quarta-feira, 29 de julho de 2015

Relâmpagos que desabam na noite

            


As nuvens cinzentas finalmente deram passagem à chuva torrencial daquele princípio de noite que a muito Aramyn havia presumido ser sangrenta. Era por isso que seu corpo ainda sustentava a armadura metálica e, vez por outra, suas mãos emolduradas pelas manoplas seguravam firme as amarras do escudo com o símbolo do dragão empalado.

Uma solitária carruagem atravessava a noite desafiando os perigos que esta proporcionava. Um par de cavalos, guiados por uma mulher ruiva de corpo desenvolto e de beleza pouco notória - uma vez que ela nunca se esforçava em ser simpática - estreitavam-se pelos caminhos tortuosos que poucos notariam como uma trilha.

- ‘Cê tem certeza que não vai perder a trilha dessa vez, bárbara? Você nos meteu num poço de merda a dois dias atrás. Esqueceu o caminho de casa? – indagou Jack, o halfling, da forma franca e ríspida que ele costumava atrever-se a falar com todo mundo.

- Eu sou uma guerreira da minha tribo, não uma guia. Você tem sorte que eu tenha algum treinamento para seguir trilhas, seu rato miserável e saltitante! – respondeu igualmente áspera a bárbara, tinha seu machado sempre à espreita caso algum dia o halfling finalmente cedesse aos seus insultos e tentasse atacá-la desprevenida. Felizmente, isso nunca havia acontecido.

Houve um minuto de silêncio enquanto os ouvidos do grupo eram preenchidos pelo barulho dos pingos da chuva que ficava cada vez mais forte e obrigava todos a mergulhar numa escuridão fria e inevitável.

- Estamos no caminho certo apesar de tudo, seu verme! – replicou Freya, ainda muito afetada pelo disparate do halfling.

- Você está indo bem Freya – afirmou Aramyn, já acostumado demais com a troca inofensiva de ofensas entre a dupla que já não mais interpunha sua voz para interrompê-la.

- Tá ficando muito escuro e essa chuva tá cagando tudo! – adicionou Jack dando uma ligeira olhadela para as redondezas sombrias cercadas de planaltos, rochas que saltavam da terra verde e marrom como se fossem os dedos de um colosso – Acho que tá na hora de você criar aquela casa mágica, pedreiro.

            O halfling olhou para as sombras, mas, desta vez, eram as sombras de dentro da carruagem, onde o último membro da equipe mantinha-se em silêncio profundo, como se esperasse pacientemente pelo nada.

- Levanta a bunda do chão, pare de curtir o seu silêncio e faça aqueles truques bacanas, mago. – exigiu Jack.

- Não. – foi o monótono sussurro ecoado da boca de Varuz, quase inaudível por causa do barulho da chuva.

- Porra é essa? O mago não quer mais ser útil nessa droga de grupo? – comentou indignado o halfling.

Mas o silêncio permaneceu.

- Não ouviu o que eu disse, Varuz? Você anda limpando direito seus ouvidos mágicos?
- Sim. – acompanhado de um silêncio pouco revelador.

- Então, vai conjurar a maldita magia agora?

- Não. – uma negação acompanhada pela indignação de Jack.

            É claro que Jack Turner iria tomar maiores satisfações, mas foi interrompido por Aramyn a meio caminho de seus passos pesados.

- Veja ao nosso redor, Jack. Um vale no meio de uma planície chuvosa. Poças de água a cada metro. A estrutura da cabana mágica que Varuz pode conjurar não é imune às mudanças do nível do terreno. Poderíamos morrer dentro dela.

            Jack ouviu Aramyn e observou Varuz ficar satisfeito com a explicação.

- Parem com essa baderna aí e venham ajudar aqui fora! – interrompeu Freya puxando as rédeas dos cavalos e obrigando-os à parar.

- Perdeu a trilha de novo? – zombou o halfling.

- A trilha está exatamente onde eu quero que ela esteja, mas há alguns empecilhos no meio do caminho. Eu acho melhor você se esconder na carroça e esperar a briga acabar. – a bárbara solta as rédeas e empunha seu machado de lâmina larga quase inteiramente feito dos ossos afiados de alguma criatura dos Bosques da Madeira-viva. Fazia algum tempo que a arma era uma amiga fiel dela.

            Jack e Aramyn aguçaram seus olhos e, com a repentina ajuda da claridade de um relâmpago que iluminou o horizonte escuro e chuvoso no momento exato, conseguiram discernir as silhuetas de criaturas humanoides selvagens se arrastarem pelas planícies ralas. Duas dezenas delas. Um grupo de lobos negros com intensos olhos vermelhos liderava a marcha, montados pelos seus respectivos cavaleiros.

- Orcs! Já estava na hora da treta, mesmo! – Jack sorriu intercalando o barulho dos passos ritmados da marcha sangrenta dos orcs, empunhando seu sabre e desenrolando sua capa esvoaçante. Um pouco de vento o obrigou a firmar o extravagante chapéu em sua cabeça, cujo ele insistia em vestir mesmo sendo um tamanho maior que seu número.

            Freya não costumava atrasar lutas e já estava alguns passos adiante com a arma em riste e botas sempre sujas de lama. Varuz balbuciou algo na escuridão da carruagem que foi ouvido apenas por Aramyn. O clérigo conhecia aquelas palavras o suficiente para firmar seu escudo e em ordens pouco exigentes alertou:

- Tomem distância da carruagem. Não queremos que ela seja o alvo dos nossos inimigos. – desceu da carruagem e foi ultrapassado pela prepotente acrobacia do halfling em suas piruetas performáticas – Freya! Não faça investidas impensadas! – alertou o clérigo enquanto esperava o resultado do estrago de Varuz.

            O interior da carruagem ficou iluminado por um breve brilho ígneo que se aglomerou como os vestígios de uma tocha sendo acesa nas mãos do mago e, após um último sussurrar de comando, ela partiu, às pressas, atravessando escuridão, chuva e noite, em direção ao grupo de orcs.

            Um dos orcs, montado na criatura lupina de olhos rubros, ergueu um cajado tortuoso com uma das extremidades emolduradas por um chocalho feito de crânios esmagados, e com voz de comando emitiu uma ordem.

Aramyn vestiu o elmo de prata e o barulho da chuva se somou aos gritos dos orcs. Ele podia entendê-los. Mais do que isso, podia prever o que eles pretendiam fazer. A centelha ígnea arremeteu-se contra os orcs e, ao encontrar o primeiro obstáculo, enfureceu-se drenando cada molécula de água e transformando-as em vapor instantâneo que foi consumido por uma repentina explosão incandescente e barulhenta que varreu as esperanças inimigas.

A bola de fogo ainda mantinha seu serviço quando todo o calor foi repentinamente absorvido pelas órbitas fantasmagóricas que circundavam o interior dos crânios que habitavam o topo do cajado do orc xamã.

- Um dos orcs é xamã, Varuz. Ele tentará dissipar suas magias! – Adiantou Aramyn enquanto alcançava Freya e Jack a alguns metros distantes da carruagem.

- Percebi. – concordou o mago ligeiramente indignado com o fato de o clérigo pensar que ele não havia notado algo tão lógico. Provavelmente Aramyn havia se esquecido de que Varuz havia nascido e treinado em Mordae, o reino da alta magia e, por isso, ele bem sabia que o xamã tivera apenas sorte. Ou, talvez, esse assunto fosse apenas o ego inflamado do mago da guerra.

Resolveu se desafiar. Balbuciou as mesmas palavras e as mesmas fagulhas se aglomeraram em suas mãos. Os orcs não iriam resistir a mais uma de suas bolas fogo.

- Aqueles desgraçados estão vindo devagar demais! – reclamou Jack.

- Apesar de o xamã ter absorvido a bola de fogo do Varuz, parte de seu grupo foi, visivelmente, atingido pelas chamas. – observou Aramyn.

            Freya segurou firme seu machado e adiantou-se:

- Estão fracos! É hora de investirmos! – gritou sem esconder exagero, esperava que pelo menos um dos inimigos reconhecesse sua segurança no combate. E ela estava segura. Mais do que isso, ela ansiava pelas cabeças que iriam rolar diante seu machado de marfim.

- Espere, vamos aproveitar a segunda tentativa de Varuz – Aramyn tentou acalmar seus nervos de combatente.

            Na concha das mãos do mago de Mordae faiscava o vestígio de seu poder, lancetando as sombras que emanavam ao redor do grupo com uma luz fraca que começava a se enfurecer. Porém a mesma escuridão molhada teimava em lutar contra qualquer brilho emitido tão pesadamente que o grupo pode senti-la à espreita, pronto para agarrá-los.

Os pingos de chuva cessaram como se respeitasse a concentração de Varuz e o silêncio foi acompanhado de um fôlego abrupto que partiu as sombras em dois. Freya gelou a espinha, seus sentidos sempre alerta haviam notado não tão antecipadamente o que estaria para acontecer. Suas memórias foram invadidas pela dor de seus ossos sendo esmagados e sua vontade teve de lutar contra o medo que a fez sucumbir no passado. De olhos tensos ela sussurrou:

- Gigante...

            Uma clava caiu do céu como um relâmpago sendo empunhado pela criatura humanoide gigantesca com um esboço satisfeito estampado no rosto. Freya jogou seu corpo evitando o dano e, ao seu lado, Jack rodopiava atônito enquanto sua capa esvoaçava acompanhando a pressão atmosférica condicionada pelo peso do golpe do gigante. Aramyn desequilibrou-se um pouco e manteve estabilidade enquanto lamentava não poder defender Varuz do impacto retumbante.

            A bola de fogo foi, então, arremessada sem mira, contornando a escuridão e alcançando o céu noturno e tempestuoso numa explosão de fagulhas que se desmancharam feito fogos de artifício. As labaredas lambiam o céu quando o grupo notou que orcs e lobos negros agora investiam com velocidade violenta. Como se o festival de chamas tivesse sido o estopim da corrida para matança.

Ainda desprezando os segundos pasmos alheios, o gigante analisou o estrago embaixo de sua clava – nada mais que um rústico tronco de árvore açoitado – e livrou-se do corpo do mago de guerra jogando-o em direção a um ponto onde sua arma pudesse continuar o esmagamento em seu próximo golpe.

            Varuz abria os olhos vagarosamente enquanto analisava a possibilidade de conseguir se mexer novamente. As gotas da água da tempestade caíam violentas em seu rosto e ele não sabia se o frio ao seu redor era devido ao ambiente noturno em que ele se deitava ou se era sua alma lutando para continuar agarrada ao corpo.

Fez isso vagarosamente, seus dedos trêmulos e doloridos tentando alcançar seus pertences arcanos e improvisar uma magia que pudesse protegê-lo de um inevitável fim. Então encarou a face sádica do gigante de dentes apodrecidos e corpo homúnculo, observando o saco de ossos lutar contra a agonia da dor. O gigante descreveu o mesmo ataque esmagador de segundos atrás e Varuz sabia que não teria tempo de reagir. Esperou a morte fria e pesada.

A morte que foi impedida por um estrondo metálico ecoante.

            O escudo com a imagem do dragão empalado desafiava forças com a clava do gigante. Aramyn havia se interposto entre a criatura de corpo medonho e seu aliado, sustentando milagrosamente o ataque. Apenas sua fé permanecia inabalável e seu corpo se esvaía em cansaço enquanto disputava o jogo de esmagamento com o gigante. Suas pernas arquejaram e seu corpo seguiu os demais sinais de enfraquecimento.

- Corra Varuz, saia daqui! – gritou o clérigo entredentes enquanto enfiava sua espada contra o joelho da criatura.

***

            A uma dúzia de passos distante do gigante, os lobos negros saltavam contra Freya, com saliva percorrendo suas presas afiadas, sarnas se desenvolvendo em seus pescoços e pelagem arrancada pelas súbitas chamas conjuradas por Varuz.

A bárbara impediu o avanço do primeiro lobo interpondo seu machado contra o peito volumoso e negro da criatura. Em um impulso, arremessou montaria e cavaleiro para o lado e, então desviou-se de uma segunda mordida que se projetava contra seu pescoço. Freya pôde sentir o mau hálito quente da criatura invadir suas narinas, enquanto pisoteava o chão em busca de um passo seguro afim de desviar seu ombro das presas de outro lobo.

            A chuva para Freya agora era um amontoado de lobos negros e orcs praguejando contra sua vida. Tentou afugentá-los afim de garantir uma brecha na qual pudesse girar seu machado e acertar o crânio de sua primeira vítima, mas surpreendeu-se quando um dos cinco lobos negros abocanhou seu braço enquanto rosnava e deliciava-se com as primeiras gotas de sangue que caíam da bárbara.

O cavaleiro na montaria esmordaçante carregava o estandarte do grupo de orcs – nada mais que uma bandeira cinzenta e suja que já havia perdido o esboço dos crânios rachados que os orcs daquela região costumavam ostentar – e o fincou no chão dando ordens à sua cria de estimação que devorasse aquela caça inteira.

            Outros lobos negros se juntaram ao banquete, enquanto Freya mantinha-se no chão pisoteada por garras afiadas tentando livrar-se do aprisionamento canino antes que seu corpo pagasse o pacto por sua fraqueza. O orc de estandarte rosnou, como se pudesse falar a língua dos lobos, e todas as demais montarias selvagens se afastaram esperando a primeira se refestelar no sangue da vítima.

Uma silhueta saltou sobre as costas do orc e uma lâmina afiada, lenta, porém efetiva, degolou o líder com presteza.

- Parece que você está precisando da ajuda do ratinho saltitante, bárbara. – insultou Jack, ainda livrando-se do corpo sem vida de seu oponente.

- Você é um intrometido! – ganiu Freya, segurando o machado de marfim com firmeza – Aqui está tudo sobre controle! – fincou a lâmina da arma profundamente no peito sarnento do lobo negro que havia lhe mordido e desenhou um caminho de carne mutilada e sangue até que pôde desvencilhar-se de sua escória.

            Os demais lobos negros avançaram feito vultos famintos, sem a necessidade do comando de seus cavaleiros. A lâmina do machado começou a descrever mortes violentas tingidas de vermelho, arrancando o maxilar de um segundo lobo negro e alcançando o pescoço de um terceiro. Os cavaleiros saltavam de suas falecidas montarias tentando encontrar a pele desprotegida de Freya com seus machados tribais. Mas os fracos orcs não eram o foco da atenção da bárbara.

            Depois de acotovelar as fuças de um guerreiro orc, Freya varreu as pernas do penúltimo lobo negro, saltou por cima dele, açoitou seu cavaleiro na boca do estômago, fazendo chover vísceras, e afundou a lâmina na montaria aleijada. O combate de Freya era assim, sujo e violento. Banhado em sangue e fúria. Ela havia nascido em Chattur’gah, a selva de todos os ancestrais e, em luta, carregava o espírito de Zoe, a divindade selvagem que espreita o lar das tribos bárbaras.

            Chutou um dos orcs feridos no peito e o viu esparramar-se no chão, em cima de tantos outros cadáveres. O último lobo negro a encarava com presas salivantes, olhos sangrentos e ferocidade faminta. Ela deseja trilhar seu caminho até a fera e finalizar aquela luta. Dois orcs vieram ao seu encontro antes disso, ela se desviou do primeiro e em um movimento bruto agarrou seu pescoço e o lançou contra o nada, depois ouviu o barulho do crânio do segundo orc intrometido rachar-se quando o cabo de sua arma atingiu-lhe o rosto.

Houve um breve período onde as duas feras – a bárbara e o último lobo negro – se encararam, para depois, como que por consentimento um do outro, partirem para uma última investida, cuja o corpo do lobo negro voou metros no ar enquanto sua cabeça tomava distância rolando e sendo pisoteada pela chuva sem piedade.

- Eu sou filha de Zoe! Vocês precisam fazer mais do que isso! – gritou a bárbara num misto de euforia e fúria.

- Ô, filhinha de Zoe, a luta não terminou ainda! – reclamou sarcástico, Jack, como uma sombra que se misturava à escuridão, ceifando os inimigos.

            Havia uma dezena de orcs que se amontoavam ao seu redor tentando atingi-lo com seus machados, mas tudo o que estes conseguiam era fincar suas lâminas no chão enlameado e perseguir, tão lentamente com os olhos, as acrobacias rápidas do halfling.
Vez por outra, a ventania lhe carregava o chapéu extravagante e o fazia se deslocar ao seu encontro, agarrando-o com uma mão antes que este pudesse se sujar caindo no terreno sujo. O vulto apenas se deslocava e os inimigos eram ceifados na garganta, rosto e pernas, como se cada movimento do pequeno fosse acompanhado de uma rajada de vento cortante. Mas havia mais que um segredo nisso.

            Jack Turner era um Irmão do Manto. Um membro pertencente a uma guilda responsável por guilhotinar inimigos específicos. Sua principal arma era o manto de veludo, agora pesado pela chuva, mas ainda fatal. A vestimenta possuía uma lâmina sutil que se projetava e com a ajuda de seus movimentos acrobáticos, rasgava a carne e jorrava o sangue das vítimas.

            A capa havia se enrolado no pescoço de um orc e agora seu corpo sentia o sangue quente se derramar sobre seus pés. O halfling encerrou seu movimento estocando com o sabre, ainda manchado de sangue do orc de estandarte, uma segunda vítima que se somou aos demais cadáveres jogados no chão. 

O bando de orcs abriu caminho para o xamã de presas que saltavam da mandíbula em proporções bem maiores que a dos orcs comuns. A criatura de maldições chacoalhou seu cajado de crânios e praguejou contra Jack.

- Vem cá, coisa fofa, você vai ser o próximo. – o pequeno indagou para si mesmo, em tom de piada infame.

            Uma fila de lâminas de machado se formou em frente ao halfling enquanto o xamã cuspia ordens para seus súditos, mas aquela disposição podia ser facilmente estudada por Jack. Ele lutava assim, analisando o próximo passo do inimigo. Sabia exatamente onde a arma iria tentar acertá-lo. Sabia exatamente aonde ele deveria tomar impulso para o salto que lhe renderia uma esquiva. Sabia exatamente onde a fina lâmina de seu manto iria se desdobrar e acertar o ponto vital de suas vítimas, mesmo sob a pesada chuva. Como se previsse também a direção do vento.

Firmou seus pés no chão molhado e preparava-se para a aproximação fatal quando o chão tremeu e um baque estrondoso fez o halfling desequilibrar-se por tempo o suficiente para que um trio de orcs bem preparados aproveitasse a lacuna de sua alerta. A lâmina de um machado atingiu sua capa prendendo-a contra o chão, obrigando Jack a danificar sua arma afim de esquivar-se dos dois ataques posteriores.

- Jack! Onde você está? – o halfling podia reconhecer a voz enfraquecida pelo som dos relâmpagos que pareciam ficar cada vez mais próximos – Precisamos de você!

Era Aramyn.

- “ Precisamos de você! ” – chacoteou Jack tentando imitar a voz do clérigo – todos precisam de mim. O mundo precisa de um herói como eu! – cochichou para uma plateia surda enquanto se esquivava de uma dupla de ataques.

            Um relâmpago partiu o céu e faiscou nas rochas além dos montes que circunvizinhavam a batalha. Jack sentiu seus tímpanos zunirem e o golpe do cajado do xamã atingi-lo na cabeça. Uma contusão que partiu sua sobrancelha e deu passagem a um fino risco de sangue.

Não conseguiu abrir os olhos antes de receber uma segunda pancada no ouvido que quase o ensurdeceu de vez. Machados desceram ao seu encontro. Agora vinham de todas as partes. Cada esquiva de Jack parecia enfraquecer e ele esperava a arma vindoura que iria atingi-lo, talvez mortalmente. À sua frente o xamã balbuciava silenciosamente enquanto cuspia na própria mão e lambuzava seu cajado com o escarro, se aproximando com o esboço sádico de sorriso no rosto. O golpe que eliminaria sua primeira vítima.

Jack rodopiou e uma lâmina larga de machado quase o alcançou no ar. O pequeno caiu ajoelhado no chão sujando suas mãos e, finalmente, abandonando o chapéu que pousou lentamente no chão molhado. Pingos de veneno secretavam pelo cajado de crânios do xamã e meia dúzia do resíduo caiu em seu rosto.

            O halfling sentiu o líquido quente encharcar seu rosto e livrou-se dele com uma das mãos molhadas. Ainda enxergava turvo quando focou suas mãos ensanguentadas. Sangue que o orc xamã agora expelia enquanto caía morto no chão. Sua magia, conjurada no cajado, se desperdiçava enquanto Freya o atravessava com o machado de marfim.

- Varuz... – a bárbara carregou mais dois orcs enquanto puxava o fôlego - ... na bolsa do gigante!

            Jack assentiu com a cabeça e, num salto, abandonou os orcs restantes para que Freya encerrasse o festim de sangue.


***

            Aramyn curvou o corpo para a direita e, testando seus limites, livrou-se do golpe esmagador do gigante. Ainda ajoelhado, atando as tiras de couro que prendiam o escudo em seu braço, o clérigo precisava focar-se no grupo inteiro. Tocou o broche oferecido pelo Templo dos Anjos de Pedra e sua capa azulada pareceu desenrolar-se, desocupando seus ombros protegidos pela armadura metálica. Murmurou uma prece implorando pela bênção de Splendor. Esse era seu deus. O deus morto. Um deus que desaparecia aos poucos após os resultados da última guerra de Azran.

 Fazia algum tempo que aquela criança havia sido encontrada nos escombros de Brastav. O grupo de buscas já havia desistido de procurar algum sobrevivente, quando os ouvidos de Lorde Steins, um paladino experiente, manchado pela idade e pelo seu tempo de serviço para igreja, ouviu os prantos de um bebê sufocado por centenas de rochas arruinadas. Ele também foi o primeiro a segurar a criança nos braços e, por fim, mandá-lo ao orfanato do Templo dos Anjos de Pedra, onde Aramyn foi batizado e treinado. Foi onde o clérigo prevaleceu a sua fé e especializou-se em enfrentar as Hordas Trôpegas, tornando-se um iniciante exorcista.

            Um brilho dourado tingiu a armadura de Aramyn enquanto sua mão direita tracejava no ar o símbolo da cruz-espada. Logo, a luminosidade sagrada cobriu feito manto suas orações e elas foram dispersas, sobressaindo-se ao barulho da tempestade e alcançando os ouvidos de seus aliados e inimigos com bênçãos e malogro. Observou Freya ceifar feito açougueiro os lobos negros e a silhueta veloz de Jack Turner desviar-se de tudo. Entre todos, Varuz ainda era o que mais precisava de ajuda.

Dentro de seu elmo, o barulho dos pingos de chuva foi abafado. Agarrou a espada fincada ao chão enquanto a breve oração estava sendo executada e com a lâmina atingiu o próprio escudo visando fazer algum barulho que chamasse a atenção do gigante. Interpôs-se novamente entre inimigo e aliado e gritou:

- Sou o escudo de Splendor! Enfrente-me criatura!

            Varuz contemplava a quietude da noite tempestuosa. Sim, a quietude. Os magos de guerra do reino da alta magia eram capazes de se concentrar tão profundamente que podiam se esquecer da dor, dos pingos violentos de chuva, dos ventos de uma tempestade e do barulho ensurdecedor de um campo de batalha. Aquela noite não era a dele, mas, afinal de contas, ele nunca guardava boas recordações das noites. Ele era mais do que um militante de Mordae. Ele havia sido treinado por um membro do Círculo de Alamut. Carregava cicatrizes e queimaduras em todo corpo devido a isso. Em alguns sonhos, relembrava do hálito ácido do dragão de escamas esverdeada, um desafio que ele havia superado com seu falecido mentor.

            Lembrou-se de pássaros. Dos pássaros livres buscando o caminho de casa. Gesticulou e foi acompanhado por um pio estridente que se somou a uma dezena de outros enquanto globos de luz azul apareciam fantasmagóricos ao redor de si mesmo. As esferas luminosas desenrolavam pequenas asas e as batiam numa velocidade sônica. Cada um rodopiando desorganizadamente, esperando pela chance certa de alcançar suas vítimas. Um presente de mentor. Uma magia lapidada, concentrada em reconhecer os aspectos das energias primais. Aqueles pássaros rasgarão pele e se afundarão na carne retaliando tudo em seu caminho. O gigante reconheceu o estardalhaço chilreante vindo da escuridão à frente. Recordou-se de sua primeira vítima, ainda de pé e, à passos pesados, ignorou Aramyn e suas ameaças divinas.

            O clérigo livrou-se de ser pisoteado e fincou a lâmina acima do calcanhar da criatura errante. Aramyn segurou firme o cabo da espada que agora era um espinho doloroso. O gigante tropeçou enquanto sentia a carne rasgar-se, mas enfim manteve-se de pé. Por teimosia, acelerou seus passos afim de alcançar o mago de guerra, como se a luta agora fosse entre a teimosia de alcançar e ser impedido de fazê-lo.

Sem a necessidade de um segundo comando, Varuz assistiu seus pássaros feitos de magia voarem feito espiral em direção ao gigante. Eles encerraram suas rápidas batidas de asas e planaram ao redor da vítima procurando o melhor lugar para atacar. Para a medonha criatura, os pássaros eram como moscas, difíceis de serem agarradas, mas diferente destas, cada deslizar de suas asas sobre a pele, rasgava e as faziam buscar por carne. O mago pôde se satisfazer enquanto o gigante ajoelhava-se, sucumbindo à dor, arquejando enquanto os pássaros pousavam sobre ele. Aramyn  livrava sua espada do calcanhar do gigante e recomponha-se, a luta parecia ter sido controlada.

            O gigante livrou-se de sua clava e segurou o peso do próprio corpo, afanou um dos pássaros azuis e ele simplesmente desapareceu, não antes de causar algum estrago. Tomou fôlego, curvou-se, finalmente, e varreu sua fronte com a palma da mão gigantesca atingindo Varuz com violência arrasadora. O mago de guerra foi lançado metros no ar e chocou-se contra o chão de forma desastrosa, rodopiando e sentindo seu corpo quebrar-se em vários pedaços, feito vidro.

Os pássaros azuis piaram uma última vez e desapareceram. O clérigo saltou para as costas arquejadas do gigante e o golpeou entre as costelas, arrancando mais um jorro de sangue enquanto gritava:

- Jack, precisamos de você!

            O gigante levantou-se e o corpo de Aramyn foi lançado contra o chão. O clérigo suportou o peso da queda com o escudo e analisou os próximos passos do gigante. Vitorioso da teimosia, o gigante afanou o corpo de Varuz, levantando-o desajeitadamente pela perna e observando seu estado. Ele não se movia. Jogou-o em um saco de couro preso à sua armadura rústica e encardida, cujo também guardava dezenas de quinquilharias – dentre estas, os restos mortais de outras pequenas criaturas abatidas.

Agora a criatura voltava para sua segunda vítima. Alcançou sua clava e Aramyn recolheu-se atrás de seu escudo, firmando os pés e esperando o baque inevitável que veio sem mais espera, afastando pingos de chuva e a resistência do ar. O escudo com o símbolo do dragão empalado contorceu-se, as manoplas apertaram os dedos do clérigo e ele sentiu o estalo de alguns pequenos ossos se quebrarem, os pés afundaram-se no chão e arrastaram o corpo de Aramyn na direção exercida pelo gigante.

Mas Aramyn manteve-se estável. De pé. Ferido e cheio de fé, interpondo-se entre o gigante e o vulto que agora saltava tomando impulso em seu ombro para alcançar o braço do inimigo. O gigante tentava afanar o novo desafio, mas em um rodopio realizado no momento certo, Jack Turner usou o braço da clava para alcançar altura e jogar-se dentro do saco de couro.

            O halfling viu-se nadando em restos de corpos, pedras lascadas, galhos mascados e resquícios de uma carruagem completamente destruída. Precisou tatear até encontrar o corpo inerte de Varuz, em seguida, com o sabre, rasgou a base da bolsa de couro e permitiu que algumas bugigangas caíssem no nada.

- Aramyn, a coisa tá fodida aqui! Vem pegar seu amigo! – gritou Jack, sustentando o corpo de Varuz para que não caísse junto com a sujeira imprestável contida na bolsa do gigante.
            O clérigo não pensou duas vezes. Deslocou-se entre as pernas do gigante e a clava opressora atingiu o chão após um rolamento bem executado de Aramyn. O corpo de Varuz desabou e o clérigo agora o tinha em mãos. O gigante buscou uma forma de pisoteá-los, mas foi surpreendido por uma estocada:

- Coisa fedida. Você sujou minhas roupas! Porque não enfrenta alguém do seu tamanho agora? – riu vaidosamente, orgulhoso de sua piada engenhosa.

            Torcendo para que o plano de Jack desse certo, Aramyn depositou o corpo de Varuz no chão, apoiando a cabeça em seu joelho e derramou um pouco de líquido oleoso na testa do aliado, murmurando as preces certas e, milagrosamente, assim como todas as magias que os clérigos ostentavam, reuniu as reservas de energia do mago de guerra, braços e pernas estalavam, ferimentos, mesmo que ainda sangrentos, fechavam aos poucos e o semblante pálido da morte vindoura desaparecia do rosto de Varuz.

Freya eliminou o último orc e tomou cuidado para não pisar nas vísceras escorregadias que agora empoçavam todos os lugares. Firmou as mãos em seu machado de marfim, semicerrou os dentes e, ainda em excesso de fúria, fitou o gigante e partiu numa investida decisiva. Jack Turner livrou-se das mãos do gigante e encontrou algum nível de segurança agarrando-se nas costas do inimigo, sacolejando como uma formiga.

            Os olhos de Varuz se abriram e não tinham mais a cor escura de sua íris. Aramyn podia enxergá-los fervilhando de ódio. Notou também que a pele do mago de guerra tornava-se cada vez mais quente e, sem um agradecimento prévio, Varuz levantou-se, empurrou o clérigo e caminhou decidido até o gigante.

- Freya, pare! – alertou Aramyn, mas a verdadeira razão da bárbara interromper sua investida, foram as chamas que começaram a incendiar Varuz e transformá-lo em uma fogueira nômade prestes a perder o controle.

- Puta que o pariu! O que esse maldito mago-tocha pensa que vai fazer? – admirou-se Jack ainda livrando-se dos agarrões do gigante.

            Os relâmpagos cessaram em respeito à iluminação ígnea e furiosa da noite. O gigante esqueceu o halfling em suas costas e firmou seu olhar em Varuz que balbuciava uma de suas magias menos sutis. A criatura uniu as duas mãos numa tentativa de golpe mais efetivo, mas antes de alcançar o alvo, as chamas engolfaram-no como um turbilhão de brasas incandescentes. Jack Turner tomou um impulso veloz e livrou-se da explosão aliada.

O gigante tentava alcançar o mago, mas o impacto explosivo arrastava seu corpo e o obrigava a proteger os olhos. Porém, todas as defesas eram vãs. O fogo interior de Varuz expandiu-se, abandonando seu estado físico e, em volúpia, abraçou o gigante rompendo carne e ossos, incinerando violentamente cada resto, até que o gigante titubeou e, transformando-se em restos mortais, finalmente desabou no chão molhado.

            Varuz agora era o mesmo de antes, emoldurado por fagulhas e fumaça. Jack levantou-se incrédulo. Havia caído à pouca distância do gigante. Freya aproximou-se de Aramyn que respirava aliviado em honra à vitória.

- Acabou? – perguntou a bárbara.

- A chuva acabou. – afirmou Aramyn, pois a tempestade, repentinamente, também havia encerrado.

- Esse mundo não facilita para a gente, não é? – interrompeu o halfling já afanando os restos do gigante, em busca de algo que lhe servisse.

            Varuz ainda analisava o corpo gigantesco em chamas, como num ritual de vitória. Mas a noite logo carregou cada faísca e o grupo se reunia novamente para continuar a viagem para Chattur’gah.

***

- Se aquele bosta do Darius tivesse continuado conosco, a luta não teria sido tão difícil. – indagou Freya, alguma hora da noite – Eu avisei para ele não se afastar.

Aramyn tinha maus pressentimentos sobre o amigo também.

Mas resolveu ficar calado.

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