sábado, 26 de agosto de 2017

Aventuras Anônimas IX

***

- Ei, garota, eu sei que você ainda pode se controlar, vamos lá, pelo menos tenta – Aldebaran gritava em meio à cidade de carne.

Ivny agora era a carne. Sua existência incrustada em uma coluna de pele, músculos e ossos sangrentos.

- Vamos, vampirinha, não me faz usar minhas preciosas contra você.

As lâminas irromperam em chamas ardentes.

- Incrível! Que poder magnífico! – comentou Hidro, a cabeça falante – tão poderoso é aquele que possui o Necronomicon que ele criou toda essa... coisa! – o rosto voltado para o cárcere mutilado, emoldurando todos os alicerces.

O gnomo estava mais focado na própria cobiça do que no perigo de se afogar em sangue e morte. À sua disposição estava Arafat, segurando-o com a indelicadeza de guerreiro bruto.

- Sua cabeça estúpida! Como pode invejar esse inferno? – interrompeu o guerreiro de fogo.

- Conhecimento é lei, meu caro Aldebaran. Mesmo para uma cabeça sem corpo.

- Eu vou destruir essa coisa, depois rachar o seu crânio, Hidro, nem que para isso eu tenha que deter Arafat e morra tentando fazê-lo! Estou lhe avisando!

- Não será preciso, idiota. Nós iremos deter essa coisa juntos. Eu não virei uma cabeça falante para se transformar no servo de um deus-lich.
Arafat assentiu e se esforçou para esboçar um sorriso entre as cicatrizes de seu rosto esfacelado.

Aldebaran deu um passo a frente e resvalou as lâminas de fogo uma na outra, provocando faíscas mais ardentes do que a do metal comum, puxou o fôlego e soprou como um dragão faria ao enxamear a arena com fogo arrasador.
A língua flamejante transformou-se em um véu de chamas e lambeu o pilar de carne.

Ivny estremeceu. Era dor. Olhou para os responsáveis. Um painel cinzento de vítimas.

- Não tem mais jeito, não é, garota? Mas, não se preocupe, Aldebaran dará um fim ao seu sofrimento! – o guerreiro de fogo ergueu uma das lâminas, feito uma tocha.

Ivny entregou-se ao frenesi. A montanha de corpos respondeu aos seus anseios. O pilar de carne se desfez e um braço gigante, cheio de dentes e ossos pontiagudos, varreu sua fronte.

Aldebaran saltou a tempo de esquivar-se, mas Arafat foi surpreendido pelo encontrão, ainda sem a espada empunhada. Aldebaran cravou uma das espadas flamejantes no gigante de carne e abriu o ferimento com a segunda. O sangue ferveu e a carne cauterizou, fazendo subir um cheiro de morte apodrecido. Arafat usava as manoplas da sua armadura de adamante para rachar crânios ou arrancá-los dos meio-corpos que estavam enterrados no rio de cadáveres.

O ar, então, se tornou repentinamente mais frio e lascas de gelo protuberantes se erguerem do chão e do pilar de carne. Arafat abraçou o braço gigante e o arrancou com demasiado esforço. O sangue congelado parecia pedaços de vidro vermelho quando o guerreiro de cicatrizes o jogou contra o pátio e este se estilhaçou.

Montado em uma dezena de cadáveres famintos, Aldebaran encontrava o caminho pelas vísceras do segundo braço gigante. Fumaça seguida de cinzas flutuaram do ferimento causado pelas lâminas flamejantes. Os mortos-vivos incrustados na massa de carne derreteram e ficaram encharcados de chamas e bolhas até que finalmente explodiram numa borbulha só.

- Vamos, vampirinha, eu sei que isso não é nem metade do que você pode fazer. Faça eu me arrepender de estar gostando dessa peleja.


Então, as aberrações mais delirantes sorveram pela cidade de carne. Corpos partidos, com intestinos arrancados, mandíbulas abertas como quelíceras, salivando fios de sangue derramados feito teias de aranha. Ossos e músculos atrofiados as faziam andar trôpegas. Famintas. O terror se alastrou no combate, mas Aldebaran e Arafat eram guerreiros experientes e, apesar de não terem visto coisa mais bizarra do que aquilo, sustentaram seus espíritos enclausurados no corpo. Os andantes gritaram um som estridente de agonia, como o de mil vítimas de pescoço quebrado e lançaram-se numa investida suicida. Costa a costa, eles giraram suas espadas num dueto de corpos que somente combatentes que haviam lutando muitas guerras juntos poderiam realizar com tal perfeição a ponto de ambos tornarem-se um só vórtice que fazia chover naquele mundo os resíduos da morte.


E mais mortos saíam do chão, desta vez com a pele derretida, lodosa como limo, com superfícies inteiras varridas pelas pústulas. Os braços eram tentáculos de carne que estrangulavam e chicoteavam como armas mortais. Puxava-os ao encontro da boca carcomida de dentes afiados e salivavam doença. Naquele dia, Aldebaran e Arafat não conseguiram contar suas vítimas. Arafat nunca havia feito essa matemática. Aldebaran, no entanto, parou no cento e doze e, foi nessa hora que ele desacreditou na vitória, pois cravou-se na montanha de cadáveres já vencidos, ossos pontiagudos de coloração negra e vítrea. Eles cresceram feito veias pulsantes e saltaram para a fora dos corpos mutilados na forma de milhares de presas. Os cadáveres passaram a morder tudo que encontravam pela frente, principalmente, a eles mesmos. Um devorando o outro até se transformarem em uma única criatura feita de cabeças, torsos e membros trespassados por lanças negras.

Os heróis, encharcados de sangue a ponto de serem irreconhecíveis, eram apenas feitos de espada e órbitas oculares ainda brilhando vívidas, porém tênues. Eles se entreolharam como se fosse aquela a última vez e a cena tornou-se lamentosa para qualquer um que ainda acreditasse na vitória deles. A massa única de mortos apenas se arrastava, fechando o círculo enquanto tinham a carne partida pelos golpes dos guerreiros.


As lanças negras eram tão fortes e inquebráveis que romperam a armadura de adamante de Arafat. Três destas trespassaram o corpo do herói de muitas cicatrizes e o delírio vagou por sua consciência ao ponto de quase desacordá-lo, mas Arafat entregou-se a uma fúria incontrolável de combate. Gritou, como nunca tinha gritado antes, era como o rugido de um leão. A boca tanto se escancarou que a pele que a cobria se rasgou, como uma costura forçada. As cicatrizes romperam-se em explosões de sangue. Durante a segunda saraivada de lanças negras, seu único olho bom foi sulcado até o interior do crânio.

Os tentáculos seguraram os braços e o torso de Aldebaran. Por dezenas de vezes ele os cortou e transformou em pele derretida, mas, enfim, o guerreiro das lâminas de fogo foi vencido. Os tentáculos tanto forçaram o corpo de Aldebaran que, em meio aos gemidos trêmulos de fome da mortalha de cadáveres, pôde-se ouvir o som de seu braço direito se deslocando. A massa de mortos-vivos o ergueu e forçou sua coluna até que o herói gritasse guiado pela dor lancinante de ter o corpo dobrado no ângulo de um arco longo.

Mas nenhum morreu. A mortalha ainda não queria isso.

Ivny, rainha daquele reino de horror permaneceu austera, incrustada numa parede de carne que se abria como as pétalas de uma rosa demoníaca. Ela mantinha os olhos vermelhos de frenesi. Sugou o ar em sua volta e um frio cortante como o de Nevaska surgiu no lugar. Os poros se dilataram e muitos tornaram-se furúnculos enquanto eram preenchidos pelo sangue que circulava em seus hóspedes para, finalmente, explodirem e o líquido vermelho evaporar sendo guiado até a boca faminta da vampira.

- IVNY!

Alguém interrompeu a alimentação.

Era Hildegram, o aleijado.

- Se é isto que você se tornou! Quero ser sua parte! – o cocheiro abriu os braços e caiu de joelhos, lamentando enquanto envolto de sangue e lágrimas – Você me tirou a vida a muito tempo. Sou parte sua, mestra! Faça-me sentir dor se for preciso, mas deixe-me perto de você!

Os olhos da mortalha se encheram de piedade. Ela caminhou até Hildegrim. As pétalas de carne se tornaram asas feitas de pele, flutuando envolta do ar frio. As lanças negras criaram um caminho para ela e, pelo minuto seguinte, o desfile de uma rainha trajando o vestido traçado pela morte debruçou-se sobre a arena até alcançar o aleijado. Foi como um abraço doloroso. Hildegrim não pôde evitar gritar. A boca de Ivny escancarou-se, partindo a mandíbula, abrindo do pescoço até os seios, como uma única boca cravada de presas vampíricas, preparada para devorá-lo vivo.

Koku saiu de seu esconderijo e lançou as sementes.

Eram sementes envoltas de fogo, catadas do templo dos Quatro que agora estava destruído e envolto de carne, assim como todo o resto. O garoto macaco soprou as sementes e os deuses elementais concederam o milagre. Elas se desmanchavam em chamas e pareciam prontas para explodir. Foi isso que elas fizeram, assim que foram arremessadas certeiramente na boca bizarra da mortalha.

Quando Ivny as sentiu, derretendo seu interior, largou Hildegrim. Ele foi arremessado como uma bola de sangue até os confins do terror. As sementes explodiram. Eram seis. Lanças de fogo trespassavam as vísceras da mortalha e encontravam uma fuga pelos poros, em cada estouro. A aberração gritou dolorosamente e toda a cidade de carne estremeceu.

Isso aconteceu por apenas meio minuto, mas foi o suficiente para Aldebaran e Arafat se livrarem, mesmo mutilados.

- O coração dela é um cristal verde! – alertou Koku – vocês vão encontrá-lo no estômago! Eu o vi enquanto as sementes criavam buracos no corpo dela!

Aldebaran armou-se com uma única espada flamejante, já que seu braço direito estava quebrado, e investiu contra a mortalha sôfrega, numa linha oscilante, pois estava tão trôpego quanto os mortos que ele havia eliminado. A lâmina ígnea foi cravada no peito da criatura que, logo, descobriu qual era a intenção do herói.

Ao invés de impedi-lo, cravou as presas no pescoço de Aldebaran, num abraço de morte que deixava o corpo do guerreiro cada segundo mais pálido.
Aldebaran fraquejou até ajoelhar-se, sem forças. Desmaiou enfraquecido. A lâmina não havia terminado o serviço.

Arafat agarrou o corpo de Aldebaran e o arrancou daquele lugar. A espada larga do guerreiro de cicatrizes cravou no mesmo ferimento que o aliado havia começado. Rompeu a carne até enxergar o brilho esverdeado contido no estômago da criatura, então, percebeu que seu braço se enterrava na carne da mortalha, como se estivesse sendo engolido vivo. Arafat sentiu as presas internas de Ivny morderem o braço que ele empunhava a espada, desprezando sua armadura de adamante. O guerreiro não tinha forças para se livrar daquilo e também não podia evitar que o corpo da vampira se regenerasse a ponto de enclausurar novamente o coração e pôr um fim ao fracassável combate.

Já prestes a ceder à mortalha sanguessuga, Arafat usou seu único braço livre para se armar com a cabeça de Hidro.

- O gelo não funciona contra essa criatura, idiota! Nós vamos morrer! – ralhou a cabeça.

Sem aviso prévio, Arafat enterrou a cabeça de Hidro nas vísceras da mortalha. As fuças se afogando em sangue que se misturava à saliva do gnomo.
Hidro sentiu a gema espinhosa lhe cortar os lábios. Abocanhou. Arafat o tirou das vísceras da criatura para, enfim, desmaiar sem forças.

A cabeça do gnomo bochechou o coração de Ivny na boca. Ajeitou-o entre os dentes e mordeu até estilhaçá-lo!

Ivny sentiu a monstruosidade devorar sua existência a ponto mordiscar a si mesma. Como uma serpente que devora o próprio rabo.

Hidro cuspiu os restos da gema espinhosa e riu sadicamente.

A mortalha, aos poucos, abandonava os alicerces de Zarast.


***

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