sábado, 29 de outubro de 2016

As conquistas do lado escuro

 O Drow avaliou mais uma vez o círculo feito de runas necromânticas. Não podia falhar com sua magia, especialmente enquanto lidava com aquela entidade. Entoou os mesmos cânticos de outrora, numa voz que se assemelhava ao sibilar de uma serpente e as pequenas chamas das velas iluminaram o aposento numa cor ígnea avermelhada:

- Apareça, detentora da coroa partida, oh, sussurro na escuridão. Obedeça seu mestre enquanto mantem-se no cárcere à ti reservado.




A fraca iluminação do aposento no subterrâneo da cidade de Três-reis ganhou contornos esbranquiçados. Uma palidez palpável e esfumaçante se assomava a uma presença escura que evaporava das fissuras que compunham a siglística escrita no círculo de evocação e dava forma a Kendara, a entidade presa na espada.

- Infame seja o meu mestre e sua presunção. Avisei-lhe que meus irmãos resgatarão minha alma e, em troca carregarão a sua para o cárcere deles. Responderei suas medíocres perguntas.



O Drow não era estúpido. Ele sabia reconhecer a verdade: Kendara possuía mesmo tais irmãos e estes eram outras divindades tão poderosas quanto ela e, talvez, tão ricas de sabedoria. Ele temia, é claro, mas já havia lidado com o lado maligno do mundo (foi assim que tornara-se um elfo negro), as ameaças não iriam deter sua curiosidade:

- Conta-me tudo o que sabes sobre Acheron, o líder da Alma Escarlate.




As chamas das velas ao redor do aposento ficaram trêmulas e fracas. Kendara respirou profundamente enquanto esboçava um sorriso sádico e esperto no rosto negro como ébano. Aquela pergunta havia ofertado à ela um pouco de prazer:

- Hahahaha... somente alguém estúpido como meu mestre iria vasculhar o âmago das sombras tão profundamente. Vejo que você teme a resposta, mesmo assim deseja obtê-la. Eu ficarei feliz em contar tudo o que sei sobre Alistair "Acheron" Pentagast, o senhor dos olhos rubros e líder da Alma Escarlate.





Alistair enxergou as obscenidades do mundo. Um véu de ilusões partidas apreciadas pelas mentes esquecidas, muito antes que qualquer outro prodígio. Tornou-se um personagem dominado pela angústia e desprazer. Buscou a cura pela luz de Alamut, o líder dos magos brancos, mas, deteve-se quando enfim vislumbrou a essência escondida. Aquela que, um dia, chamaram de Zeiram, e que depois foi agarrada por Marduk e, enfim, desperdiçada nas mãos de Lorde Suzaku.

Motivado pelo feitiço que qualquer mortal sucumbiria ao presenciar a essência primordial, Alistair aproximou-se com a intenção de afaná-la, mas enxergou muito mais do que respostas em seu interior. Ele não era digno de ostentar aquele poder. Era um mero mortal. Alguém que fracassaria como os outros. A essência irmã de Splendor não suportaria outro fracasso... Alistair desejou libertá-la da sina.

Foi das ruínas da antiga Torre da Necromancia em Mordae que os tomos do Necronomicon, selados por uma poderosíssima magia, foram descobertos. Um conhecimento inescrupuloso escrito por um mortal que ascendeu e tornou-se Saulot. O receptáculo perfeito.

Alistair recrutou um grupo que o ajudaria a resgatar o conhecimento partido entre o Libris Mortis e o Necronomicon e, por isso, especializou-se nas magias de ilusão. Moveu como peças de sua vontade inúmeras espadas e descobriu, na Catedral de Sangue em Karrasq, roubada das mãos de lordes vampíricos, a dor líquida.

Deu início à sua conquista. À conquista do deus trancafiado na Garganta de Astaroth. Riscou Azran do mapa. Mergulhou nos estudos plantados por Saulot nas terras frias do eterno cemitério e trouxe novamente à tona as Hordas Trôpegas e suas evoluções, as Proles Sombrias. 

Descobriu que era insuficiente.

Próximo à derrota, após ser intimado constantes vezes por Mikhail e seus representantes de luz, Alistair esquecera seu nome e denominou-se como o próprio inferno (Acheron é "inferno" nos antigos idiomas diabólicos). Foi na busca desesperada pela última centelha que ele conhecera a Serpente e a Serpente envenenou a mente de Mikhail e seus irmãos... e estes fugiram tomados pelo veneno das primeiras eras.

Arrancou o olho do rubro e criou a foice que ceifara os mártires. Das lembranças amargas das últimas centelhas de Splendor, criou a primeira Mortalha e a primeira Mortalha concebeu as demais. Roubou das sementes da Primeira Maldição e, com elas, despertou as criaturas gigantescas adormecidas embaixo da terra. Riscou Chattur'gah dos planos, feriu Nevaska e eliminou Rivergate. Encarregou-se da Escama de Prata. Revestiu os Anjos de Pedra com sangue, carne e vísceras obrigando-os a marchar contra o Cemitério Enterrado de Citadel. Alimentou-se das pragas dos orcs e o canyon da desolação e suas moscas abraçaram seu encargo. 

O mundo está à mercê dele, meu mestre. Sempre esteve. Agora nada adiantará vocês rasgarem o véu que ele criou... mesmo o lar da Escama de Prata está coberto com as magias dos livros do deus imortal. Ele retornará, é um fato.

O torpor cobriu a mente do Drow por alguns momentos enquanto ele absorvia a quantidade de informações. Estava certo de que Kendara não dera nomes diretos sobre a maioria dos lugares que ela citara, mas reconhecia os títulos. Tentou manter-se austero:

- A vinda de Saulot é um fato, não é, Kendara? Decore minhas palavras para que elas cheguem aos ouvidos de seus irmãos quando eles finalmente vierem salvá-la: "O renascimento é apenas mais uma brecha para que ocorra a extinção total e digna de um ser."





- Uma atitude primorosa vinda de um mortal tão manipulável. Suas ameaças não têm valor para os servos do deus imortal. As asas negras se abrirão e o símbolo de um mundo imerso em sangue estará nas mãos dele. Vai ser interessante observar a derrota de tudo nos planos do Abismo. O próximo passo, caçar e destruir os covardes criadores.






- Colocaremos uma vírgula em nossa conversação por agora, sussurro na escuridão. Talvez sua consciência a faça convencer-se de que, embora muitas conquistas tenham sido alcançadas do lado que você privilegia, saiba que o ódio de seu senhor, Acheron, lapidou almas bondosas preciosas...







- Nenhum garoto que tenta teorizar erroneamente o destino, nem o restante da fé medíocre de um servo do deus morto, muito menos os olhos cegos de um escravo de Veronicca serão capazes de impedir a Última Guerra da Era. Quanto aos demais, é um vexame, até mesmo para você e sua esperança tola, citá-los.





As velas se apagam repentinamente, como se afetadas por uma brisa rápida. Junto com o vento sussurrante, Kendara é dissipada, como uma chama fria e morta.



- Sigmund nunca obteve a resposta...

O Drow abandona o intrínseco labirinto de ruínas abaixo de sua cidade. Cheio de respostas, transbordando de novas dúvidas.





[...]













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