quarta-feira, 9 de maio de 2012

A última escuridão tingida de esplendor

E o sangue tingiu a neve de vermelho.

Centenas de corpos mutilados se estendiam no inverno rigoroso das planícies de Azran, misturados aos cadáveres humanos haviam criaturas abomináveis, saídas de um pesadelo ou libertadas de algum abismo densamente profundo. Yang sentiu a dor nos músculos enquanto o sangue quente banhava seu corpo.

Havia nele muitos ferimentos, mais do que um simples mortal poderia aguentar. Ajoelhou-se sobre o círculo de morte e as lágrimas limparam seu rosto imundo. Quantos aliados ele havia perdido naquela luta, quantos mais iria perder, foram esses pensamentos que fizeram o experiente samurai se arrastar pelo cemitério sem se importar com a perda de sangue.


O céu estava escuro aquele dia, as nuvens cinzentas insistiam em não deixar desabar a chuva purificadora, porque aquela guerra não havia acabado. Os sentidos de Yang perderam a acuidade de sempre, agora, os corpos irreconhecíveis no chão eram apenas borrões que atormentavam a mente dos menos corajosos.


Havia uma imagem na cor de sangue que se estendia mais adiante e parecia se aproximar a cada segundo. A deformidade foi analisada e o foco da visão de Yang conseguiu enxergar a face do inimigo: Lorde Suzaku, o responsável por tanta angústia, o patrono das traições e o mensageiro da discórdia. Lorde Suzaku usava sua armadura de cor rubra e carregava sua espada de lâmina única, ela parecia absorver toda a tragédia do local e ficava mais forte, quase que podia ferir um curioso apenas por olhar.

- Acaba aqui, Yang. Chegou, então, a tão esperada hora do lamento de sua teimosia. - indagou Suzaku com sua lâmina assombrada sedenta por sangue.

Yang ergueu suas armas, um par de katanas responsáveis pela foice de vários inimigos. Estas foram o presente de sua determinação, as lâminas mais fiéis do mundo: Masamune, a lâmina defensora, condensava o ar a sua volta e o transformava em uma barreira invisível capaz de deter o avanço de golpes mortais, enquanto a Muramasa dissipava as correntes de ar num furor devastador rasgando o metal e a carne com a mesma facilidade que uma tesoura corta o papel.


Lorde Suzaku não carregava uma arma menos impressionante, era apenas uma, mas a Chama Negra havia sido batizada pela essência de deuses mortos, com ela o lorde roubou a chama divina de Sagramon e através dela os poderes absorvidos da Trindade Macabra podiam ser vistos por olhares perturbadores. A Chama Negra consome tudo que toca, ela não apenas mutila e incendeia a vítima como também gera uma quebra no padrão de átomos capaz de se espalhar pelo restante do corpo.

- As trevas engoliram a luz, mortal - explicou Lorde Suzaku - Não há mais, nem sequer, alguma divindade na qual você possa se prender. A sua está morta e você acaba de conhecer o responsável por isso.

Era difícil para Yang ouvir palavras tão convincentes. Suzaku era conhecido pelo seu poder de persuasão e, por isso, manipulava tão perfeitamente quanto matava, mas, naquela ocasião, o próprio senhor da traição estaria dizendo a verdade: Alrûne, a divindade guardiã havia sido derrotada e Yang encarava aquele que fora capaz de realizar tal feito.
Yang, o último dos heróis sobreviventes, encarou aquele desafio como o último e, por isso, não desvencilhou, partiu para um ataque interrupto. As lâminas de ataque e defesa dançaram em pleno ar descrevendo arcos de vórtice cortante e ameaçaram a vida do inimigo.
Lorde Suzaku se esquivou do primeiro golpe e, em seguida, resvalou a Chama Negra contra a Masamune com uma precisão infalível. O choque entre as lâminas ocasionou um impulso e fez com que os dois se afastassem metros. Yang sentiu um calor indescritível na mão esquerda, um caminho de veias enegrecidas contornaram seu braço e drenaram o pouco da energia que lhe restava. O braço atingido perdeu forças e a Masamune tremeu e fraquejou em sua mão.

O inimigo não esperou por uma reação e como uma labareda de chamas, atravessou o corpo de Yang
e ferveu o sangue do samurai. Por alguns instantes, Lorde Suzaku permaneceu intocável, como que preenchido pelas chamas profanas que cercavam sua arma. O sangue em ebulição lutou por uma fuga e os ouvidos, nariz e boca de Yang ficaram inundados. Lorde Suzaku, com um giro, acertou as costas do adversário e fez com que ele vomitasse uma golfada de sangue quente que caiu como ácido em cima dos corpos mutilados da última batalha. O último herói caiu.
Um círculo de líquido vermelho incandescente jazia ao redor do corpo de Yang.




- Você é fraco demais para me enfrentar - falou Lorde Suzaku, desdenhoso.

Conforme seu desejo, a chama negra que lhe encobria a arma agora estava em volta de seu braço direito, como se ele fosse capaz de manipular aquela energia tão desconhecida com aptidão inigualável.

- A chama divina se molda a mim assim como se moldou ao aspecto de Hefasto e de Sagramon. O meu aspecto é muito superior ao dessas divindades,
minhas chamas queimam tudo, dissipam até o próprio fogo, não existe ar, só cinzas jogadas no vácuo, a água não se evapora, ela desaparece como se nunca tivesse existido. O metal, a carne e o sangue, portanto, são incapazes de conter a sede de destruição da Chama Negra.

Lorde Suzaku estendeu a mão e se aproximou das costas de Yang preparando um golpe mortal e paciente. Yang, entretanto, ainda escondia uma centelha de vida. Ele se virou e golpeou o braço do inimigo com a Muramasa. Tal foi sua surpresa quando viu a mão envolta de chamas negras impedir o avanço de sua espada e transformá-la em uma nuvem de pó quase instantaneamente.

Aquela arma, forjada pelos ancestrais e considerada a mais perfeita dentre todas sucumbia ao simples toque do inimigo. Os estilhaços viraram pó e o pó virou vácuo. Não havia mais chances de vitória, mas isso não podia passar pela cabeça de Yang naquele momento. Aproveitando-se do descuido do inimigo, a Masamune descreveu um rastro rasteiro contra o corpo de Suzaku, mas foi interceptada antes de causar qualquer ferimento.

Yang quase foi capaz de sentir o gemido lamuriante de sua espada defensora se contorcendo e quebrando como vidro ao encontrar a lâmina do adversário, mas permaneceu viva, lutando contra a própria dureza e incapaz de sustentar outro contragolpe daqueles. Lorde Suzaku não queria mais lidar com um inimigo que apesar de ser notoriamente inferior permeava em esperança doentia. A Chama Negra consumiu o ar e as cinzas ao redor de tudo. E transformou o tudo em nada. A Masamune fraquejou. O impacto eclodiu e o corpo de Yang foi erguido alguns centímetros do chão enquanto ele sobrevivia à fenda de vácuo criada pelas chamas consumidoras.

Segurando-se ao frágil fio de vida, Yang foi cuspido para fora do vórtice e se arrastou pelo chão até encontrar seus companheiros mortos. Segurou o fôlego num breve suspiro que ainda podia exercer, com o cabo da Masamune ainda em mãos, mas que agora se tornara inútil. Um de seus olhos não abria mais, suas pernas latejavam arqueadas procurando o resto das forças que se esvaneciam de seu corpo e o braço apodrecia batizado pela energia profana transmitida pelo toque do inimigo. Quando ele se levantou seus cabelos esvoaçaram, atingidos pelo vento frio que também fora expulso do vórtice de vácuo, junto com este, resquícios da lâmina e poeira flutuaram e criaram uma nuvem obscurecente rente à visão do samurai.

Seria a sua sina morrer ali, sem conseguir ao menos ferir o inimigo? Levantou o rosto e fitou o lorde
traidor, com sua armadura macabra que parecia gotejar o sangue dos inimigos que ele havia derrotado. Agora a lâmina e o braço nu estavam envoltos da chama negra, uma energia que ele não poderia sequer tocar sem que esta carregasse sua destruição. O sangue subiu-lhe pela garganta, avisando que um veneno mortal havia se espalhado com velocidade por seu corpo, sua pele
quente sentia o sangue borbulhar e os ossos se fragilizaram. Yang não podia dar um passo sequer sem que a agonia lhe causasse dor, cada respiração parecia encher seus pulmões de sangue, seus ossos se tornaram tão frágeis como vidro e qualquer movimentação firme fazia jorrar, pelos poros, o sangue efervescente.

Então, ele recordou tudo o que havia acontecido até ali e enxergou todo aquele sofrimento como um aviso de que seu corpo ainda resistia, ele estava vivo e havia se aproximado do Intocável, fez algo que todos duvidaram, apesar de tudo estava a um passo de conseguir o que queria. Ele riu e encarou a morte. Prendeu o fôlego, pois sua respiração esforçada limitava seu movimento e sua percepção, cambaleou, mas conseguiu investir em direção a um inimigo admirado pela persistência alheia.

Lorde Suzaku não precisou de muito esforço para desviar do golpe de punhos livres que o inimigo queria lhe acertar, sua lâmina enterrou com facilidade na coxadireita de Yang, atravessando a pele e o osso e roubando o apoio que o membro inferior lhe oferecia. O samurai titumbeou e, quando a lâmina rasgou-lhe a virilha, jogou o corpo contra o chão e segurou a mão direita do adversário, como quem procura um apoio para não escorregar e cair.
Então, a Chama Negra rodopiou freneticamente e devorou o braço de Yang. Sua pele agonizava e o tecido tentava se soltar dos músculos transformando-se em um bolor fétido que se espalhava por todo o corpo enquanto a chama criptava com volúpia. Yang havia se jogado à morte, naquele momento ele estava cego, surdo e não mais podia sentir a dor lancinante que lhe rompia os tendões e mergulhava no interior de seu corpo. Perdeu todos os sentidos, sim, mas não a consciência.

Então, nasceu o herói.

Com a mão direita, aquela que havia errado o rosto do inimigo, Yang encontrou o ponto em que o braço de Suzaku se encontrava com a lâmina da Chama Negra. Como que transmitindo a própria agonia, as chamas circundaram seu corpo e foram dispersadas por um chute violento no estômago responsável por arremessar Yang a alguns metros do traidor.

- O que você estava pensando em fazer? - perguntou Lorde Suzaku em tom de admiração - tentou usar o próprio corpo para se desfazer de minha arma? E depois disso? O que faria, seu tolo?

A voz de Suzaku já beirava a loucura, porque ele não conseguia entender aquele desespero teimoso do adversário. Não havia este sofrido o bastante? Ele já deveria estar não somente morto, mas reduzido a pó. Não foi isso que aconteceu.

- O que você imaginava? - continuou Lorde Suzaku - ...eu sou o manipulador da Chama Negra, acha que não sou imune aos seus efeitos?

E a lâmina consumiu as chamas novamente.

Momentos depois, a espada de Suzaku lamentou. Uma face agonizante, formada pelas cinzas de átomos que a chama negra consumia, abandonou a espada, libertando um de seus prisioneiros. Enquanto isso, as chamas no corpo de Yang se transformaram em raios luminescentes e desapareceram, como se fossem consumidas pelo corpo do samurai. 

- O que está acontecendo? - replicou Suzaku, confuso.

- Você me ensinou muita coisa enquanto eu estava em silêncio Suzaku - respondeu Yang, porque agora ele conseguia abrir a boca e até falar, embora seu corpo estivesse mutilado e enfraquecido - você é mortal, Sagramon também era. Vocês dois me ensinaram algo.

Um silêncio decepcionante cercou Suzaku, ele preenchia a sua mente com a resposta correta, mas Yang fez questão de confirmá-la:

- Se você, que é um traidor da pior estirpe, pode controlá-la, eu posso fazê-lo também.

Lorde Suzaku não podia perder mais tempo, não podia deixar que seu inimigo aprendesse com tanta facilidade aquela forma de manipulação de energia. O que ele iria se tornar? Um deus? Talvez, acima disso.

- Minha crença agora é outra Lorde Suzaku - continuou Yang e o inimigo não conseguiu iniciar qualquer manobra antes de escutar aquelas palavras desconfortantes - eu acredito que todos aqueles que morreram para ver a sua ruína, estão, ainda aqui, presos, assistindo esse último combate. Acredito que Alrûne não morreu, ele encontrou uma outra forma de nos servir.

O que ele quer dizer com isso? Foi a primeira dúvida que inundou a cabeça de Suzaku quando as respostas começaram a ser exigidas.

- Eu sou o mensageiro! - indagou Yang, em uma última frase reveladora.

Como com um par de asas, Yang saltou e atingiu o céu, seu movimento rompeu as nuvens cinzentas e deu acesso à passagem de filetes de luz que iluminaram o campo de batalha. Havia um raio em suas mãos, um raio com a forma de uma lâmina iluminada, parecia surgir à ele, assim como os raios de sol eram capazes de dissipar aquelas trevas. Lorde Suzaku acompanhou seu inimigo, saltando com a mesma fluidez e as chamas negras cobriram seu corpo, um par de asas macabras brotou de suas costas e deram o impulso capaz de elevá-lo às nuvens dissipadoras.

Os dois desapareceram da vista dos mortais.

O céu se abriu e a chuva, como as lágrimas daqueles que sucumbiram em meio àquele terror, banharam os heróis mortos na planície da guerra e purificou o espírito de Yang. Ele reluziu e se transformou em energia renovadora, uma luz brilhante. Um esplendor.

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