Um prólogo de seis
Seis pares de pernas caminhavam
sobre o extenso tapete de grama molhado de orvalho que cobria monotonamente as
planícies de Asaron. Não eram passos rápidos, só firmes. A sola dos pés
daqueles viajantes já havia acostumado-se com o peso de seus corpos depois de
tantas viagens que eles insistiam em fazer. Aventureiros. Em outras épocas eles
eram muitos. Nessa época, raros. Gostavam de usar seus pés para viajar.
E eram lentos. Ah! Como os mortais
são lentos.
Os
viajantes estavam em pontos distintos da mesma região. Talvez um ou dois
tivessem um rumo a traçar, o restante confiava no ermo, no nada que se estendia
por aquelas planícies ou na sorte que o destino lhes reservava por não serem
habituais como qualquer aldeão. E eles acabariam por se encontrar em Opuallia,
uma cidade qualquer, com habitantes quaisquer, com costumes quaisquer.
A
vida tem dessas coisas. E eu não gosto dela.
De
onde eu vim, os habitantes marchavam trôpegos, em filas pálidas e rumo sinuoso,
em direção a algum lugar. Sempre o mesmo lugar. Eram almas. Elas despencavam
num poço escuro e se encontravam com uma centena de outras para então caminhar
no mundo de minha deusa.
Ah! Veronicca, a deusa da morte. A
única felicidade de um mórbido como eu.
Mas essa história não é sobre mim.
Sou um espectador assim como tantos. Assim como você leitor. A história é sobre
destinos. Sobre seis destinos.
***
-
Continuando aquela história que comecei a algumas horas – comentava um
dos andarilhos – eu, Gunther, o escolhido de Splendor, e mais dois confiáveis
aventureiros, adentramos o Pântano do Orc Praguejador e bastou alguns minutos de
andanças para que nossos pés se atolassem até os joelhos na lama imunda que
cercava todo aquele lugar.
-
Acho que me lembro de tê-lo ouvido falar sobre a mesma situação a uns dez
minutos atrás – resmungou o anão sem muita paciência para o brilhantismo de
Gunther.
-
Você tem razão Ulfgar. É um bom ouvinte, presta bastante atenção, talvez seja melhor pular a crônica para o momento em que o orc praguejador e sua horda
monstruosa nos atacou no meio do pântano, logo depois de enfrentarmos a
serpente constritora que havia nos surpreendido durante o caminho.
Que alguns malditos goblins
aparecessem, que um raio despencasse no chão repentinamente ou que a terra
desabasse, porque Ulfgar, o anão, não iria tolerar mais uma hora daquela ladainha.
-
Socorro! – ecoou uma voz rouca no meio da estrada. Da única estrada daquela vasta planície.
-
Melhor guardar a conversa pra depois – armou-se o anão com seu martelo de
guerra e seu escudo redondo feito de aço polido – hora de usarmos nossas armas.
Ulfgar, Martelo de Pedra era um
paladino anão. Servia a Hefasto, o deus da forja e qualquer indivíduo que houvesse escutado o mínimo sobre a raça saberia que um anão vinha de terras distantes e
tinha costumes bem diferentes. Ulfgar era jovem, mesmo assim possuía uma barba
espessa e pouco organizada que exibia com orgulho e que era típica dos anões. A
robustez da raça só ficava mais aparente com a usual armadura de placas
metálicas que Ulfgar portava. Paladinos não ignoravam um pedido de socorro.
-
Você está comigo Ulfgar – interrompeu Gunther, o escolhido – qualquer ameaça
não durará mais do que um minuto – e girou sua lança de haste tênue e
extremidade metálica.
Gunther era humano e, diferente de
Ulfgar, não havia uma denominação para a sua estirpe de aventureiro. As vezes,
ele mesmo se nomeava “o privilegiado”, outras vezes de “o escolhido”. Estava
claro como água que Gunther mantinha o seu ego acima das expectativas de
qualquer ouvinte. Sabia usar a lança num combate, mas, mais do que isso, a
magia lhe era manipulável. Era a magia capaz de fechar ferimentos e de lhe dar
a força e resistência de um santo. O temperamento de Gunther era atípico de um
santo, claro, mas isso não o limitava em nada. Também usava as placas de metal
para proteger-lhe o corpo, sempre bem polidas, para que o sol pudesse fazer delas
um espelho. Era loiro, de cabelos curtos e olhos distantes, sempre no mundo
dele. E era jovem, talvez tolo demais, talvez de uma sabedoria que ninguém conseguia
entender.
Ao longe, um homem baixo, gordo e de bigodes
feito taturanas estampadas abaixo de um nariz largo. Usava e abusava de muxoxos
implorando para que os goblins não carregassem tudo o que tinha em sua carroça
puxada por duas mulas pouco convincentes. Mas os assaltantes goblinóides, claro, não cediam a um choramingar precário.
Foi uma luta rápida. Como deveria
ser. O martelo de Ulfgar arrancou dentes e amassou crânios. A lança de Gunther
perfurou intestinos e impalou as débeis criaturas verdes com não mais de um
metro de vinte. Duas delas fugiram, carregando algo que o viajante desprecavido
iria sentir pouca falta.
-
Só pode ser pela graça dos deuses que vocês, viajantes, apareceram aqui para me
salvar.
-
É a graça de Splendor viajante, disso você pode ter certeza – Gunther arrancara
uma estopa de veludo de seus pertences e a transcorria pela lança a fim de
deixá-la tão brilhante quanto sua armadura. O sangue goblinóide não era digno.
- O que um viajante cheio de
bugigangas roubáveis faz sem escolta aqui, nas planícies de Asaron? – indagou o
anão, sem arrodeios e sem o mesmo apreço pela arma. Era sangue goblinóide e os
anões eram típicos inimigos destes, o sangue era a certeza de que Ulfgar havia
feito bem o seu trabalho.
- Nunca pretendi fazer uma
viagem longa. Venho de uma pequena aldeia dessas redondezas. Buscava legumes
para temperar a comida da cerimônia de casamento da minha filha.
- Cerimônia de casamento? – Impressionou-se
Gunther – por acaso sua filha vai se casar com sir Sanderson, de Zarast?
- Esse mesmo. Minha querida Isabelle
é sortuda. Terá uma vida melhor do que eu e minha esposa. Quando ela decidiu
ser clériga de Amaryllis, imaginei que iria casar-se muito tarde, mas Adelma a
abençoou bem cedo.
- Você está falando mais do
que a sua língua é capaz, mascate – Ulfgar tentou usar a lógica – meu companheiro
falastrão conhece esse tal sir
Sanderson e por conveniência, conheço esse sujeito mais do que deveria,
entretanto, não sei quem é Isabelle, muito menos Adelma.
- Isabelle é minha filha. A
noiva abençoada desta noite. Adelma é a porta-voz de Opuallia, uma clériga
experiente, responsável pela cerimônia. Muita gente vai à Opuallia essa noite,
haverá comida e bebida farta, como deve ser o casamento de uma clériga de
Amaryllis.
- Somos Gunther e Ulfgar,
viajantes precavidos. Estamos indo para Opuallia, sir Sanderson é meu primo. Eu não ousaria perder o casamento dele.
- Sou Walter e, como puderam
perceber, preciso de uma escolta e tenho uma carroça e duas mulas teimosas que
não se cansam facilmente.
Juntos, pai da noiva, o escolhido
falastrão e o anão pouco satisfeito sentaram no veículo aos pregos e voltaram
para a estrada. Dessa vez, não usaram os pés.
***
Pés firmes sustentavam um corpo
pesado. Era um homezarrão com mais de dois metros de altura, braços quase tão
corpulentos quanto o tronco pêludo típico dos habitantes do norte, mas mantinha
os traços raciais da odiável raça dos orcs. Praticamente arrastava o machado
quase tão grande quanto ele próprio, não porque era pesado demais, mas porque o
barulho incinerante da lâmina rasgando a planície acalmava seus ânimos.
-
Alto lá, orc! – gritou um cavaleiro com sua voz de desdém repugnante, portando
armadura polida e espada longa afiada – não permitirei que uma criatura como
você estrague o casamento de Isabelle.
-
Não sou orc. – grunhiu o gigante.
-
Boa tentativa – o cavaleiro desceu de seu cavalo, espada rente ao corpo –
erga sua arma orc. Não ataco sujeitos indefesos, mesmo sendo da sua raça desprezível!
-
Não sou orc. – repetiu o gigante.
O cavaleiro se aproximou quase três
metros do não-orc ameaçando-o com a lâmina longa de sua espada.
-
Para onde você está indo monstro? – o cavaleiro insistiu em sua blasfêmia.
-
Não estou indo. Estou caminhando. Não sou monstro. – poucas palavras, pouca
intenção.
-
Saia da estrada, contorne a cidade de Opuallia. Você não é bem-vindo lá. – o cavaleiro
repentinamente julgou que aquela luta jamais iria acontecer.
Já guardava a espada e subia em seu
cavalo quando o caminhante de corpo avantajado perguntou:
-
O que tem em Opuallia?
-
Uma grande festa. Uma clériga de Amaryllis irá se casar, haverá comida farta,
muitas pessoas e olhos preconceituosos. Você foi avisado, orc. – fez o cavalo
trotar e seguiu na direção que queria, ignorando o orc.
-
Não sou orc.
Não houve despedidas. Houve um
rápido distanciamento.
-
Comida. – o grandalhão pensou alto.
E seguiu em direção à Opuallia.
***
-
É em Draganathor onde se vende o melhor fumo – falou o halfling de pés pêludos,
cachimbo na boca, deitado desajeitadamente preguiçoso na parte dianteira da
carroça. – Aliás, tudo o que há de melhor se vende em Draganathor. Já estive
lá, uma vez, e a capital é colossal, para pessoas do meu tamanho e do seu amigo.
Falava com um velho viajante de
trajes aldeãs que carregava em sua carroçaria um amontoado de feno e punhados
de fumo que, acolhido pelos assuntos enebriantes do halfling, mal havia notado
que a especiaria estava prestes a acabar.
-
Você parece conhecer muito do mundo, meu amigo Rastah – comentou o velho
viajante – como alguém tão pequeno pode alcançar em tão pouco tempo tantos
lugares do reinado?
-
Sou uma presença agradável, oras. E também tenho sorte de encontrar viajantes interessados
como você Bertold. Poderia lhe contar um pouco sobre Zarast, talvez sobre a
Floresta dos Mil Sussurros e, quem sabe, sobre o Forte Brastav em Azran, mas,
essa é a minha deixa.
-
Para onde está indo, pequeno? – de alguma forma, despedir-se do halfling
chegava a ser doloroso.
-
Para Opuallia. Haverá um casamento e eu acho que fui convidado.
-
Você acha?
-
É uma longa história, meu amigo. Uma longa história. – levou o cachimbo à boca
mais uma vez, virou-se para um novo caminho e estendeu a pequena mão para o
alto em despedida eloquente.
Os pés descalços pisavam em terra
fértil, os cabelos mal lavados e grossos encaravam uma branda passagem de
vento. Rastah era livre, ia pra onde queria. Não precisava de convites, apenas
de propósito e, de alguma forma, não estava longe de Opuallia.
***
Zeqy esfregou as ervas no pote de
cerâmica, derramou o extrato da raíz-de-lince sob o reservatório e o mexeu
apoiando as duas mãos em sua base. Zeqy era muito pequeno, tal qual Rastah, se
vestia rudimentalmente e morava na pequena aldeia de Ymp, dentro do Bosque da
Grama Alta. Ymp era grata aos serviços do sábio halfling.
Se um corte da rosa-de-espinho-negro
fosse profundo e o ferimento toma-se um tom arroxeado, Zeqy preparava uma massa
pastosa de ervas e aplicava sobre o local atingido. Em dois dias, no máximo, o
corte não seria mais do que uma cicatriz. Se a criança pisava num peixe-pedra e
ficava febril, ela bebia um unguento especialmente preparado por Zeqy e bastava
algumas horas para que esta se juntasse ao pequeno grupo de crianças que
encarava o bosque da grama alta com curiosidade.
Mas era a primeira vez que Zeqy via
as pústulas vermelhas, tão horríveis como queimaduras profundas, roubar a saúde
dos habitantes de Ymp. Criou novos extratos, pediu a benção dos Quatro, mas
nada parecia ser suficiente. Em horas como essa, ele devia aceitar, talvez só
as clérigas de Amaryllis, a pacata deusa da cura, pudessem ajudar.
Assobiou e um lobo de pêlo
esbranquiçado e olhos profundamente azuis saltou da grama alta até o seu
encontro. Zeqy acariciou-o atrás da orelha e, em seguida, montou nele como um
homem faria num cavalo.
-
Para a estrada, amigo – sussurrou o halfling na orelha da montaria e o lobo
voou utilizando-se de toda a velocidade de suas quatro patas.
Não ia demorar muito e Zeqy logo
estaria em Opuallia buscando a ajuda de Adelma.
***
Não há um outro lar para os nobres
elfos a não ser o encantado reino-floresta de Ellidoränne. É lá onde os elfos
vivem longe das demais raças profanadoras de sua alta magia. Os antigos elfos
se lembram muito bem de como confiaram nos humanos e como estes abusaram do
conhecimento mágico para alimentar suas ambições indignas e, é por isso que os
patronos da magia decidiram se afastar.
Fora das fronteiras de Ellidoränne,
elfos são raros. Há elfos desgarrados que preferiram unir-se às tendências
humanas, proibidos de pisar em Ellidoränne novamente. A linhagem
reconhecidamente nobre venera Gaiëha, a deusa da natureza e da alta magia, a
bênção mágica concedida aos elfos e, por eles, compartilhada com o mundo.
Os porta-vozes da deusa são os
membros do respeitado Conselho dos Sete. Eles afirmam ser capazes de ouvir a
voz de Gaiëha no sussurrar do vento, no criptar das chamas ou no sibilar das
finas correntezas das cachoeiras élficas e, raramente há uma decisão tão
agravante quanto a que aconteceu a meses atrás.
Körzus retesou a linha de seu arco
longo. Fechou um dos olhos e disparou contra uma árvore. Em Ellidoränne ele
costumava treinar todos os dias, mas as terras dos indignos humanos lhe faziam
esquecer muita coisa. Tudo passava muito rápido ali. O elfo nunca optou por se
juntar à caravana de outros elfos que saíria de Ellidoränne para caçar e abater
o foco de criação das quimeras.
Quimeras. Era assim que os elfos
nomeavam as aberrações que, por alguma razão, teimavam em ultrapassar os
limites do reino-floresta de Ellidoränne. Suspeitaram de seus primos malignos,
os elfos negros, suspeitaram da magia negra, mas as quimeras não eram feitas
disso. Eram criaturas que aterrorizavam sonhos e eram cada vez mais frequentes
nas redondezas de Ellidoränne.
O Conselho dos Sete reuniu-se num
conclave e selecionou sete indivíduos que teriam a missão sagrada de encontrar e
destruir o responsável, ou responsáveis, pela infâmia invasão. Körzus demorou
algum tempo para se acostumar com a vivência humana. Ele notou que os humanos
criavam animais presos em gaiolas ou em cercas, retirando a glória de caçá-los.
Os animais eram apenas abatidos, apesar da devoção destes em lhes dar comida e
matéria-prima.
Foi obrigado a engolir muita coisa e
a falar com os quase indecifráveis viajantes de língua solta. Enfim encontrara
uma informação sobre as aberrações que tanto caçava. Era uma informação imprecisa.
Outro viajante falastrão que comentara sobre a beleza élfica, como tantos
outros, para, logo depois, reclamar do desdém que a raça tinha para com as
outras.
Desdém. Körzus não entendia muito
bem o que os humanos queriam. Respeito e paciência ele já dava, mas, tratá-los como
iguais? Simplesmente ignorava as discussões.
-
Nunca ouvi falar dessas coisas, elfo, mas, você deveria tentar perguntar aos
Vistani. São ciganos. Eu vi uma caravana deles a pouco mais de uma hora naquela
direção. Os ciganos sabem de muitas histórias. A maioria conta lorotas, mas há
uma chance de serem cordiais com você.
Körzus descobriu a mais de um mês
que os humanos tinham o hábito de se despedir. E se despediu. Não sabia o que
eram ciganos, mas não quis dar chance do viajante encontrar mais assunto.
-
Entre elfo, você não deve temer a Madame Pérola – resmungou com sua voz de
víbora uma velha decadente, de olhos esbugalhados, vestes longas e coloridas e
empecilhos pendurados nas orelhas borrachudas. Körzus havia perdido não mais
que uma hora para avistar a estranha caravana e ser indicado por um infame
meio-elfo atirador de facas à tenda da velha Madame Pérola.
O elfo entrou com passos cuidadosos
e observou a mesa bagunçada com pedras transparentes, cartas empilhadas, uma
esfera coberta por um tecido de veludo verde e as estantes velhas que
apresentavam inúmeros frascos de poções de cores pouco confiáveis.
-
Diga-me, o que uma raridade tão privilegiada veio fazer em minha tenda?
-
Indicaram-me aos seus aposentos. Vim saber sobre as quimeras. – Körzus mantinha
o porte elegante, suas espadas no torso e, sua arma predileta, o arco longo,
nas costas. Tinha pinturas resvalhando-lhe o rosto. Ninguém perguntava, muito
menos sabia, mas aquelas pinturas indicavam que Körzus estava numa missão
sagrada.
-
Quimeras… - balbuciou a velha sorrateira com um sorriso apodrecido no rosto –
as criaturas do pesadelo – murmurou para si mesma e seguiu-se o som cacofônico
de tosses nada saudáveis.
Por um momento, Körzus chegou a
pensar que a velha cigana não lhe daria informações suficientes, assim como
todos os demais que ele havia encontrado, mas Madame Pérola lhe surpreendeu:
-
Siga pela estrada ao lado do beir’água, onde duas árvores gêmeas marcam a
entrada, então, caminhe até a cidade de Opuallia.
Körzus
assentiu. Não precisava de nada mais, mesmo assim a curiosidade afogou-lhe os
pensamentos.
-
O que são essas estranhas poções?
Madame Pérola arrancou uma da
estante. Esta mantinha um líquido esverdeado como musgo borbulhante, porém frio
como o toque de um espírito. Havia um olho gelatinoso mergulhado no frasco.
-
São presentes – a velha afirmou estendendo a poção para o elfo.
Körzus aceitou o presente e tomou o
rumo de Opuallia. Dessa vez esqueceu-se da despedida.
Fim
do prólogo.
Um comentário:
muito foda a narração! resumiu toda a aventura sem tirar a graça dela.
-Korzus Done-
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