sexta-feira, 4 de agosto de 2017

Aventuras anônimas VII

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Vinte e três dias se passaram.
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Zarast, a cidade dos anjos de pedra

“A cabeça acha que o meu destino e o de Arafat estão ligados a você”, foi o que Aldebaran revelou no terceiro dia, quando Ivny já desconfiava da aparição constante da dupla no Dragão Empalado, “Então, aproveitem, pois eu tenho peças de ouro para nos fartar de comida para um ano todo”. Arafat, é claro, permanecia calado e austero.

“Estamos esperando coisas diferentes, vampira”, acrescentou Hidro, a cabeça falante, “Você espera pelo seu irmão, eu espero pela decadência”. Quase tudo que o gnomo falava não tinha sentido (mesmo para Aldebaran), Ivny desistiu de tentar entender os disparates dele. E assim, ambos os grupos passaram a se encontrar constantemente. Durante vinte e três dias.

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“Cada semente plantada é uma nova vida que nasce. Temos o poder de conceder vida. Todos nós, Koku”, falava a sacerdotisa dos quatro, as divindades elementais que regiam a chuva, os ventos e a agricultura, cultuada pela maioria dos fazendeiros e mercadores de Zarast. Por quase uma semana, Koku procurou algum lugar dentro daquela metrópole construída na pedra. Um lugar que fizesse sentido. O templo dos quatro foi o único que o atraiu, talvez por causa de seu extenso jardim, das flores e árvores que se assemelhavam as de sua terra natal. “Posso visitar o templo quando quiser? Aqui me traz paz”, “Você será sempre meu convidado, jovem”, revelou a mulher de sorriso encantador. Koku fez isso, cada dia da semana, até finalmente se achar no direito de dormir naquele jardim. Não foi impedido.

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“Um, dois... TRÊS!”, contavam os trabalhadores, em uníssono. No final da contagem fizeram grande esforço físico para erguer a poderosa tora de madeira que seria usada como alicerce para a criação de um novo estabelecimento. Eram três homens acostumados com o serviço, mas o peso era demasiado. Golias os ajudou e só assim conseguiram. “Você é forte, grandão”, elogiou um dos homens, o mais velho, simpático e agradecido, “Talvez você pudesse nos ajudar com o restante. Eu pago”. Golias não precisava de peças de ouro, mas ajudou. No final, ficou tão feliz quanto os trabalhadores quando, enfim, terminaram toda a estrutura, após tantos pregos, marteladas, serrotes e barretes de madeira empilhados. Era o décimo sétimo dia de estadia na cidade dos anjos de pedra.

“O gigante camarada”, disse o velho trabalhador, “este será o nome da minha taverna”, afirmou isso dando leves tapinhas nas costas de Golias. Foi um ofício simples para o meio gigante, mas nada na vida dele, até aquele momento, havia sido tão representativo. Golias aceitou a homenagem e disse, tão calado quanto o mais tímido garoto: “Obrigado”.

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Hildegrim passou a pegar leve nas bebidas e nas palavras. Mal falava. Uma dezena de vezes foi confundido com um mendigo. Somente na segunda semana foi rever seus cavalos. Deslizou a sua única mão no pelo oleoso das montarias. Pareciam irmãos que não se viam a muito tempo. O cocheiro, com dificuldades, trouxe um balde de água, espuma e uma escova. Alisou a pelagem do equino, começando pela crista.

Foi apenas no quarto dia que o aleijado amarrou as rédeas nos cavalos e na carruagem. Subiu no trono do veículo mais uma vez, depois de muito tempo. Amarrou as duas cordas no único braço e, num trote de lentidão e paciência, cavalgou.

“Eu consigo”, ele pensou enquanto a carruagem se arrastava trêmula.

Conseguiu.

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Ivny apenas esperava. Dias no quarto, noites nos profundos esgotos de Zarast. Não podia ir embora da cidade dos anjos de pedra, por mais que a vista das estátuas colossais lhe provocasse arrepios. Aensell voltaria para lá, em algum momento.

Sendo inevitável caçadora, farejou vítimas nos becos escuros da cidade. Mergulhou na escuridão. Perseguiu ladrões, os emboscou, os matou. Alimentou-se. Sentiu cada vez mais fome. Precisava cada vez mais. Levou-os aos esgotos, apoderou-se de um lugar arruinado. Seu templo ou refúgio. Pendurou cada vítima no teto, em ganchos de açougue. Eram vilões. Tanto faz. Assistia o sangue escorrendo. Precisava deles vivos. Acostumou-se com a condição. Passou a gostar daquilo.

“Espere!”, gritava uma das vítimas, em vão, “Não faça isso! Eu imploro. Servirei a você agora e para sempre”, a oferta a atraiu. Ivny pensou duas vezes. O poder do domínio a tentava. Ela poderia garantir que o sujeito seria seu escravo e não teria pena dele, assim como tivera de Hildegrim, pois este era, certamente, um mau elemento.

Pensou melhor. Desistiu da ideia. “Agora não. Aqui não. É arriscado”, ela deduziu. Levantou-o como um pescador faz com o peixe e o pendurou num gancho, assim como as outras doze vítimas. Algo escorregou dos bolsos da vítima. Uma moeda. Nada mais do que um tilintar metálico e agudo nos esgotos.
A vítima perseguiu a queda. O resultado do cara ou coroa, naquele momento, era mais importante que a sua situação. Sem perceber, Ivny fez o mesmo. Assistiu a moeda mostrar seu resultado. O som foi encerrado, em seu lugar estava o resultado do silêncio.

O corpo pendurado gargalhou. Macabro. Ivny ficou confusa.
Era o vigésimo terceiro dia daquela espera e o chão do refúgio de Ivny tremeu, alvo do caos que ocorria naquele momento, na cidade dos anjos de pedra.


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