou por não ocorrer.

            Os orcs e ogros pararam ainda a muitos metros. Vociferando de forma animalesca. Quatro gigantes carregavam consigo enormes tambores de guerra e começaram a retumbá-los. Um som tão alto quanto o trovão ecoou preenchendo os corações dos aventureiros de medo. Os orcs mordiam o ar, como cachorros desdentados, quebravam pedras e crânios depositados no chão com seus machados grandes. Colhiam punhados de lama e espalhavam pelo rosto e corpo desnudo. Eles clamavam pela violência, pelo sacrifício e guerra e estes eram os domínios do deus Kaz, a qual todos os orcs de Chattur’gah veneravam. Os heróis mal podiam ver as máculas que corroíam e feriam a pele cinzenta dos orcs, pragas permanentes, rodeadas de pústulas e moscas, vermes que se alimentavam da carne morta e ajudavam a secretar o resíduo podre que se acumulava em cada tumor.

- Então, quem teve a ideia de vir até aqui mesmo? – perguntou Jack tentando disfarçar o terror que 
sentia ao se deparar com o destino tão próximo.

- Precisamos nos concentrar. A maioria de nós pode enfrentar até três deles ao mesmo tempo. – comentou Aramyn tentando confortar seus aliados.

- Concentrar-se aqui vai ser um desafio. – balbuciou Varuz enquanto tentava manter-se focado afim de perceber se mais uma dúzia de criaturas iria surgir das poças de água suja a qualquer momento.

            Freya ficou calada, como nunca ficara antes, diante o desafio. Todos, enfim, esperaram suas ameaças desnecessárias aos inimigos – aquilo nunca funcionava, mas, por alguma razão, todos sentiram falta de um “eu vou arrancar suas cabeças! ” praguejado pela bárbara. Precisaram se acostumar com o barulho dos trovões e da chuva acompanhados pelos gritos ameaçadores dos orcs que apenas esperavam enquanto o medo se alastrava nos oponentes.

Aramyn agarrou-se ao símbolo sagrado e pronunciou, quase sussurrando, suas preces. Ele se surpreendeu quando a bênção não o alcançou. Khali e Azanthe dispararam suas flechas e analisaram a dificuldade que a chuva interpunha. Notaram o quão impossível era fazer um disparo a longa distância, pois suas munições eram facilmente arrebatadas.

O Ceifador encarava a morte e disso ele bem sabia, pois calculara as chances, reconfortara-se com a sombra da ruína e decidiu entrar na luta com a sapiência de um devoto do perecimento. Varuz sentia sua consciência ser partida em quatro pedaços e se indignava quando as palavras de sua conjuração se perdiam no nada, impossibilitando suas magias.

            Ragnar manteve-se austero. Notou os segundos que o grupo ganhava enquanto os inimigos rosnavam e se apresentavam como os piores pesadelos possíveis. Seus aliados mal puderam impedi-lo quando, a passos firmes e inundados pela lama, ele se adiantou, escudo e coração em mãos.
- Acabou! A mácula que vocês e sua rainha despejaram sobre essas terras está prestes a acabar. Vocês já sabem disso! Reuniram-se com o único propósito de mudar seus destinos, mas se ajoelharão perante o fado! Alguma coisa muito grande nos trouxe até aqui e ela avassalará vocês desse resto de mundo! Urrem o quanto quiser, pois seus últimos ecos serão o da dor da agonia!

            E os trovões pareceram respeitar a difamação de Ragnar. E os orcs pareceram entender as suas ameaças. Rebelaram-se contra a primeira estratégia e avançaram famintos pela violência. Todos notaram, naquele momento, que, enfim, a luta havia começado.



Relato: Ragnar

O vazio na alma que todos nós temos. Eu já o senti três vezes. Essa é a quarta. Posso senti-lo como uma pedra entalada em minha garganta. O primeiro orc saltou e meu machado atingiu-lhe na face, partindo-lhe o crânio. Um.

Os segundos que antecedem a última dor são estonteantes. Apesar de tudo eles são os mais esperados. Um segundo orc jogou-se contra mim e eu o arrebatara levantando seu peso com os ombros. Usei o escudo para arrebentar as fuças de um segundo. Dois.

Eu sempre carreguei esse paradoxo. Sinto como se tivesse adiado o último fôlego algumas vezes. Minha mente as vezes me perturba com o discurso do merecedor. Escuto os gritos e os passos de meus aliados se aproximando. Sim, mesmo em meio a tudo isso, consigo reconhecê-los. O machado resvala o peito do orc e ele grita numa mistura de dor e fúria antes de cabeça saltar para fora do pescoço. Três.

A vida dos anões é longa. Ela precisa ser longa. Quantas coisas foram deixadas para trás? A marca que me fora estampada no rosto à ferro quente. O frio lancinante dos portões de gelo. O vômito ácido que preenchera minhas costas de cicatrizes. A sombra que se propagou pelas muralhas. Elas representaram alguma coisa, até agora? De verdade? Os ogros estão próximos demais. O retumbar preenche meus ouvidos e eu tenho a impressão de que eles estão sangrando. O tacape atinge o chão no momento em que consigo girar meu corpo. Ele espalha mais água e lama por todos os lugares. O sangue e os fluidos de um orc também. Quatro.

Meus caminhos não se entrelaçam. Eu estou num monte de lugares ao mesmo tempo, esperando para presenciar. Esperando para vivenciar e, então, sobreviver. Mas chega o momento em que a chama se extingue, um momento em que ela precisa de seu último momento de combustão. A lâmina do machado criou um par de fendas entre os joelhos do ogro. A criatura fraquejou e ajoelhou-se enquanto eu me joguei por debaixo de suas pernas e meu esforço bruto fez com que sua coluna se rompesse fatalmente. Cinco.

Dez são as instruções descritas na grande rocha. A pedra da lei. O monumento divino plantado no reino em que fui exilado. As leis me fazem um anão. Eu poderia ter me esquecido disso, mas me recordo habitualmente, porque ainda preciso me mostrar um. E, então, o céu rompe e um raio serpenteia criando um caminho aleatório, como uma fenda no chão. Ele chega tão próximo que sinto minha carne tremer, derreter-se e pregar-se às placas de metal da minha armadura. Desvencilhei, mas ainda tive tempo de bloquear o machado orc com meu escudo e contra-atacá-lo com um golpe súbito em sua jugular. Seis.

Dez motivos para me manter de pé. Meus pés e braços formigam devido ao peso de tudo. Metal, lama, sangue e corpos. Um segundo raio estoura à minha direita e, novamente não consigo evita-lo. Agora posso sentir o cheiro de minha pele queimada. Meu joelho esquerdo encostou-se no chão, mas, eu sei, ainda posso me erguer. A lâmina de um machado orc resvala em meu nariz e provoca ardência. Jogo-me sobre o inimigo a cabeçadas. Ele cai e eu vejo suas tripas jorrarem quando enterro minha arma em seu estômago. Sete.

A luta transcorre inconscientemente. Eu sei que meus aliados estão ao meu redor, mas não consigo vê-los. Eu sei que uma multidão de orcs e ogros está por vir, mas o ogro a minha frente é a única coisa que interessa agora. Um golpe certeiro no pulso do gigante e ele se livra da arma, grita de dor e me dá brechas para afundar novamente meu machado em seu peito. Peço para Hefasto uma nova chance. Mas será que ele ainda está ouvindo meus pedidos ou somente me usa como um guerreiro fanático? Oito.

Será que essas mortes estão sendo apreciadas? Será que elas são o bastante para representar a minha fé? Um dos ogros caiu de joelhos perante mim e eu não me recordo se fui eu o responsável por isso. Enfiei meu machado entre as suas costelas e tive algum trabalho para tirá-lo quando o gigante despencou. Um dos orcs me empurrou e o chão enlameado finalmente foi o suficiente para permitir que eu tombasse. O orc deixou cair seu machado sobre mim e eu senti o peso da violência quando meu escudo interrompeu seu ataque. Então, novamente, o chão tremeu. Um par de relâmpagos percorria um trajeto em espiral e fez do orc à minha frente, um estouro de carnificina. Mas o vórtice de eletricidade não encerrou seu dano, atingiu-me e arrancou-me o escudo das mãos. Meu corpo elevou-se alguns metros e uma fumaça, exalada de mim mesmo, preencheu-me as narinas. Caí novamente, provavelmente a alguns metros de onde o raio me atingira. Um orc atingira meu peito com seu machado. Chutei suas canelas, atraquei-me a ele e segurei seu pescoço, apertando-o com mãos de urso até ele engasgar-se pela falta de fôlego. E um novo raio despencou atingindo-me nas costas e fazendo meu corpo ficar paralisado. Nove.

Alguém gritou meu nome. Talvez tenha sido a morte. Uma nova rajada de raios me atingiu. Os orcs xamãs praguejavam escondidos em seus menires. Eles comemoravam gloriosamente sua vitória sobre um inimigo. Alguém se interpôs em meu caminho, derrubando um dos ogros que pretendia me esmagar. Eu não podia enxergar mais nada direito, minha visão estava turva, minhas mãos apertavam alguma coisa no chão. Poderia ser lama. Poderia ser minhas tripas. Meu corpo cedeu. Destravei alguns pinos de minha armadura e a senti rasgar meu corpo enquanto tentava se separar de minha carne queimada. Dez.

O céu vociferou. Era a voz de alguma coisa imensa. Poderia ser o desdém de um fracasso. Poderia ser a piedade de meu deus. Poderia ser a minha alma vazia. Senti a voz desabando, laçando-me como um raio. Ela elevou meu corpo novamente e me sustentou alguns segundos. Horas. Minha pele rasgou-se, o metal desprendeu-se de meu corpo e levitou vagarosamente ao meu redor. Em cima, dos lados e embaixo. Eu estava voando. Caindo. Fechei meus olhos.

(...)Abri-os novamente. Era uma escadaria de mármore. A minha frente, um portão de pedra cravejado de runas anãs e o alto relevo perfeccionista das Hostes Eternas. O purgatório de minha fé.

***