sexta-feira, 20 de novembro de 2015

O Trovão de Deus


“Na verdade, eu demorei. Demorei para me descobrir assim: dono de uma história de pessoas solitárias, de perdas e ausências e que, por tal motivo, abracei-a com afinco até compreender o porquê de tanta empatia. Sou como quem escapa pelas páginas de um romance, ainda confuso e sem me importunar com o tempo. Aqueles que preciso amar são sombras residentes da alma de estranhos”.

            Pensamentos eram o mantra do príncipe. Sem a motivação dos demais, ele seria como um vento brando mudando de direção. Débil e imprudente. A incerteza perfurou sua alma quando o peso da responsabilidade o alcançou tão cedo, carregando entre adagas afiadas o fardo que era manter-se vivo mesmo afetado pelas lembranças de morte.

“O sangue que pulsa lento e frio do corpo dela. A carne arranhada pela vontade de um destino cruel. O final trágico que inspira vingança. Alguém escreveu isso para você, jovem príncipe. E assim deveria acontecer. ” – estas foram as últimas palavras de Cyril, pronunciadas ainda afogadas em sangue. Sangue que lhe subia a garganta, fugindo da dor que era ter a lâmina do príncipe enterrada no estômago. Poucas vezes o príncipe lutara como naquele dia. Vingança é uma palavra pesarosa para quem se atreve a blasfemá-la, mas a sina do príncipe, dali em diante, seria aquela.

            E permitiu-se continuar assim: consumido pela dependência que eram as dores que ecoavam em seu peito. E desembainhou a lâmina do príncipe outras várias vezes, assim como agora desembainhava contra o inimigo.

“O destino de uma inúmera quantidade de vítimas é recorrência de sua dor, príncipe dos Anjos de Pedra. Quantas cabeças precisaram ser cortadas até que o sangue dos inocentes escorresse e, enfim alcançasse as torres do seu Palácio da Vingança? ” – praguejou Balberich e sua lâmina fria implorou por sangue.

A lâmina do príncipe farejou a ameaça e sua gêmea foi desembainhada. Um vórtice de energia criado da soma das vontades do príncipe e das lâminas crepitou e suas faíscas encontraram uma escuridão densa e agora acovardada pela emanação luminosa.

“Quero que o seu fim seja um alento às minhas memórias, Balberich. Não haverá golpes de misericórdia. Se você acha que a agonia do seu sofrimento fará de mim alguém menor, terá o prazer de me ver tornando-se um monstro enquanto minha espada faz seu ofício. ” – respondeu o príncipe e havia uma mistura confusa de austeridade e escárnio desenhados em seu rosto.

“Você fala como um de nós, príncipe da vingança. Se lhe resta um pouco de alma, saiba que ela está irremediavelmente incompleta. Um futuro manipulado pelo frágil toque de um mutilado não é a inspiração que um povo precisa. Você os fará temer e seu reino devorará a sombra que há de chegar em breve. ”

            Os disparates trouxeram incertezas ao coração do príncipe. Seus punhos vacilaram e durante alguns momentos as lâminas gêmeas sentiram o fraquejar da consciência de seu portador e deixaram-se inundar pelas sombras projetadas pela espada fria do inimigo. O príncipe encaixava suas ideias na mente, mas não conseguia formular qualquer defesa psicológica até que a voz experiente de um rei soou em seus ouvidos, como se estivesse sendo sussurrada ali, tão próxima. A voz lembrara ao príncipe uma das principais estratégias dos vilões com língua de prata: desmoralização. Incutir a dúvida era uma das espertezas inimigas e ele não podia se deixar abater por aquilo.

Mas, porque era tão difícil se desenganar daquelas palavras ilusórias?

            A fria espada inimiga dançou no ar espalhando uma chuva de pó cortante, como minúsculas partículas de vidro afiado sendo projetados junto à sua arremetida. O príncipe teve pouco tempo para reagir e descreveu um giro rápido com a lâmina gêmea sentindo o peso agudo da arma inimiga quase resvalar seu rosto e arrancar sua orelha. Balberich continuou a rodopiar a espada e a ponta aguçada tracejou um corte letal subindo pelo ventre do alvo. O príncipe afastou-se, mas ainda assim a espada feita de frio deslizou sobre a armadura de couro, se aprofundando e rasgando o que podia.

            Com a mão apalpando a boca do estômago, o príncipe analisou o estrago do ataque inimigo e percebeu que o corte não havia sido profundo. Estendeu as lâminas gêmeas e preparou sua rodada. Antes que pudesse pensar em como agir, sentiu o sangue subir-lhe a garganta e jorrar por sua boca e narinas. Atordoado, o príncipe vomitou o líquido vermelho enquanto a vertigem preenchia seus olhos.

“Está confuso, príncipe? ” – desdenhou Balberich com um curto sorriso desenhado no rosto. “É impossível sair imune de um ataque desferido por Naz’beth, a de hálito afiado. O que está sentindo foi provocado pelo seu próprio sistema respiratório. Algo involuntário e letal quando enfrenta o poder de minha espada. ”

            O príncipe tirou o excesso de sangue da boca com as costas da mão e esperou que seus olhos focassem alguma coisa novamente. “Vidro.” – assentiu enquanto analisava suas mãos e notava finas partículas cortantes, tão leves quanto o ar, se moverem como nuvens de vapor.

“Não se trata de simples vidro. Naz’beth foi forjada no Vale dos Ventos da Luxúria, o segundo inferno, onde uma ventania constante rasga a alma das vítimas. Sua lâmina foi forjada a partir da crisálida de demônios-mariposa, criaturas que passam a eternidade devorando o peito dos pecadores que tiveram suas almas desfeitas pelo amor. ” – Balberich riu de sua própria explicação. “Um tanto dramática sua sina, não é mesmo, príncipe? Mas, eu tenho certeza que os escritores da geração arruinada que nos espera, se esforçarão para descrever essa luta abusando de todo teor histórico. Ah! A morte de um príncipe, não poderia ser mais romântica! ”.

“Porque você está cantando vitória, Balberich? ” – indagou o príncipe se recompondo do momento de surpresa. “Você acha que o portador das lâminas de Citadel irá sucumbir numa luta contra um mísero servo do lado perdedor? ” – esboçou um sorriso vermelho, manchado pelo próprio sangue.

“Bela maldição é a sua língua, príncipe dos supostos vitoriosos. Talvez essa luta de egos seja mais impressionante que a justa prestes a ocorrer. ” – Balberich girou a espada fria e uma nuvem de poeira vítrea circundou seu corpo inofensivamente.

            Era um embate, o príncipe precisava responder em combate da melhor forma possível. Prendeu o fôlego e saltou sobre o inimigo, as duas lâminas descrevendo a mesma linha de ação e encontrando-se com a espada fria do inimigo. O príncipe escutou o barulho de vidro sendo quebrado quando Balberich bloqueou e girou o corpo desviando-se da parte principal do impacto. A nuvem de poeira vítrea saltou contra o rosto do príncipe, enquanto Balberich apertava o punho de Naz’beth e a crisálida sobrenatural reconstruía a lâmina afiada novamente.

O príncipe tossiu e cuspiu mais sangue, pois prender a respiração não impedia que a nuvem vítrea penetrasse em suas narinas e, enfim, se misturasse ao próprio fôlego. Afastou-se usando uma das lâminas como defesa para, então, perceber que a arena se tingira de vermelho. O vidro havia lacerado acima das sobrancelhas e agora o sangue escorria sem controle diante sua visão. Por pouco, o poder do hálito cortante não cegara o príncipe e agora ele sabia que teria poucas chances nessa luta.

“Você ainda consegue enxergar, príncipe? Que sorte a sua! ” – debochou Balberich.

            O príncipe pensara em se armar com o arco, mas refletiu pouco antes de perceber que aquela não seria uma boa ideia: o inimigo não era imóvel, podia trazer consigo a nuvem vítrea e acertar um alvo a curto alcance com um arco era perigoso, principalmente se o agressor estivesse armado.

Balberich aproveitou-se do impasse e saltou ofensivamente contra o príncipe. A espada fria rastreando o caminho para o peito inimigo e, por pouco, bloqueada pela lâmina da mão hábil. Era notável a lentidão da defesa inimiga, pois, o príncipe, além de ter uma cortina de sangue sobre os olhos, protegia os pontos vitais e tentava impedir que a nuvem de vidro mutilasse definitivamente seus olhos. Foi por isso que Balberich conseguiu realizar um segundo ataque contra o rosto de sua vítima e, satisfeito, sentiu a espada fria açoitar a face inimiga, rasgando como papel a pele abaixo do olho direito, tão profundamente que o príncipe pôde sentir o gosto de sangue descer-lhe pela garganta.

            Ofegante, o príncipe ganhou distância. Atordoado, o príncipe perdeu o equilíbrio e tombou, caindo de joelhos. Mutilado, o príncipe regurgitou mais sangue e sentiu seus pulmões latejarem de tanto arder.  

“Você já deve ter notado que as chances de vencer um combate contra mim e Naz’beth é nula. Dizem que quando alguém está prestes a morrer, a consciência cria uma série de imagens importantes na mente, é como se você as tivesse encarando diante um espelho. São lembranças da ruína. Eu acredito que você esteja enxergando-as agora. Suas ruínas houveram de ser muitas, mas, acabou. Pode sossegar, príncipe dos mutilados. Você não precisa mais se importar com nada. Não irá se importar sequer com a dor, daqui a alguns segundos. ”

            A nuvem de vidro ainda rasgava a pele do príncipe. Rodopiava em espirais cortantes, mutilando mãos, braços, pernas e torso. Ainda teimavam em inundar suas narinas e perfurar seus olhos. Fatigado, ele levantou o rosto e encarou as minúsculas partículas vítreas dançando no ar e formando a imagem de seu passado. O príncipe ficou boquiaberto diante as lembranças perturbadoras. O hálito cortante era agora um espelho revelando sua derrota e tinha Balberich como plano de fundo.

Enraivecido pela gana de seu inimigo, o príncipe atacou a imagem de vidro a sua frente resultando num estilhaçar cortante que lacerou ainda mais seu corpo. Sua lâmina fiel emanou uma descarga elétrica furiosa, afastando cada partícula vítrea de sua frente. Ele observou aquilo com curiosidade.
“Não adianta, meu nobre inimigo. Você já absorveu o veneno mental que Naz’beth exala e tem poucos minutos antes que seu corpo e consciência se esvaiam completamente. ”

“Não acho que vou precisar de minutos para dar um fim a esta luta, Balberich. ” – afirmou decididamente o príncipe, levantando-se entre a exaustão e o jorro de seu próprio sangue com as lâminas gêmeas firmemente presas aos seus punhos.

“Eu confesso que estou te menosprezando, príncipe. Qualquer um já teria sucumbido aos efeitos da minha espada. Parece que eu terei de lhe mostrar um ponto final definitivo. ” – Balberich avançou contra o príncipe como uma seta aguçada, adornada pelo fio da navalha que era o vapor vítreo.

            O príncipe titubeou visivelmente desequilibrado e ajoelhou-se perante a imagem oferecida pelo reflexo de Naz’beth. Enfiou as lâminas gêmeas no chão afim de apoiar o corpo para que este não tombasse inteiramente. Esperou a aproximação do inimigo e impôs uma descarga elétrica quase inofensiva ao seu redor enquanto se esforçava para desviar-se do golpe letal, afastando-se até uma área segura.

“É essa sua estratégia? Essa estática criada pela sua lâmina serve apenas para assanhar meus cabelos! ” – debochou Balberich.

“Para que Citadel fosse erguida, nós, a primeira linhagem, enfrentamos inúmeros desafios. Exércitos infindáveis que arrastavam seu terror nesse e em outros mundos. Quando o aspecto do primeiro deus profano emergiu de sua prisão divina, derrotar-nos foi sua primeira intenção. Ele marchou com suas criaturas de trevas até nosso antigo lar e inundou nossas terras de sangue e ruína. O primeiro de minha linhagem subiu até Angraheim, o palácio dos reis, cujo o topo alcança as nuvens e lá recebeu a benção do primeiro deus. O céu inteiro respondeu ao seu chamado de vingança e os arcos voltaicos formados de relâmpago deram forma às espadas gêmeas que agora você vê, Balberich. ” – o príncipe erguia-se, renovado de confiança e inspiração. Sua veracidade apunhalou Balberich desprevenido e este ouviu cada palavra do discurso a espera de um resultado. – “Em suma, as lâminas gêmeas são a voz da primeira existência divina. Elas são o Trovão de deus e seu poder não pode ser equiparado a qualquer arma forjada na boca do inferno. ”

O silêncio assolou o campo de batalha enquanto os céus relampejavam assentindo às palavras heroicas do jovem príncipe. Portando as lâminas gêmeas, ele andou a passos curtos em direção ao inimigo. O rosto estampando certeza.

            E Balberich não se afastou. Encarou aquele rosto austero que a princípio não lhe parecia um desafio e agora paralisava cada músculo de seu corpo.

O príncipe alcançou a distância planejada e fez com que o Trovão de Deus ecoasse uma centelha elétrica e divina que fez as partículas vítreas ao redor de Balberich se afastarem, como os lados opostos de um imã. O portador de Naz’beth agora estava totalmente desprotegido.

Nem mesmo a língua de Balberich, afiada em palavras, conseguia se mover agora e o príncipe não lhe deu um golpe de misericórdia. Fez suas lâminas dançarem. Elas cortaram o ar e desfiaram o peitoral de aço do inimigo, se enterraram nas entranhas, deceparam um braço, devoraram as vísceras e se alimentaram de sangue e vingança.

Quando o inimigo se engasgava com sangue, o príncipe apenas o observou.  

Quando os olhos do inimigo começaram a ficar cinzentos e inertes, o príncipe cravou uma de suas espadas na perna dele e reavivou sua dor.

Quando a língua do inimigo deu sinal de implorar, o príncipe a cortou.

Quando a consciência do inimigo começou a desaparecer, o príncipe tornou-se um monstro.

Quando o inimigo morreu, o príncipe se levantou e esperou que a chuva lavasse sua dor.


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