sábado, 29 de julho de 2017

Aventuras anônimas II

Koku tateava a terra com presteza. Seu nariz não lhe deu norte e agora ele apelava para o pouco que havia aprendido na Floresta dos Mil Sussurros, com os fantasmas.

- Uma carruagem de grande porte passou aqui - pensava ele, consigo mesmo, em voz alta - Quem quer que a estivesse manobrando, parou neste ponto. Alguém saiu. Desistiu da carona e prosseguiu a pé.

- Aensell - a voz de Ivny ecoou do interior da carruagem de Hildegrim.

- Não tenho certeza. São passos. Podem ser de qualquer um. Bem... o sujeito está calçado. Botas, talvez - concluiu Koku, satisfeito.

- Tenho certeza de que é ele. Aensell não se misturaria aos escravos da dragocracia por muito tempo.

- Fez mal... - a voz firme de Golias intrometeu-se.

- Do que está falando? - preocupou-se Ivny.

- Desertar um escravo draculean, não é uma opção sábia.

Ivny tinha de concordar. Vivera com o irmão durante muito tempo em Draganathor, lar da dragocracia. Ela sabia como a influência daqueles indivíduos funcionava. Era hora de encarar a estrada novamente e o mais rápido possível.
Koku (shifter macaco)

***

Era noite.

- Senhora? - perguntou Hildegrim em seu trono na carruagem. 

- Sim, Hildregrim...

Ivny passava muito tempo dentro daquele veículo. Agora estava em cima dele. Koku também estava, envolto de um cobertor, fingindo dormir ou desinteressar-se pela noite.A vampira queria sair dali, aproveitar a escuridão, a lua crescente e o céu estrelado, dar asas ao seu instinto de caçadora, mas não podia. Estavam numa parte distante da planície de Draganathor. Poucos visitavam ali desde que o príncipe Aisenn prometeu guerrear a dragocracia. Era um ambiente perigoso para ambos os lados.

Naquela noite, especificamente, Ivny estava ainda mais perdida em pensamentos.

- O que aconteceu? - perguntou Hildegrim. 

Ivny não necessitava mais usar o olhar dominador. O cocheiro havia aceitado a sina de escravo. Não foi difícil fazer isso. Era um homem descontente com a vida, antes disso. Viajar pelas rotas seguras carregando barris e caixotes era monótono. Seu avô, certo dia, contou-lhe sobre a família, os Hild. As últimas três gerações foram comerciantes. Todos os Hild aprenderam a lidar com os sacos de ouro. O próprio Hildegrim foi ensinado pelo pai, o senhor Heirich, um velho diplomata, seguro de si, nascido para aquele mundo de compra e venda. Hildegrim aprendera com facilidade, mas a história de seu avô o havia tocado profundamente. Dizia o progenitor que, antes da família tornar-se comerciante, urbana e protegida pela lei, seus antepassados haviam sido mascates. "Isso não é a mesma coisa?", Hildegrim perguntara ao avô. "Não, filho. É muito diferente. Comerciantes são protegidos pela lei da oferta e compra. Somos pomposos diplomatas. protegidos dos perigos do mundo! ...ah! Mas os mascates, não. Eles praticavam seu ofício como um vício. Arrastavam-se em profundas masmorras e tiravam de lá artefatos cobiçados. Viajavam das terras calmas de Rivergate ao deserto escaldante de Quéops. Era uma vida de aventuras". Quem dera Hildegrim ter acesso a aquela vida. Era quase patético largar sua vida de bonança, numa época que diziam que os mortos andavam por aí, a devorar os vivos. Então veio Ivny e o obrigou. Não era mais tão patético. O título de escravo não o chateava, afinal, havia vivido por muito tempo em Draganathor.

Hildegrim

- O que aconteceu com quem? - perguntou Ivny, mais interessada nas estrelas. 

Hildegrim conversava com ela, de costas. O cocheiro observava Golias empilhar a lenha que havia arranjado logo mais cedo e torná-la uma fogueira eficiente. Aquilo afastaria os lobos... e os mosquitos, de quebra.

- O que aconteceu entre você e seu irmão? - mal sabia como tinha tanta coragem, o audacioso Hildegrim. Gostava do título. Esperava até não receber resposta. Todos esperavam que ela não respondesse, mas, então, Ivny disse:

- Ele tentou salvar-me da minha condição. Eu recusei. Não aceitei que ele não visse nela uma vantagem. Sou como uma sombra. Tudo o que eu sempre quis. Se essa bênção me tivesse sido concedida mais cedo, quando eu e ele morríamos de fome pelos becos da torre, teríamos tido uma infância melhor.

Lá embaixo, Golias sentava-se muito perto da fogueira. As mãos quase apalpando a chama. Mais uma vez Ivny o via contemplar as brasas dançantes.

- Os fantasmas da Mil Sussurros condenam sua maldição - intrometeu-se Koku.

- Então você está acordado! - sorriu Hildegrim. Koku assentiu desconcertado.

- Seus irmãos, garoto, estão presos naquela floresta, para sempre. A mim pertence o mundo - respondeu Ivny, decidida.

- E você está presa nesta forma, para sempre.

Silêncio.

- Há maldade nisso, não acha? - continuou Koku - você vive a vida de milhares. É egoísmo!

- A filosofia de seus irmãos é ingênua...

- Drena a vida e a vive. Alimenta uma fera continuamente. Nem sabe para onde vão estas vidas.

Silêncio.

- Para onde vão? - Ivny cedeu à curiosidade.

- Para você.

Último silêncio e sono.

***

- Onde você vivia, antes de tudo isso? - perguntou Koku para Golias.

- Na montanha - o meio gigante respondeu sem animação.

- Qual delas?

- Na montanha de meu povo.

- Ouvi falar que os meio gigantes têm uma terra natal, ao oeste da Coluna do mundo. Em Chattur'gah - intrometeu-se Hildegrim. Como qualquer cocheiro, gostava de prosear. O tempo passava mais rápido.

- Verdade? - perguntou o curioso Koku para Golias, olhando-o dos pés a cabeça, farejando.

Golias apenas assentiu com a cabeça.

- E porque saiu de lá? 

O meio gigante meneou a cabeça e ficou por muito tempo olhando a estrada consumida pela carruagem. Koku percebeu que aquele assunto deveria esperar mais um pouco.

***
Um estardalhaço rompeu a noite. O som trovejante de um raio partindo a escuridão sem céu nublado.

- Estranho... - Hildegrim pensou alto.

- Não foi um raio natural. É magia - explicou Koku - meus irmãos me explicaram sobre essa coisa, me ensinaram também a olhar para o tempo. O céu não está furioso.

A sombra esguia de Ivny andou pela escuridão em contraste com seu par de lâminas curvas.

- Vamos, Golias - comandou ela.

O meio gigante obedeceu.

***
Ainda era noite e o véu de escuridão abraçava Ivny de forma sobrenatural. Seus passos abafados não emitiam ruído. Ela pediu à Golias que a esperasse a uma certa distância enquanto buscava respostas no acampamento de fogueira fraca onde a magia trovejante havia sido conjurada. "Aensell", pensou ela lembrando a infância. Era uma noite tão escura quanto esta, Ivny e Aensell tremiam de frio. O irmão demorava a pegar no sono. Tinha medo da escuridão.

Viajantes que a quilômetros se aproximassem de Draganathor, veriam um vespeiro de luzes incandescentes e eternas a guiar, como um farol, os visitantes à torre da dragocracia. Esse esplendor era reservado somente aos viajantes. Os becos que os órfãos e mendigos usavam para descansar, sem serem perturbados pelos escravos draculean, eram escuros, frios e fétidos. Ratos praticavam a vigília noturna. Milhares deles. Suas pequenas e praguejadoras garras desafiando a podridão. Um barulho no escuro e Aensell acordava. Não precisava de pesadelo pois vivia um. 

Ivny sabia que na escuridão existia muito mais do que ratos. Existia ruína. A ruína de uma civilização muito antiga esmagada pela liderança dracônica. Era o antigo reino dos homens. Massacrado. Ela aguçava seus ouvidos, praticando sua vigilância e podia ouvir os sussurros distantes de um milhão de espíritos de vingança. A torre da dragocracia havia sido plantada sobre outro reino. No subsolo havia inúmeras masmorras, lares abandonados, arsenais enferrujados e vidas desperdiçadas. Havia também as guildas. Ladrões e especialistas que não tinham medo dos milhões de espíritos vingativos e montavam suas sedes no estômago da antiga terra. Ivny desejava tornar-se membro de um desses grupos, mas não podia deixar seu irmão sozinho.

"Fique aqui. Eu voltarei em breve", sussurrou Ivny para Aensell no dia que conseguiram restos de uma vela e assistiam a pequena chama iluminar o refúgio onde moravam. Sob os protestos do irmão, Ivny se ausentou. Tinha planos. 

"Aensell é pouco esperto, mas é inteligente", pensou ela, consigo mesma "Sim, existe uma diferença ente as duas coisas. Eu sou esperta, Aensell é inteligente", fazia isso enquanto espreitava as sombras, fugindo dos olhares dos escravos draculean que patrulhavam a torre durante a noite, "Aprendi a me virar sozinha. Aproveitei-me dos outros. Furtei quando precisávamos. Não me arrependo. Nasci para essa vida, mas, o Aensell... não". Aquela era a primeira vez que a garota de rua havia juntado coragem para se atrever a ir tão distante de seu refúgio. "Aensell não saberia como fazer isso. Não nasceu para isso. Nasceu para viver entre os grandes. Nasceu para luz, assim como eu nasci para a escuridão", Ivny lembrou-se da facilidade que o irmão teve ao aprender a soletrar. A felicidade do menino era tão grande, por tão pouca coisa, que a deslumbrou. Primeiro começou lendo as placas das tavernas: letreiros, menus cravados em paredes de madeira e, finalmente, papéis de 'procura-se', depois passou a catar antigos jornais. Os mesmos que eles usavam para cobrir-se e se proteger da noite.

"Ivny!", exclamou ele, certo dia, bastante eufórico, "Qualquer um pode usar magia", ela não havia entendido, "Os mestres draculean são feiticeiros. Eles têm sangue de dragão, por isso usam magia", disso Ivny já sabia, "mas existem os magos!", afinal, não era tudo igual?, "Os magos estudam livros e aprendem a magia", terminou o assunto com um largo sorriso no rosto. Ivny demorou para absorver o sentido daquilo, mas enfim, sabia o que fazer. Havia algum tempo que ela perseguia certo estudioso. Dizia ele chamar-se Drammar, um 'curioso estudante de dragões', Ivny o ouviu prosear, certa vez, numa taverna: a única taverna que lhe permitiam a entrada.

"O que há de interessante em dragões? Não é preciso estudá-los para conhecer suas tiranias", ralhou o dono da taverna. "Você não entende. Existiam centenas de dragões, não somente a dragocracia. Talvez, até ainda existam outros", "Besteira", ".. e existiam os dragões metálicos, eram dragões bondosos, porém levaram um fim", o dono da taverna, único ouvinte da história, olhava Drammar com desconfiança, "Como tiveram um fim?", ele perguntou embravecido. Ivny a muito havia notado que o velho dono da taverna Dragão Uivante praticava a antipatia contra as criaturas de sangue dracônico. "Ah! Chamam de Chuva de dragões, o dia em que centenas deles se sacrificaram para proteger a vida dos homens!", "Besteira! Mil asneiras! Está me dizendo que uma multidão de dragões saíram de suas privadas douradas para morrer por nós?", Drammar assentiu com a cabeça, mas pareceu um pouco patético. O velho dono da Dragão Uivante riu-se. "É aqui, em Draganathor, o maior acervo da história dracônica! Por isso estou aqui", "De onde você é, estrangeiro?", "De Mordae, o reino dos magos", "Nunca ouvi falar", "Bem, existe uma certa rixa de poder entre os feticeiros de cá e os magos de lá, por isso, vocês não têm conhecimento, mas somos tão grande quanto a torre da dragocracia. Diria até que mais!". Ivny interessou-se. Viu na mochila de Drammar meia dúzia de livros grossos. "Ali deve ter magia!", pensou ela, consigo mesma, e nos dias posteriores perseguiu, passo a passo, Drammar e suas constantes visitas à biblioteca.

"Dê-me seu livro de magia e vai viver", ameaçou Ivny quando encurralou Drammar certa noite. Ela surpreendeu-se com a facilidade da missão. "Por favor, não faça nada comigo!", "Então quieto. Se os escravos draculean nos notarem, garanto que corto sua garganta antes de fugir". Drammar não resistiu, derrubou todos os livros que tinha em mãos. Eram sete. Ivny passou a vista por aquele redemoinho de desconhecimento. Escolheu o de capa mais bonita, pegou-o e fugiu. O livro que ela tanto queria estava em suas mãos, a felicidade a contagiou, não simplesmente porque havia conquistado o objeto, mas porque ela havia sido bem sucedida em sua primeira missão. Talvez aquilo contasse... para as guildas.

"Aqui está!", tirou as mãos dos olhos de Aensell e o fez uma surpresa. Inteligente, o garoto entendeu: "Magia!", ele sorriu, como nunca tinha sorrido antes.

Ivny se arrependeu momentaneamente de ter presenteado o irmão com aquilo. Duas semanas haviam se passado e Aensell mal comia. Também não participava das diárias tentativas de ganhar esmolas. Vivia para aquilo. Parecia doentio. Certa noite, Ivny tentou surpreendê-lo acendendo o resto de uma vela que havia conseguido mais cedo. Ele tinha ficado muito contente a primeira vez que ela havia conseguido tal feito. Aquela vez, porém, conseguiu nada mais que um 'obrigado' seguido de um irritante folhear do livro. Ivny não reclamou. Tentou dormir. Suas pálpebras ficavam mais pesadas a medida que a pequena chama de vela ruía. Tudo ficou escuro. Como sempre. Então, uma luz branco azulada rompeu a escuridão. Ivny acordou de sopetão, com uma adaga enferrujada em mãos. "Consegui, Ivy!", tão branco quanto a luz que agora levitava entre as mãos de Aensell, era o sorriso do garoto. Ele controlava a pequena luz dançante, como uma marionete. Um mínimo orbe elétrico piando, como um pássaro, diante deles. Dali em diante, Ivny e Aensell tiveram noites mais iluminadas.

Por isso, quando Ivny viu o relâmpago arratar o céu, naquela noite de jornada, ela pensou em Aensell. Sabia que o mago havia desenvolvido magias elétricas. Estavam no meio do nada: quem mais teria acesso a tal poder? Aensell estava muito perto. 

Ivny apressou-se.

***

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