terça-feira, 25 de julho de 2017

Anthrahaxx



Primeiro veio o forte odor de carvão e aço galvanizado, seguido de uma brusca mudança elevada de temperatura, logo, junto com a tosse de uma centena de trabalhadores braçais, caiu a chuva de cinzas do céu nublado. Não demorou até que o primeiro dos restauradores da cidade de Brastav notasse a silhueta formada pela sombra voadora que se arrastava pelo chão das ruínas abraçando a todos como noite iluminada.

Eles primeiro escutaram o estalar das escamas adormecidas, depois, devagar, levantaram seus rostos em direção à figura alada. Ninguém pôde acreditar e, mesmo bem treinados, demorou mais de meio minuto entre a andança, a dúvida e o terror estampados na cerne de cada guerreiro de Azran.

- Um dragão!

Finalmente alguém alertou, mesmo tendo a certeza de que todos ali já haviam visto coisa medonha a serpentear pelo céu.

- Às armas!

Gritaram cinco ou seis líderes pouco ousados e, enfim, eles marcharam até o arsenal e ergueram espadas e lanças. Não a tempo suficiente. Cobriram suas frontes quando a ventania solar soprou violentamente em seus rostos e sentiram o chão tremer quando o corpanzil montanhoso do dragão tocou o chão da ruína. Mãos trêmulas preparadas. São soldados de Azran ou, pelo menos, resquícios do antigo exército da flâmula esmeralda. Não arredariam o pé pois o lorde deles estava lá.

As escamas se silenciaram. Estavam cobertas por uma grossa camada de rocha vulcânica que dificilmente seria partida mesmo pela picareta do mais forte trabalhador dali, mas eram rompidas facilmente pelo simples movimento involuntário dos músculos do dragão. Emanavam como veias ígneas as escamas da criatura, torneavam um corpo imortal e culminavam em olhos tão vivos como a brasa que daria início a um incêndio.

- Não temam, guerreiros da planície infinita - argumentou o dragão - não sou inimigo, sou tão guardião quanto vocês.

A voz saiu do interior de uma caverna profunda e esta era a garganta rochosa do dragão. Nenhum guerreiro de Azran largou a lança, muito menos o escudo.

- Pois bem, provarei minha lealdade.

Assim, um a um, trabalhador e soldado, guardaram suas armas quando viram Jade, filha do Ninho de Dragão e Ophellia dos templos da reencarnação, ganharem o chão das ruínas de Brastav, saltando do corpo dracônico. 

- É um dragão metálico - alertou Jade - talvez o único existente. É bondoso, leal e companheiro na nossa luta.

A voz da sacerdotisa tingiu os rostos dos soldados de Azran com esperança.

- Libertamos Anthrahaxx do Farol. Ele era escravo de um ilegítimo deus cuja crueldade foi extirpada perante nossas habilidades. Ele não os fará mal. Muito pelo contrário, ele nos prometeu ajudar.

As palavras daquelas heroínas eram o bastante, e não por menos: Elas eram esperança e, por isso, traziam esperança aos corações dos povos massacrados. Eu sei que cada soldado ali pensava assim, pois eu, Hela d'Helm, também sentia-me mera observadora dos feitos das duas.

Jade sempre tirava do rosto a máscara da austeridade, símbolo de sua religião, quando lidava com o povo que merecia seus olhos de sossego e o sorriso que tinia como pequenos sinos de gratidão. Era infanta, mas impelia segurança aos aliados e inocentes assim como a mais experiente das sacerdotisas de Amaryllis. O leve toque de seus dedos era carícia restauradora e parecia sempre guiada pela luz alva e santificada dos anjos. Tem uma ingenuidade que a torna corajosa, um positivismo que ofende guerreiros de costas largas. Enxerga com órbitas de caridade e vive para o martírio. Naquele dia, delicadas vestimentas claras torneavam seu corpo esguio de adolescente imune a chuva de cinzas e sua voz denunciava a confusa mistura antonímica de mulher leiga e experiente.

Ophellia é diferente, mas não oposta. O notável corpo moreno manchado pelo suor da guerra instigava, ali, a volúpia dos soldados. Seu olhar imparcial lhe dá o errôneo ar de orgulho que logo é revogado quando esta impõe sua voz altiva para compartilhar a sabedoria diplomática dos paladinos. Seu corpo é curva e aço. Intocável. De cabelos longos que parecem se comportar aos ares que a rodeiam e a madeixa branca imortalizada pelo toque dos espectros que ela um dia enfrentou para mostrar-se ainda mais mártir que sua companheira. Ophellia carrega o peso dos pesadelos. Um passado que rareou seu sorriso e eliminou qualquer ingenuidade. Mulher que é mulher, forte e decidida. Existência independente.

E destas eu falo porque lá estavam presentes e também porque delas é possível compreender atitudes e a própria existência. Muitos menos eu poderia comentar do mago que desceu as escadarias das ruínas do Palácio de Brastav acompanhado do Lorde da Flâmula Esmeralda. Maximus Aensell, a faca de dois gumes, discente da teoria do acaso ou, como o próprio Bahamut o nomeou: o casulo.

Sobre este, não me comprometerei, direi apenas que é distante e distraído, mas ao mesmo tempo presente e compenetrado. São tipos de adjetivo completamente opostos, mas não inexistentes. Cravado no lado esquerdo do rosto está a máscara de sua ruína, Khain, o senhor dos caídos e, a partir dela que torna-se compreensível sua alcunha de "casulo". Às vezes o pego traçando círculos e símbolos no ar, distraído demais para uma conversa casual. Seus ombros curvados e esqualidez lhe dão o aspecto de rato de biblioteca, acostumado com o peso dos livros tanto nas mãos quanto na mente. Curva-se derrotado pelo peso da gravidade, mas, ao mesmo tempo, a controla. Domina ela. Seus olhos às vezes me confundem. Raro, porém cada vez mais presente, é seu olhar de verídica inocência e dor, digno de pena, mais comum é o olhar fechado de superioridade. Uma caixa de surpresas, cheia de dentes envenenados na tampa.

Enfim, Lorde Irun, senhor da flâmula esmeralda, ergueu-se de seu trono naquela manhã, sem elmo ou lança, mas ainda envolto pela lustrosa armadura de imperador das planícies sem fim. Os cabelos grisalhos não mais lhe davam o aspecto de fraqueza, como primeiro o havia visto no Ninho de Bahamut. Era agora presença tão dominante quanto a do dragão. A barba tratada lhe enquadrava a mandíbula firme, ícone de sua linhagem guerreira e a imponência lhe cabia como uma luva. Não havia temor em seus olhos manchados pelas verrugas do tempo e pelas sombras de noites mal dormidas. Era o rei dos reis.

- És Anthrahaxx, último dos dragões metálicos. Sou Lorde Irun, regente do que restou de Azran - revelou-se impetuosamente.

Anthrahaxx curvou-se, como um dragão podia fazer, o longo pescoço de placas vulcânicas estalando em subserviência. Uma visão rara de humildade dracônica. Respeito ao governante dos humanos.

- Reconheço seu nome desde épocas passadas e nas raras vezes que o ar me trazia os sussurros de seus títulos pelas fendas da minha prisão. É uma satisfação estar livre e em terras de aliança. O senhor acertou meu nome, mas errou ao me dar um título: não sou o último dos dragões metálicos. Posso sentir isso!

Todos ali, principalmente eu, ficamos atônitos. Uma fresta de esperança iluminou nossos corações e a promessa de novas andanças.

Mal posso esperar...







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