segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Prólogo - Um prólogo de seis


Um prólogo de seis

            Seis pares de pernas caminhavam sobre o extenso tapete de grama molhado de orvalho que cobria monotonamente as planícies de Asaron. Não eram passos rápidos, só firmes. A sola dos pés daqueles viajantes já havia acostumado-se com o peso de seus corpos depois de tantas viagens que eles insistiam em fazer. Aventureiros. Em outras épocas eles eram muitos. Nessa época, raros. Gostavam de usar seus pés para viajar.

            E eram lentos. Ah! Como os mortais são lentos.

Os viajantes estavam em pontos distintos da mesma região. Talvez um ou dois tivessem um rumo a traçar, o restante confiava no ermo, no nada que se estendia por aquelas planícies ou na sorte que o destino lhes reservava por não serem habituais como qualquer aldeão. E eles acabariam por se encontrar em Opuallia, uma cidade qualquer, com habitantes quaisquer, com costumes quaisquer.

A vida tem dessas coisas. E eu não gosto dela.

De onde eu vim, os habitantes marchavam trôpegos, em filas pálidas e rumo sinuoso, em direção a algum lugar. Sempre o mesmo lugar. Eram almas. Elas despencavam num poço escuro e se encontravam com uma centena de outras para então caminhar no mundo de minha deusa.

            Ah! Veronicca, a deusa da morte. A única felicidade de um mórbido como eu.   
    
            Mas essa história não é sobre mim. Sou um espectador assim como tantos. Assim como você leitor. A história é sobre destinos. Sobre seis destinos.

***

- Continuando aquela história que comecei a algumas horas – comentava um dos andarilhos – eu, Gunther, o escolhido de Splendor, e mais dois confiáveis aventureiros, adentramos o Pântano do Orc Praguejador e bastou alguns minutos de andanças para que nossos pés se atolassem até os joelhos na lama imunda que cercava todo aquele lugar.

- Acho que me lembro de tê-lo ouvido falar sobre a mesma situação a uns dez minutos atrás – resmungou o anão sem muita paciência para o brilhantismo de Gunther.

- Você tem razão Ulfgar. É um bom ouvinte, presta bastante atenção, talvez seja melhor pular a crônica para o momento em que o orc praguejador e sua horda monstruosa nos atacou no meio do pântano, logo depois de enfrentarmos a serpente constritora que havia nos surpreendido durante o caminho.

            Que alguns malditos goblins aparecessem, que um raio despencasse no chão repentinamente ou que a terra desabasse, porque Ulfgar, o anão, não iria tolerar mais uma hora daquela ladainha.

- Socorro! – ecoou uma voz rouca no meio da estrada. Da única estrada daquela vasta planície.

- Melhor guardar a conversa pra depois – armou-se o anão com seu martelo de guerra e seu escudo redondo feito de aço polido – hora de usarmos nossas armas.

            Ulfgar, Martelo de Pedra era um paladino anão. Servia a Hefasto, o deus da forja e qualquer indivíduo que houvesse escutado o mínimo sobre a raça saberia que um anão vinha de terras distantes e tinha costumes bem diferentes. Ulfgar era jovem, mesmo assim possuía uma barba espessa e pouco organizada que exibia com orgulho e que era típica dos anões. A robustez da raça só ficava mais aparente com a usual armadura de placas metálicas que Ulfgar portava. Paladinos não ignoravam um pedido de socorro.

- Você está comigo Ulfgar – interrompeu Gunther, o escolhido – qualquer ameaça não durará mais do que um minuto – e girou sua lança de haste tênue e extremidade metálica.

            Gunther era humano e, diferente de Ulfgar, não havia uma denominação para a sua estirpe de aventureiro. As vezes, ele mesmo se nomeava “o privilegiado”, outras vezes de “o escolhido”. Estava claro como água que Gunther mantinha o seu ego acima das expectativas de qualquer ouvinte. Sabia usar a lança num combate, mas, mais do que isso, a magia lhe era manipulável. Era a magia capaz de fechar ferimentos e de lhe dar a força e resistência de um santo. O temperamento de Gunther era atípico de um santo, claro, mas isso não o limitava em nada. Também usava as placas de metal para proteger-lhe o corpo, sempre bem polidas, para que o sol pudesse fazer delas um espelho. Era loiro, de cabelos curtos e olhos distantes, sempre no mundo dele. E era jovem, talvez tolo demais, talvez de uma sabedoria que ninguém conseguia entender.

            Ao longe, um homem baixo, gordo e de bigodes feito taturanas estampadas abaixo de um nariz largo. Usava e abusava de muxoxos implorando para que os goblins não carregassem tudo o que tinha em sua carroça puxada por duas mulas pouco convincentes. Mas os assaltantes goblinóides, claro, não cediam a um choramingar precário.

            Foi uma luta rápida. Como deveria ser. O martelo de Ulfgar arrancou dentes e amassou crânios. A lança de Gunther perfurou intestinos e impalou as débeis criaturas verdes com não mais de um metro de vinte. Duas delas fugiram, carregando algo que o viajante desprecavido iria sentir pouca falta.

- Só pode ser pela graça dos deuses que vocês, viajantes, apareceram aqui para me salvar.

- É a graça de Splendor viajante, disso você pode ter certeza – Gunther arrancara uma estopa de veludo de seus pertences e a transcorria pela lança a fim de deixá-la tão brilhante quanto sua armadura. O sangue goblinóide não era digno.

- O que um viajante cheio de bugigangas roubáveis faz sem escolta aqui, nas planícies de Asaron? – indagou o anão, sem arrodeios e sem o mesmo apreço pela arma. Era sangue goblinóide e os anões eram típicos inimigos destes, o sangue era a certeza de que Ulfgar havia feito bem o seu trabalho.

- Nunca pretendi fazer uma viagem longa. Venho de uma pequena aldeia dessas redondezas. Buscava legumes para temperar a comida da cerimônia de casamento da minha filha.

- Cerimônia de casamento? – Impressionou-se Gunther – por acaso sua filha vai se casar com sir Sanderson, de Zarast?

- Esse mesmo. Minha querida Isabelle é sortuda. Terá uma vida melhor do que eu e minha esposa. Quando ela decidiu ser clériga de Amaryllis, imaginei que iria casar-se muito tarde, mas Adelma a abençoou bem cedo.

- Você está falando mais do que a sua língua é capaz, mascate – Ulfgar tentou usar a lógica – meu companheiro falastrão conhece esse tal sir Sanderson e por conveniência, conheço esse sujeito mais do que deveria, entretanto, não sei quem é Isabelle, muito menos Adelma.

- Isabelle é minha filha. A noiva abençoada desta noite. Adelma é a porta-voz de Opuallia, uma clériga experiente, responsável pela cerimônia. Muita gente vai à Opuallia essa noite, haverá comida e bebida farta, como deve ser o casamento de uma clériga de Amaryllis.

- Somos Gunther e Ulfgar, viajantes precavidos. Estamos indo para Opuallia, sir Sanderson é meu primo. Eu não ousaria perder o casamento dele.

- Sou Walter e, como puderam perceber, preciso de uma escolta e tenho uma carroça e duas mulas teimosas que não se cansam facilmente.

            Juntos, pai da noiva, o escolhido falastrão e o anão pouco satisfeito sentaram no veículo aos pregos e voltaram para a estrada. Dessa vez, não usaram os pés.

***

            Pés firmes sustentavam um corpo pesado. Era um homezarrão com mais de dois metros de altura, braços quase tão corpulentos quanto o tronco pêludo típico dos habitantes do norte, mas mantinha os traços raciais da odiável raça dos orcs. Praticamente arrastava o machado quase tão grande quanto ele próprio, não porque era pesado demais, mas porque o barulho incinerante da lâmina rasgando a planície acalmava seus ânimos.

- Alto lá, orc! – gritou um cavaleiro com sua voz de desdém repugnante, portando armadura polida e espada longa afiada – não permitirei que uma criatura como você estrague o casamento de Isabelle.

- Não sou orc. – grunhiu o gigante.

- Boa tentativa – o cavaleiro desceu de seu cavalo, espada rente ao corpo – erga sua arma orc. Não ataco sujeitos indefesos, mesmo sendo da sua raça desprezível!

- Não sou orc. – repetiu o gigante.

            O cavaleiro se aproximou quase três metros do não-orc ameaçando-o com a lâmina longa de sua espada.

- Para onde você está indo monstro? – o cavaleiro insistiu em sua blasfêmia.

- Não estou indo. Estou caminhando. Não sou monstro. – poucas palavras, pouca intenção.

- Saia da estrada, contorne a cidade de Opuallia. Você não é bem-vindo lá. – o cavaleiro repentinamente julgou que aquela luta jamais iria acontecer.

            Já guardava a espada e subia em seu cavalo quando o caminhante de corpo avantajado perguntou:

- O que tem em Opuallia?

- Uma grande festa. Uma clériga de Amaryllis irá se casar, haverá comida farta, muitas pessoas e olhos preconceituosos. Você foi avisado, orc. – fez o cavalo trotar e seguiu na direção que queria, ignorando o orc.

- Não sou orc.

            Não houve despedidas. Houve um rápido distanciamento.

- Comida. – o grandalhão pensou alto.

            E seguiu em direção à Opuallia.

***

- É em Draganathor onde se vende o melhor fumo – falou o halfling de pés pêludos, cachimbo na boca, deitado desajeitadamente preguiçoso na parte dianteira da carroça. – Aliás, tudo o que há de melhor se vende em Draganathor. Já estive lá, uma vez, e a capital é colossal, para pessoas do meu tamanho e do seu amigo.

            Falava com um velho viajante de trajes aldeãs que carregava em sua carroçaria um amontoado de feno e punhados de fumo que, acolhido pelos assuntos enebriantes do halfling, mal havia notado que a especiaria estava prestes a acabar.

- Você parece conhecer muito do mundo, meu amigo Rastah – comentou o velho viajante – como alguém tão pequeno pode alcançar em tão pouco tempo tantos lugares do reinado?

- Sou uma presença agradável, oras. E também tenho sorte de encontrar viajantes interessados como você Bertold. Poderia lhe contar um pouco sobre Zarast, talvez sobre a Floresta dos Mil Sussurros e, quem sabe, sobre o Forte Brastav em Azran, mas, essa é a minha deixa.

- Para onde está indo, pequeno? – de alguma forma, despedir-se do halfling chegava a ser doloroso.

- Para Opuallia. Haverá um casamento e eu acho que fui convidado.

- Você acha?

- É uma longa história, meu amigo. Uma longa história. – levou o cachimbo à boca mais uma vez, virou-se para um novo caminho e estendeu a pequena mão para o alto em despedida eloquente.

            Os pés descalços pisavam em terra fértil, os cabelos mal lavados e grossos encaravam uma branda passagem de vento. Rastah era livre, ia pra onde queria. Não precisava de convites, apenas de propósito e, de alguma forma, não estava longe de Opuallia.

***

            Zeqy esfregou as ervas no pote de cerâmica, derramou o extrato da raíz-de-lince sob o reservatório e o mexeu apoiando as duas mãos em sua base. Zeqy era muito pequeno, tal qual Rastah, se vestia rudimentalmente e morava na pequena aldeia de Ymp, dentro do Bosque da Grama Alta. Ymp era grata aos serviços do sábio halfling.

            Se um corte da rosa-de-espinho-negro fosse profundo e o ferimento toma-se um tom arroxeado, Zeqy preparava uma massa pastosa de ervas e aplicava sobre o local atingido. Em dois dias, no máximo, o corte não seria mais do que uma cicatriz. Se a criança pisava num peixe-pedra e ficava febril, ela bebia um unguento especialmente preparado por Zeqy e bastava algumas horas para que esta se juntasse ao pequeno grupo de crianças que encarava o bosque da grama alta com curiosidade.

            Mas era a primeira vez que Zeqy via as pústulas vermelhas, tão horríveis como queimaduras profundas, roubar a saúde dos habitantes de Ymp. Criou novos extratos, pediu a benção dos Quatro, mas nada parecia ser suficiente. Em horas como essa, ele devia aceitar, talvez só as clérigas de Amaryllis, a pacata deusa da cura, pudessem ajudar.
            Assobiou e um lobo de pêlo esbranquiçado e olhos profundamente azuis saltou da grama alta até o seu encontro. Zeqy acariciou-o atrás da orelha e, em seguida, montou nele como um homem faria num cavalo.

- Para a estrada, amigo – sussurrou o halfling na orelha da montaria e o lobo voou utilizando-se de toda a velocidade de suas quatro patas.

            Não ia demorar muito e Zeqy logo estaria em Opuallia buscando a ajuda de Adelma.

***

            Não há um outro lar para os nobres elfos a não ser o encantado reino-floresta de Ellidoränne. É lá onde os elfos vivem longe das demais raças profanadoras de sua alta magia. Os antigos elfos se lembram muito bem de como confiaram nos humanos e como estes abusaram do conhecimento mágico para alimentar suas ambições indignas e, é por isso que os patronos da magia decidiram se afastar.

            Fora das fronteiras de Ellidoränne, elfos são raros. Há elfos desgarrados que preferiram unir-se às tendências humanas, proibidos de pisar em Ellidoränne novamente. A linhagem reconhecidamente nobre venera Gaiëha, a deusa da natureza e da alta magia, a bênção mágica concedida aos elfos e, por eles, compartilhada com o mundo.

            Os porta-vozes da deusa são os membros do respeitado Conselho dos Sete. Eles afirmam ser capazes de ouvir a voz de Gaiëha no sussurrar do vento, no criptar das chamas ou no sibilar das finas correntezas das cachoeiras élficas e, raramente há uma decisão tão agravante quanto a que aconteceu a meses atrás.

            Körzus retesou a linha de seu arco longo. Fechou um dos olhos e disparou contra uma árvore. Em Ellidoränne ele costumava treinar todos os dias, mas as terras dos indignos humanos lhe faziam esquecer muita coisa. Tudo passava muito rápido ali. O elfo nunca optou por se juntar à caravana de outros elfos que saíria de Ellidoränne para caçar e abater o foco de criação das quimeras.

            Quimeras. Era assim que os elfos nomeavam as aberrações que, por alguma razão, teimavam em ultrapassar os limites do reino-floresta de Ellidoränne. Suspeitaram de seus primos malignos, os elfos negros, suspeitaram da magia negra, mas as quimeras não eram feitas disso. Eram criaturas que aterrorizavam sonhos e eram cada vez mais frequentes nas redondezas de Ellidoränne.

            O Conselho dos Sete reuniu-se num conclave e selecionou sete indivíduos que teriam a missão sagrada de encontrar e destruir o responsável, ou responsáveis, pela infâmia invasão. Körzus demorou algum tempo para se acostumar com a vivência humana. Ele notou que os humanos criavam animais presos em gaiolas ou em cercas, retirando a glória de caçá-los. Os animais eram apenas abatidos, apesar da devoção destes em lhes dar comida e matéria-prima.

            Foi obrigado a engolir muita coisa e a falar com os quase indecifráveis viajantes de língua solta. Enfim encontrara uma informação sobre as aberrações que tanto caçava. Era uma informação imprecisa. Outro viajante falastrão que comentara sobre a beleza élfica, como tantos outros, para, logo depois, reclamar do desdém que a raça tinha para com as outras.

            Desdém. Körzus não entendia muito bem o que os humanos queriam. Respeito e paciência ele já dava, mas, tratá-los como iguais? Simplesmente ignorava as discussões.
- Nunca ouvi falar dessas coisas, elfo, mas, você deveria tentar perguntar aos Vistani. São ciganos. Eu vi uma caravana deles a pouco mais de uma hora naquela direção. Os ciganos sabem de muitas histórias. A maioria conta lorotas, mas há uma chance de serem cordiais com você.

            Körzus descobriu a mais de um mês que os humanos tinham o hábito de se despedir. E se despediu. Não sabia o que eram ciganos, mas não quis dar chance do viajante encontrar mais assunto.

- Entre elfo, você não deve temer a Madame Pérola – resmungou com sua voz de víbora uma velha decadente, de olhos esbugalhados, vestes longas e coloridas e empecilhos pendurados nas orelhas borrachudas. Körzus havia perdido não mais que uma hora para avistar a estranha caravana e ser indicado por um infame meio-elfo atirador de facas à tenda da velha Madame Pérola.

            O elfo entrou com passos cuidadosos e observou a mesa bagunçada com pedras transparentes, cartas empilhadas, uma esfera coberta por um tecido de veludo verde e as estantes velhas que apresentavam inúmeros frascos de poções de cores pouco confiáveis.
- Diga-me, o que uma raridade tão privilegiada veio fazer em minha tenda?

- Indicaram-me aos seus aposentos. Vim saber sobre as quimeras. – Körzus mantinha o porte elegante, suas espadas no torso e, sua arma predileta, o arco longo, nas costas. Tinha pinturas resvalhando-lhe o rosto. Ninguém perguntava, muito menos sabia, mas aquelas pinturas indicavam que Körzus estava numa missão sagrada.

- Quimeras… - balbuciou a velha sorrateira com um sorriso apodrecido no rosto – as criaturas do pesadelo – murmurou para si mesma e seguiu-se o som cacofônico de tosses nada saudáveis.

            Por um momento, Körzus chegou a pensar que a velha cigana não lhe daria informações suficientes, assim como todos os demais que ele havia encontrado, mas Madame Pérola lhe surpreendeu:

- Siga pela estrada ao lado do beir’água, onde duas árvores gêmeas marcam a entrada, então, caminhe até a cidade de Opuallia.

            Körzus assentiu. Não precisava de nada mais, mesmo assim a curiosidade afogou-lhe os pensamentos.

- O que são essas estranhas poções?

            Madame Pérola arrancou uma da estante. Esta mantinha um líquido esverdeado como musgo borbulhante, porém frio como o toque de um espírito. Havia um olho gelatinoso mergulhado no frasco.

- São presentes – a velha afirmou estendendo a poção para o elfo.

            Körzus aceitou o presente e tomou o rumo de Opuallia. Dessa vez esqueceu-se da despedida.


Fim do prólogo.     

Um comentário:

Unknown disse...

muito foda a narração! resumiu toda a aventura sem tirar a graça dela.

-Korzus Done-