***
Eu
sou Javert. Tu já conheces meu nome. Tu já me conheces. Se não, vou fazer com
que tu, caro leitor, me conheças agora. Primeiramente, confia em mim. Esse é o
tipo de sugestão que um charlatão faria, não é? ...Só que vinda de mim, deves
mesmo confiar. Contarei a ti um segredo, que nem é tão segredo assim. Sempre o
conto a meus íntimos e, só porque agora estás com esse escrito em mãos, já me
és um amigo inevitável.
Todo
o meu saber vêm de minhas aventuras e de inúmeras horas desperdiçadas
conversando com bêbados, jogadores e mendigos (você se surpreenderia com o
quanto um mendigo pode saber). Com o tempo, alguém que vive como Javert,
ouvinte de tantas histórias verdadeiras e falsas, acaba desenvolvendo um sexto
sentido que auxilia em suas decisões. Sou, sim, com orgulho, um oportunista.
Sei brilhar! Javert, certamente, estará no caminho certo, na hora certa. Por
isso, você me conhece. O segredo é: eu sei viver.
Quando
Ivny apareceu, vestida pela escuridão daquela noite, Javert pensou: Não poderia
ser simples coincidência. Talvez tu não tenhas percebido, caro leitor, que em
todas as histórias de heróis acontecem incríveis coincidências. Porque foi
justamente Vincent d’Grimaldi quem quebrou as correntes da prisão de Libertine?
Porque será que as lâminas gêmeas escolheram o príncipe Aisenn para
ostentá-las? Diga ao Javert, então, o que tu achas sobre a história de
Rigoberto, aquele que é encontrado, morrendo, pela samaritana que viaja
passando pela primeira vez no local que estava destinado a ser o sepulcro dele?
Foi
por meio dessa astúcia que Javert se convenceu, ali mesmo, já de mochila nas
costas, ao deparar-se com Ivny, que deveria unir-se àquele pitoresco grupo de
estranhezas. Suspeitei, sim, que Ivny e Sir Antoine iriam se matar, mas as
suspeitas de que o garoto Aensell estava no Pouca-floresta a ser esfolado por
um bando de goblins imundos foi problema maior do que a minha preguiça de ter
de lhe dar com um par de cabeças-duras.
Fui
apresentado ao mais legítimo silêncio do meio gigante Golias, ao conformado
Hildegrim e ao pequeno e confuso Koku, ainda criança, naquela época. O cocheiro
e a criança ficaram para trás. Gritariam a plenos pulmões se algo os
importunasse. Aquela carruagem não passaria pela passagem apertada do
Pouca-floresta. Juntos, o restante do grupo enfrentou os robgoblins e seus
wyvern para, enfim, descobrirem que toda aquela missão havia sido em vão.
Imagine,
caro leitor, a cara de Javert quando não encontrou sequer um fio de cabelo do
pobre Aensell naquele inferno. Agora imagine o que Ivny sentiu naquele momento.
A tristeza combinava com ela. O rosto de um vampiro está fadado a não sorrir
sinceramente, a não ser que este se deixe ser levado pela besta dentro de si.
Eu
não sabia que a irmã do garoto havia se tornado uma vítima da necromancia.
Javert já escutou milhares de histórias com essas criaturas feitas de luxúria e
sangue e em nenhuma destas os sanguessugas eram heróis. Eles sempre se
corrompiam e, ao meu ver, Ivny logo abraçaria sua essência vampiresca.
De
fato, isto aconteceu ainda naquela noite.
Wyvern |
O
último wyvern havia esbarrado nas árvores, em queda livre, quando Golias o
acertou mortalmente na garganta com um daqueles projéteis feitos para gigantes.
O robgoblin que estava montado nele foi imediatamente executado por Ivny que
nem ao menos me esperou fazer as perguntas certas. Quem sabe as confissões que
Javert poderia ter arrancado de um robgoblin ameaçado? A Pouca-floresta havia
sido arrasada pela artilharia arcana de Sir Antoine. Admito, os escravos draculean
são poderosos. Não houvera diplomacia depois que o sir disparara seus raios no xamã
dos goblinóides, muito menos quando a espada de relâmpagos crocitou furiosa
explodindo os crânios de quem ele atacava. Sem voto de lealdade a ninguém do
grupo, o sir disparava raios e trovões sem se preocupar com a vida de Javert ou
de qualquer outro. Sua tatuagem arcana brilhava envolta de eletricidade e
estática. Ivny o detestava.
A
última cabeça rolava e Javert já sabia que Aensell não seria encontrado ali.
Ivny sentia o mesmo, eu notara. A lamúria, entretanto, não alcançara Sir
Antoine. Nada ele sentira além da satisfação que nos é proporcionada apenas
quando se alcança a vingança. A gritos coléricos ameaçava a vida e a pós vida
dos “traidores dos reis”. “NÃO SOBRARÁ NADA DE SUA ESPÉCIE, ROBGOBLIN
MISERÁVEL! MESMO O SANGUE SE TORNARÁ PÓ DIANTE O PODER DE RAZORAX! ”, urrava
ele enquanto faíscas dançavam ao seu redor.
Havia
acabado e só restava o silêncio do sangue a pingar. Podíamos sentar ali, depois
de tudo acabado e descansar os pés de Javert, mas o silêncio logo foi
interrompido por causa dos gritos de socorro ecoados por Koku. Sem avisos,
Golias correu para avaliar o acontecido. O mesmo faria Javert, se não houvesse
escutado o início da discussão entre Ivny e Sir Antoine.
Como
já disse, meu amigo leitor, Javert está no canto certo, na hora certa. Naquele
momento, o lugar certo era atrás de um arbusto a se esconder da presença da
vampira e do escravo draculean.
“Você
não nos ajudará?” enraiveceu-se Ivny quando percebera que Sir Antoine ignorava
os pedidos de socorro. “Porque iria?” perguntou ele, desdenhoso, “Você deve ao
grupo! Koku é nosso aliado”, “Devo nada a vocês, aos únicos que devo juramentos
estão sentados em tronos de ouro no alto da torre de Draganathor”,
“Miserável!”, xingou Ivny, “Aqueles dois não deveriam estar aqui. Eles sabem
disso. Você sabe disso, vampira. Essa é a diferença entre o povo civilizado e
os animais entregues à barbárie: o primeiro está sempre preparado e só morrerá
por honra e dever, o segundo arrisca a vida mediocramente e usa mil e umas
máscaras ao decorrer da vida inferior que vivem”.
Javert
pôde ver o sangue de Ivny esquentar. Foi o frenesi vampírico que preencheu os
olhos da garota morta-viva da rúbea cor. Não houve avisos prévios. Ivny
simplesmente saltara em movimentos tão leves que parecia ser guiada pelo vento.
Um vento que não existia naquela arena de pingos de sangue e tripas. Cravou a
lâmina curva pouco abaixo da nuca de Sir Antoine enquanto sentia o choque da
estática que rodeava o escravo draculean. Sangue espirrou no rosto da vampira.
Ela lambeu-o. Forçou a lâmina até que pudesse ouvir o estalo da coluna de sua
vítima, mas foi golpeada por mil agulhas elétricas antes disso.
O
corpo da vampira foi arremessado contra o cadáver de uma wyvern. A asa da
criatura falecida desmoronou e esmagou Ivny. Ergueu-se um sir envolto de poder
que parecia não acabar. Ele disse: “Deu-me mais de um motivo para ser
incinerada, garota tola. Você é uma aberração traidora e indigna de
existência”, Antoine arrancou a lâmina de suas costas tolerando a dor que
notavelmente sentia. Seus dentes estavam tingidos de sangue, este transbordava
pela sua garganta. “Vai morrer num cemitério de criaturas miseráveis, porque
merece”, levantou a asa do wyvern e notou que a vampira não estava mais lá.
“Criatura rasteira! Sua covardia não me intimida”, o escravo draculean
manteve-se parado esperando pela aparição de Ivny durante alguns segundos
tensos. Javert não sabia para onde a vampira havia se embrenhado. Esperei tão
ansioso quanto o sir.
Por
fim ela agiu. Arremessou a derradeira lâmina às escondidas. O metal girou no ar
e parou. Foi defletido pela estática ao redor de Antoine. “Vai ter que fazer
melhor do que isso!”. E ela fez mais do que devia. Distraído pela direção na
qual a lâmina havia sido arremessada, Sir Antoine não percebeu quando o vulto
saltou em suas costas e o agarrou cravando as presas em seu pescoço. Javert
descobriu que o sir era feito de sangue. Muito sangue. Ele derramava-se como
riacho e se misturava ao sangue já escorrido na arena. O escravo draculean
empalidecia e seus joelhos, já não aguentando a dor, se curvavam ao encontro do
chão.
Javert
pensou que tudo acabaria ali, mas Sir Antoine tinha forças ocultas e conseguiu
livrar-se das presas vampíricas à cotoveladas. Os dentes pontiagudos arrancaram
uma porção de carne. Ivny tentava abocanhar o pescoço do sir novamente, mas a
cada tentativa, mais impossível parecia. A eletricidade percorria o corpo do
escravo como um último esforço físico e a vampira tolerava a dor enquanto
chicotes luminosos partiam sua pele cadavérica. Ivny já estava totalmente
entregue ao frenesi, não haveria outro resultado naquela luta a não ser a morte
de um dos dois. Javert, então, decidiu continuar nos arbustos. Era o certo.
Deliberadamente,
a vampira esqueceu-se das presas e usou as mãos. Elas eram feito garras. Ah!
Meu caro leitor, jamais Javert vira tamanha brutalidade! ...as garras
esmaltadas de sangue alcançaram o ferimento na nuca de Sir Antoine. Cavaram
como um verme. Logo ali estavam as duas mãos, com todos os dedos, segurando o
osso da nuca que ligava o crânio a espinha da vítima. Tudo por debaixo da pele,
da carne e do sangue. Ivny urrava como uma leoa. Sir Antoine ofendia a sua
caçadora. “Vadia”. E Ivny continuava a arrancar e arrancar, e o sangue
transbordava num festim de selvageria. O osso agarrado estalara. Sir Antoine
estava morto, mas isso não significava nada para a vampira. Ela continuou a
puxar e a arrancar até que a carne da vítima inteira cedesse e desse passagem à
coluna óssea. Livre, macabra e ensanguentada, rasgando o resto da pele. Um
banquete que Javert recusara-se a assistir por mais tempo. Ausentei-me e fui
ter com aqueles que também precisavam de salvação.
***
Hildegrim gritava. Koku observava tudo com seus olhos
amendoados de macaco assustado atrás da árvore. Duas flechas do meio gigante
estavam cravadas num lobo de pelagem negra e espessa. Golias havia chegado a
tempo, mas nem tanto.
Warg |
Quando Javert chegou, viu mais sangue. Diabos levem todos! Aquele dia estava cheio de morte! Assisti Golias tombando o lobo quase tão grande quanto um cavalo. Os robgoblins os chamavam de wargs. Eram suas montarias menos exóticas, se comparados aos wyverns. O braço de Hildegrim estava preso na mandíbula do warg. Arrancado. Por isso o cocheiro gritava. Cheguei perto o suficiente e ajudei a arrastar o coitado para um lugar seguro. A desgraçada criatura havia conseguido arrancar o olho direito de Hildegrim, também.
Em meio aos gritos de horror, Golias mantinha-se austero.
Ele segurava o corpo de Hildegrim com força descomunal e, com a leveza de um
lenhador quebrando um tronco de madeira com o joelho, colocou os ossos
afundados da coluna do coitado de volta ao lugar. "Vai morrer",
comentei descrente. Não obtive qualquer reação do meio gigante. Koku se
aproximava com uma mistura de lamento e curiosidade.
Ivny chegou quando os gritos de Hildegrim quase cessavam.
Correu em direção ao escravo e o olhou com uma pena tão humana que se
contrastava com seu aspecto. Ela havia controlado o frenesi, mas seus olhos
ainda gotejavam a cor rubra. Não conseguia assistir àquela perda. A tensão do
momento cegou os olhos de todos pois ninguém notara a quantidade demasiada de
sangue que vestia a vampira. Suas presas saltavam novamente de suas gengivas...
iria fazer o que seu tipo de monstro fazia. Toquei em seu braço e disse: “Vai
ficar tudo bem”, isso pareceu acalmá-la a ponto de impedir que ela causasse
tamanho estrago. “Koku, você veio da Mil Sussurros, não é mesmo?” o garoto
macaco assentiu atônito, “Seus irmãos são grandes conhecedores das artes da
cura. É possível que você conheça ao menos os primeiros socorros”, Koku não
conseguia raciocinar, “Concentre-se, menino. O homem vai morrer se não fizeres
nada!”
Koku fez o que pôde. Sem o braço e o olho direito,
Hildegrim sobreviveria. Passaram-se muitos dias e noites até que ele se
acordasse e lamentasse seu estado. Javert liderou a carruagem enquanto isso.
Quando a tensão de vida e morte havia sido sanada, preocupei-me com Ivny. Ela
se manteve calada por muito tempo dentro da carruagem. Respeitei isso até o
momento em que a vi sozinha a contemplar as poucas estrelas de certa noite.
“Você deseja me contar alguma coisa, Ivny? Javert é um amigo de ouvidos
abertos, agora. Aproveite-me”.
Ela me ignorou. Continuou em silêncio e, assim,
permaneceria por muito mais tempo.
***
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