quarta-feira, 2 de agosto de 2017

Aventuras anônimas V

***
- Você deve nos deixar, Javert – revelou Ivny.

Nunca alguém havia negado a presença do bardo.

- Precisei da sua ajuda, mas agora basta – a vampira não parecia furiosa, apenas fria – é aqui que você deve retornar para a torre. Alguns quilômetros à frente e chegaremos em Zarast. Meu destino. O destino do grupo. Não é o seu.

Javert apenas ouvia.

- Não é da sua falácia e esperteza que precisamos agora. Precisamos de sutileza.

- Entendo – concordou o halfling, surpreendendo Ivny.

Javert sabia que aquele insincero pedido era um imploro. Sabia que a presença dele fazia com que Ivny encarasse constantemente o passado. Para ela aquilo era cada vez mais doloroso. Javert conheceu Ivny e Aensell ainda mais crianças, no mesmo dia em que Barghamann os havia adotado. O bardo sempre foi a atração principal dos últimos dias da semana na Dragão Uivante, mas era muito mais do que isso. Era amigo de Barghamann.  Um conselheiro confiável, embora pudesse não parecer. Aensell lhe tinha muita simpatia.

- De qualquer forma, Javert pertence à Draganathor – concluiu ele, disfarçando um sorriso.

Aliviada, Ivny permitiu-se um sorriso. Meneou a cabeça em aprovação.

- Ivny...

A vampira parou. Seria as últimas palavras que ouviria dele, por enquanto.

- Você está fazendo o certo – a vampira ficou atônita – Está protegendo seu irmão. Essa é sua missão. Nunca se esqueça disso. Nunca mude seu propósito. Seu irmão é a razão de sua sanidade.

Disse e partiu. Não houve adeus de nenhuma das partes.

***

Por muito tempo Hildegrim havia permanecido na escuridão da carruagem sem sentir que a sua dona estava a vigiá-lo. Acordou com o barulho de roda estalando nas pedras da estrada. O veículo movia-se lentamente. Hildegrim sabia que não estavam manobrando os cavalos nas rédeas e sim os guiando por uma planície que se tornava cada vez mais pedregosa. Sem enxergar nada, ele tentou se levantar, mas foi impedido.

- Deite-se, você perdeu muito sangue – era a voz de Ivny.

- Não sinto meu braço.

- Você o perdeu.

Na frieza da afirmação, Hildegrim parou de respirar por alguns segundos, preso ao terror de ter perdido um membro importante para seu ofício. Ele se lembrou do quanto esteve condicionado a aceitar aquela vida de viagens perdidas e envergonhou-se ao encarar sua grande falha: como um simples cocheiro iria sobreviver àquilo? Como, em algum momento, ele se achou melhor ou mais sortudo do que todos da sua família? Perder o braço e um olho era castigo merecido para a sua prepotência. Ele se calou e, como era um hábito para Ivny também ficar calada, ambos aceitaram o silêncio.

***

- Ivny! Acho que chegamos aonde você queria! – exclamou Koku, feliz com um possível término de jornada.

Ainda era de dia, por isso a vampira não pôde observar o horizonte ao longe ser marcado por duas estátuas de anjos colossais. A cidade dos anjos de pedra, assim era conhecida Zarast graças aos monumentos que dividiam a ala da plebe e a ala da nobreza em dois grandes pátios de mármore enxaguados por longuíssimas quedas de água que coloriam o céu nublado de sete cores. Uma visão privilegiada, mesmo para quem havia se acostumado com a magnitude de Draganathor.

- Chegaremos lá essa noite – concluiu Golias, o único do grupo que já havia visitado aquelas terras.

“Aensell, estou chegando...” pensou Ivny, esperançosa.

***

“Nenhum viajante pode visitar a ala nobre de Zarast”, disse o soldado vestido de tabardo azul com o símbolo de dragão empalado em prata. A informação pegou todos de surpresa. “Você não sabia disso, Golias?”, perguntou Koku e o meio gigante negou com a cabeça.

“Javert sabia”, pensou Ivny. Quem dera se ela pudesse ter confiado aquele assunto ao halfling, aí então, talvez, ele e sua falácia poderiam garantir passagem ao grupo. “O príncipe está inacessível”, continuou o soldado. Ivny sentiu vontade de usar seu olhar dominante, mas, qualquer soldado, com certeza, reconheceria o feitiço e tudo que a vampira não queria era chamar a atenção desta forma. Tudo que restava era esperar na ala da plebe. Por quanto tempo? Não sabiam.

***

A milícia de Zarast era rotineira. Seus soldados são aparentemente bem treinados. Trajam armaduras de metal, alguns vestem elmos com flâmulas azuladas e longas capas de seda da mesma cor. Sempre portam armas, pois diferente dos escravos draculean, eles não podem contar com o poder arcano no sangue para se defender. Sem magia, os soldados de Zarast são mais vigilantes e, provavelmente muito mais difíceis de lidar.

O Dragão Empalado era a taverna que Ivny decidiu ficar com o restante do grupo. Jogou uma bolsa cheia de peças de ouro para o taverneiro, um homem gordo que não tinha cabelos na cabeça, mas, em compensação, lhe sobrava no bigode grisalho. Ele jogou-lhe as chaves e o grupo por algum tempo permaneceu recluso a olhar pela janela o par de estátuas angelicais que davam acesso a ala nobre.

Golias desapareceu na cidade horas depois que o grupo se estabeleceu naquela taverna. Ele sempre retornava às noites para rever Ivny. Koku por muito tempo ficou amedrontado diante aquela quantidade de gente que o olhava estranhamente, como se quisessem espancá-lo a todo o momento. O menino macaco apreciava ficar na praça da ala da plebe, único lugar onde, pelo menos, meia dúzia de árvores existia. Ivny ficava trancada no quarto, se protegendo da luz do dia, mas, durante a noite, desaparecia durante tanto tempo quanto Golias. Ela e o meio gigante se viam brevemente e apenas se cumprimentavam em silêncio, apenas para tornar ainda existente o laço que existia entre os dois. Hildegrim, sem o braço e sem o olho direito, passou a ter o hábito de embebedar-se. Gastou toda a sua reserva de peças de ouro nisso e, quando acabou, Ivny financiava o resto, sempre lamentando o que havia acontecido com o cocheiro, afinal de contas, havia sido por causa dela.

***

- Chegamos tarde por causa dessa cabeça idiota, Arafat! Ela sempre faz isso! – eram os berros gritados certa noite na taverna do Dragão Empalado – essa criatura nos quer ver fracos e inexperientes. Rouba nosso tempo e você faz o que ele diz, tipo, SEMPRE!

Eram apenas dois indivíduos sentados às sombras da taverna, ambos tão incríveis que faziam dos demais visitantes vislumbre precário. Trajado com a pele de lobo das terras geladas, o primeiro deles e o único que falava, era moreno e esguio. Sentava-se sem modéstia, de pernas abertas, equilibrando o corpo e o copo de cerveja com presteza. Estava à vontade, falando alto, alterando entre largos sorrisos e o ranzinza das reclamações. No final da noite estava demasiado bêbado, tonto a esbarrar nas mesas e balcões. Falava de uma nomeada dama frígida de forma que parecia estar falando de uma amante ingrata. “O sujeito é quente como o inferno”, sussurrou uma servente da taverna. Ivny ouviu.

O outro era um homenzarrão. Quase tão alto quanto Golias, porém muito mais robusto. Músculos cobertos por placas metálicas de uma armadura negra forjada pelo ferreiro mais experiente. A armadura só ajudava a enriquecer sua presença aterrorizante e deixava em segundo plano seu aspecto monstruoso: uma face mutilada por dezenas de cicatrizes profundas tão horríveis que o homem parecia ter tido, um dia, a cabeça partida ou mastigada. Seus cabelos brancos davam a impressão de serem pálidos e pontiagudos como vidro ou caco de gelo. “O sujeito é frio como um diabo”, sussurrou a mesma servente da taverna. Ivny ouviu.

- Você fala alto, visitante! – exclamou um bêbado.

O sujeito com pele de lobo foi sutil, mas Ivny pôde ver a mão direita tocando o cabo de uma das suas espadas.

- A taverna não é obrigada a te ouvir... – o bêbado se aproximava trôpego, derrubando duas canecas e se apoiando a uma das atendentes - ... se você quer ser ouvido – soluço – pegue uma viola ou acordeão e cante! – o bêbado estava perto demais.

Foi como um bote de serpente. Repentino. A espada longa foi sacada e uma volúpia de chamas ardentes enxamearam a taverna. A arma era uma língua flamejante onde o calor de um incêndio irradiava. O visitante agarrou a gola da vestimenta do bêbado e o encarou com olhos de demônio.

- Mas... – o dono da lâmina flamejante ficou atônito - ...o que diabos aconteceu com você, criatura!? – jogou o bêbado contra a parede próxima à lareira da taverna.

O bêbado esbarrou e caiu, deslizando pela parede enquanto as lágrimas saíam enfim de seus olhos até tornar-se um pranto lamurioso. Era Hildegrim. Sem braço. Sem olho.

- Não vou bater num aleijado! Muito menos em alguém que chora como uma menina! – comentou o viajante.

Ivny não conseguiu ouvir aquilo e permanecer encapuzada como estava.

- Ele deseja apenas o seu silêncio. Cale-se – intimidou a vampira, austera.

O sujeito com a pele de lobo sequer se mexeu. Olhou Ivny dos pés à cabeça e concluiu:

- Você é criatura da noite. Posso ver isso, garota. Hoje você não só esbarrou, mas clamou pelo seu azar – ele tirou a segunda lâmina flamejante da bainha. Tão ígnea quanto a primeira – Eu sou Aldebaran e caço mortos-vivos como você. Devo dizer que sou ótimo nisso...

***
Aldebaran

A chama lambeu o ar da taverna como uma tocha afasta a escuridão. Ivny esquivou-se. Aldebaran se movimentou como numa dança. Ivny encontrou seu parceiro na leveza do combate.

A espada rodopiou como um redemoinho encharcado de fogo e a vampira tomou distância. Ela se jogou no chão e numa cambalhota ergueu-se já com um par de lâminas curvas em mãos.

- Você também usa lâminas gêmeas! – surpreendeu-se Aldebaran, com um sorriso torto no rosto – também deve lhes ter dado nomes. Veja... – o guerreiro de fogo encerrou momentaneamente o combate, mas Ivny desconfiou da guarda baixa. Esperou – esta é Volúpia – era a lâmina da sua mão direita – e a esta chamo de Furiosa. São nomes de mulher e também nomes de pecados. Elas devoraram, juntas, a carne de inúmeras criaturas como você. E as tuas? Como se chamam?

Ivny olhou para Aldebaran, confusa. Ficou calada.

- Não as deu nome? – Aldebaran mal podia acreditar – É uma desgraça! – atacou em mais um rodopio. Ivny desviou-se – usa e abusa de suas lâminas e não tem o mínimo de consideração por elas. Um nome as tornará vivas! – mais alguns passos à frente e Aldebaran conseguiu fazer com que Ivny recuasse ao centro da taverna, onde não havia mais inocentes para serem acidentalmente atacados - ... mas eu não podia esperar menos de você. Está morta, logo, suas lâminas são tão cadáveres quanto você.

Os olhos de Ivny se tornaram vermelhos, como quando a besta a influenciara durante a luta contra Sir Antoine.

- São olhos de sangue. Reconheço-os. Você não vai parar agora, não é mesmo, criatura?
O frenesi tomou posse do corpo da vampira. A plateia encolheu-se de medo. Ivny saltou como um leopardo em cima de Aldebaran e o guerreiro com peles de lobo desvencilhou o bote da inimiga jogando-a no chão e cravando Volúpia no assoalho da taverna, ao lado da cabeça faminta. Furiosa jazia riste e aguçada na garganta da vampira caída, lambendo e queimando. Aldebaran sentiu uma ponta igualmente aguçada em suas costas. Era Golias, com seu arco de teixo e flecha pesada.

- Largue – o meio gigante ordenou. Aldebaran o presenteou com mais um de seus sorrisos tortos.

Uma lâmina larga e gelada ameaçou as costas de Golias que, assustado e enregelado, foi surpreendido pelo guerreiro das cicatrizes. Mudo.

- Haaa! – gritou Aldebaran, eufórico.

Ouviu-se o barulho de uma garrafa de vidro ser quebrada pouco antes de Koku lançar-se para o combate, escanchado nos ombros e costas do guerreiro de gelo e ameaçando-o com o gume vítreo, na garganta. Todos, enfim, morreriaam ali.

Arafat

***

- PAREM, AGORA! – uma voz ecoou, vinda do nada – Não consigo me decidir quem é o mais idiota!

A espada larga de fio gelado foi embainhada.

- Arafat! Não! Seu desgraçado! Marionete de morto-vivo! – ralhou Aldebaran. O guerreiro de gelo não se importou com as ofensas.

Arafat desistiu da luta e arrancou da mochila de carga um de seus pertences. Uma cabeça decepada de gnomo. Curiosamente ela parecia viva e... falante:

- Vamos conversar e colocar nossas diferenças em mesa – comentou a cabeça ostentada pelos cabelos brancos, esboçando um leve sorriso de perversidade. Os olhos da coisa eram envoltos de uma circunferência pálido-azulada, como um espectro.

Aldebaran bufou, sem paciência, mas, enfim, largou Ivny. Sem entender o que estava acontecendo, Koku e Golias fizeram o mesmo: encerraram a luta. Por enquanto.


***

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