A carcaça de um wyvern jaz no chão da planície. O cheiro podre de carne mal assada preenche o ar. Dezenas de fagulhas chamuscam a pele da criatura. Restos do corpo de alguém estão em suas presas. As faíscas responsáveis pelo estrondo sônico se espalham pelo ar e as cinzas do incêndio sofrem os efeitos da estática. O homem de olhos azuis está ajoelhado no chão. Sua expressão é de tolerância à dor. Vê-se em sua testa um símbolo que brilha azulado e, aos poucos, torna-se uma cicatriz em carne viva. As veias de seu rosto se expandem como uma centena de raios vermelhos. Ele teve mais sorte que dois de seus companheiros. Estes foram mortos no surpreendido encontro noturno. Ivny conhecia o homem. Não era Aensell.
"Antoine", concluiu ela.
Antoine, escravo draculean |
Ele estava diferente sem o barrete ou a armadura metálica dos escravos draculean. Era filho de Razorax, Ivny sabia, e Razorax era rei dos dragões azuis cujo relâmpago era o símbolo.
Na época que o conheceu, Ivny e Aensell ainda moravam em Draganoth. Ivny ainda respirava, Aensell pouco sabia de magia. Ambos foram adotados por Barghamann e Mabel, o casal dono da taverna do Dragão Uivante. Duas coisas Ivny bem conhecia no velho taverneiro: a primeira é que ele fora um grande guerreiro no passado e que, desde que fundara a taverna, não pretendia mais viver sua vida para a guerra; a segunda era que Barghamann condenava a tirania imposta pela dragocracia, embora vivesse na torre.
Certo dia, as portas da taverna foram escancaradas na base de um forte relâmpago. As noites na Dragão Uivante eram calorosas, por isso, a freguesia era constante. Sir Antoine d'Razorax ainda tinha a luva da sua mão direita envolta pela energia elétrica, quando todos o observavam, amedrontados. "Você não pode invadir meu estabelecimento dessa forma!", ralhou Barghamann. Sir Antoine pareceu não preocupar-se com a ameaça. Assim eram os escravos da dragocracia, e Antoine era um. Marcados pela insígnia dracônica que lhe tingia o rosto com a tatuagem que guardava, além de seu voto de guardião, os poderes da linhagem a quem ele servia. Os servos da dragocracia eram conhecidos e poderosos. Mantinham grande influência em toda torre e, por isso, mostravam-se superiores e pouco diplomáticos.
Ivny lembrava-se pouco daquela noite. Recorda que Sir Antoine, junto a dois outros escravos draculean, invadiram a Dragão Uivante e arrastaram de lá um bêbado. Um velho conhecido de Barghamann. O bêbado, praguejando contra a dragocracia e xingando o que sua consciência ainda permitia, foi executado em praça pública, alvo de uma lâmina elétrica carregada pelos poderes de Antoine. Ivny não chegou a assistir a tragédia. Aensell, sim. Desde aquele dia, o ódio do garoto para com a dragocracia aumentou, igualando-se ao de Barghamann. Ele dedicou-se ainda mais aos estudos dos livros de magia.
Sir Antoine havia provocado a atitude de Aensell. A atitude do irmão de Ivny de abandonar a torre e sua família a fim de tentar a sorte num discurso pouco ensaiado que seria compartilhado com alguém em Zarast. Sem a capacidade natural de se acalmar, o sangue de Ivny ferveu. Ela tinha raiva daquele futuro e queria descontar em alguém. Sir Antoine seria seu alvo. Segurou firme as lâminas curvas em suas mãos sombrias e instigada por um frenesi selvagem, aproximou-se com sons abafados da sua vítima até notar a presença de mais alguém.
- Como eu disse, meu caro Sir: "são goblins, mas são goblins corajosos demais para estarem nas terras da dragocracia". Eu sabia que eles tinham mais do que espadas enferrujadas e más atitudes.
A voz era conhecida.
Surgia, das costas do wyvern, pisoteando as chamas e tateando o cadáver, um halfling de grandes olhos verdes e um sorriso sempre presente no rosto. Ele abaixou-se, recolheu duas ou três escamas do wyvern e as guardou.
- Você deveria confiar mais nos dizeres de Javert - comentou o halfling, falando de si mesmo em terceira pessoa.
Antoine nada dizia.
- Vais ficar mergulhado em drama por muito tempo ou podemos retornar para a torre amanhã cedo?
- NUNCA! - gritou Antoine, possesso.
- Hum... - Javert impressionou-se com a reação do escravo draculean - o que sugeres, então?
- A missão não acabou. Não retornarei para o meu mestre de mãos vazias. Tenho mais do que o necessário para derrotar essas criaturas, em meu sangue.
- Confias muito em seus poderes, mas tens pouca sorte. Já Javert limpa as mãos, pois sabe que nem toda sorte do mundo o ajudará nessa jornada.
- Disse que me seguiria até o fim da missão! - Antoine exigiu.
- A missão envolvia aliados. Agora não se trata de uma missão. Para Javert, isso está mais para suicídio.
Ivny conhecia o halfling. O personagem bobo que divertia as noites na Dragão Uivante. Grande amigo de Barghamann. Ardiloso charlatão que sabia das coisas. Javert era conhecido na torre. Um bardo que sabia mais do que simples histórias aleatórias e canções de momento. Contava a ela e Aensell as histórias da criação de Draganathor e sempre fazia soar como um mito ou nada mais que história fantástica. Aensell ouvia tudo boquiaberto.
- É um covarde e sempre foi - ralhou Sir Antoine.
- Julga-me quanto quiseres, contanto que sempre me veja vivo - respondeu Javert com um sorriso irônico no rosto.
A dupla foi surpreendida por um barulho sutil. Ivny abaixou-se, abrigando-se na escuridão. Vacilou. Não podia ser notada agora. E não foi. Antoine e Javert haviam ouvido outra coisa.
Javert saiu de cima do wyvern e Antoine se ergueu. O escravo levantou uma das asas do wyvern e descobriu que havia um robgoblin embaixo do corpanzil da criatura. Este havia se ferido gravemente, esmagado na queda. Sir Antoine, com facilidade, arrancou a asa do bicho e teve com o goblinóide o mínimo de zelo possível.
- Não deves matá-lo Sir. Não agora. Um robgoblin aleijado e gravemente ferido é vitrola de todas as músicas. Deves conseguir informações.
- Muito bem... - Antoine ergueu o corpo esmagado do robgoblin que, mesmo débil, ganiu como um cão de rua açoitado - Conte-me onde fica o covil de vocês! - exigiu o escravo draculean.
O robgoblin não cooperou até notar as faíscas dançantes rodopiarem o punho de Antoine:
- Nos escondemos na Pouca-floresta. Nas margens do monte feito de pedra - respondeu o robgoblin, regurgitando sangue da cor de vinho.
- O que vocês fazem lá?
- Sacrilégios aos seus senhores - riu desdenhosamente o goblinóide quase sem dentes - Temos Wyverns. Wyverns das planícies de Asaron.
- Isso é mal - intrometeu-se Javert - os wyverns de Asaron vieram da antiga ilha de Maldûn. O veneno em seus ferrões é mais potente que o dos comuns.
- Em minhas veias corre o sangue de rei dragão- avisou Sir Antoine, apertando o pescoço do robgoblin com força descomunal - acha que o veneno de um dragão falso irá me impedir?
O robgoblin gorgolejou, revirando os olhos até escutar o som do estalo de seu pescoço.
- Mataste o goblinóide cedo demais...
- Vítima frágil. Outras serão. Devo continuar!
- Deves estar louco! Por maior que sejam as peripécias que Javert tenha feito em sua vida, ele não se intimida ao falar que essa missão é imprópria. Volte à torre, informe aos outros. Retorne com eles.
- Já disse: não retornarei de mãos abanando para o meu mestre. Escravos draculean não fracassam.
- Esplêndido! Chorarei em seu funeral e, tenhas certeza, contarei suas últimas palavras dirigidas à mim, na cerimônia - Javert alcança sua mochila de carga e, sem aparências de negociação, veste-a e põe-se a prosseguir viagem em direção à torre - Dê-me licença que pretendo descansar meus pés numa taverna na torre, logo mais cedo...
- Criatura infiel! Porque veio conosco, então? Poderíamos ter contratado outro guia.
- Ah! Bem que poderiam. Nenhum melhor do que eu, essa é a verdade.
- Não receberá pelo serviço!
- Javert não está aqui pelo dinheiro, mas devido ao pedido de um amigo. Prometi que faria o que pudesse, desde que não arriscasse minha própria vida. Bem, essa é uma situação aparente. Gosto demais do garoto, mas gosto mais de mim mesmo.
- Você fala de Aensell? - a voz era de Ivny. Ela resolveu mostrar-se para o espanto da dupla. A vampira ouviu o sussurro quase melancólico de Javert pronunciando seu nome, mas ignorou - Procuro meu irmão. O que ele tem a ver com a jornada de vocês? Falem-me!
Silêncio de espanto.
- Falem-me, já! É noite... já devem saber que ambos não têm chance contra mim depois da luta contra essa coisa.
- Experimente confiar-se tanto assim, garota - esbravejou Sir Antoine, envolto de descargas elétricas - e queime até a morte!
Javert ergueu a mão num sinal de paz.
- Agora temos interesses em comum - Javert voltou a sorrir, tinha tido a melhor das ideias.
Ivny lembrava-se pouco daquela noite. Recorda que Sir Antoine, junto a dois outros escravos draculean, invadiram a Dragão Uivante e arrastaram de lá um bêbado. Um velho conhecido de Barghamann. O bêbado, praguejando contra a dragocracia e xingando o que sua consciência ainda permitia, foi executado em praça pública, alvo de uma lâmina elétrica carregada pelos poderes de Antoine. Ivny não chegou a assistir a tragédia. Aensell, sim. Desde aquele dia, o ódio do garoto para com a dragocracia aumentou, igualando-se ao de Barghamann. Ele dedicou-se ainda mais aos estudos dos livros de magia.
Sir Antoine havia provocado a atitude de Aensell. A atitude do irmão de Ivny de abandonar a torre e sua família a fim de tentar a sorte num discurso pouco ensaiado que seria compartilhado com alguém em Zarast. Sem a capacidade natural de se acalmar, o sangue de Ivny ferveu. Ela tinha raiva daquele futuro e queria descontar em alguém. Sir Antoine seria seu alvo. Segurou firme as lâminas curvas em suas mãos sombrias e instigada por um frenesi selvagem, aproximou-se com sons abafados da sua vítima até notar a presença de mais alguém.
- Como eu disse, meu caro Sir: "são goblins, mas são goblins corajosos demais para estarem nas terras da dragocracia". Eu sabia que eles tinham mais do que espadas enferrujadas e más atitudes.
A voz era conhecida.
Surgia, das costas do wyvern, pisoteando as chamas e tateando o cadáver, um halfling de grandes olhos verdes e um sorriso sempre presente no rosto. Ele abaixou-se, recolheu duas ou três escamas do wyvern e as guardou.
- Você deveria confiar mais nos dizeres de Javert - comentou o halfling, falando de si mesmo em terceira pessoa.
Javert |
- Vais ficar mergulhado em drama por muito tempo ou podemos retornar para a torre amanhã cedo?
- NUNCA! - gritou Antoine, possesso.
- Hum... - Javert impressionou-se com a reação do escravo draculean - o que sugeres, então?
- A missão não acabou. Não retornarei para o meu mestre de mãos vazias. Tenho mais do que o necessário para derrotar essas criaturas, em meu sangue.
- Confias muito em seus poderes, mas tens pouca sorte. Já Javert limpa as mãos, pois sabe que nem toda sorte do mundo o ajudará nessa jornada.
- Disse que me seguiria até o fim da missão! - Antoine exigiu.
- A missão envolvia aliados. Agora não se trata de uma missão. Para Javert, isso está mais para suicídio.
Ivny conhecia o halfling. O personagem bobo que divertia as noites na Dragão Uivante. Grande amigo de Barghamann. Ardiloso charlatão que sabia das coisas. Javert era conhecido na torre. Um bardo que sabia mais do que simples histórias aleatórias e canções de momento. Contava a ela e Aensell as histórias da criação de Draganathor e sempre fazia soar como um mito ou nada mais que história fantástica. Aensell ouvia tudo boquiaberto.
- É um covarde e sempre foi - ralhou Sir Antoine.
- Julga-me quanto quiseres, contanto que sempre me veja vivo - respondeu Javert com um sorriso irônico no rosto.
A dupla foi surpreendida por um barulho sutil. Ivny abaixou-se, abrigando-se na escuridão. Vacilou. Não podia ser notada agora. E não foi. Antoine e Javert haviam ouvido outra coisa.
Javert saiu de cima do wyvern e Antoine se ergueu. O escravo levantou uma das asas do wyvern e descobriu que havia um robgoblin embaixo do corpanzil da criatura. Este havia se ferido gravemente, esmagado na queda. Sir Antoine, com facilidade, arrancou a asa do bicho e teve com o goblinóide o mínimo de zelo possível.
- Não deves matá-lo Sir. Não agora. Um robgoblin aleijado e gravemente ferido é vitrola de todas as músicas. Deves conseguir informações.
- Muito bem... - Antoine ergueu o corpo esmagado do robgoblin que, mesmo débil, ganiu como um cão de rua açoitado - Conte-me onde fica o covil de vocês! - exigiu o escravo draculean.
O robgoblin não cooperou até notar as faíscas dançantes rodopiarem o punho de Antoine:
- Nos escondemos na Pouca-floresta. Nas margens do monte feito de pedra - respondeu o robgoblin, regurgitando sangue da cor de vinho.
- O que vocês fazem lá?
- Sacrilégios aos seus senhores - riu desdenhosamente o goblinóide quase sem dentes - Temos Wyverns. Wyverns das planícies de Asaron.
- Isso é mal - intrometeu-se Javert - os wyverns de Asaron vieram da antiga ilha de Maldûn. O veneno em seus ferrões é mais potente que o dos comuns.
- Em minhas veias corre o sangue de rei dragão- avisou Sir Antoine, apertando o pescoço do robgoblin com força descomunal - acha que o veneno de um dragão falso irá me impedir?
O robgoblin gorgolejou, revirando os olhos até escutar o som do estalo de seu pescoço.
- Mataste o goblinóide cedo demais...
- Vítima frágil. Outras serão. Devo continuar!
- Deves estar louco! Por maior que sejam as peripécias que Javert tenha feito em sua vida, ele não se intimida ao falar que essa missão é imprópria. Volte à torre, informe aos outros. Retorne com eles.
- Já disse: não retornarei de mãos abanando para o meu mestre. Escravos draculean não fracassam.
- Esplêndido! Chorarei em seu funeral e, tenhas certeza, contarei suas últimas palavras dirigidas à mim, na cerimônia - Javert alcança sua mochila de carga e, sem aparências de negociação, veste-a e põe-se a prosseguir viagem em direção à torre - Dê-me licença que pretendo descansar meus pés numa taverna na torre, logo mais cedo...
- Criatura infiel! Porque veio conosco, então? Poderíamos ter contratado outro guia.
- Ah! Bem que poderiam. Nenhum melhor do que eu, essa é a verdade.
- Não receberá pelo serviço!
- Javert não está aqui pelo dinheiro, mas devido ao pedido de um amigo. Prometi que faria o que pudesse, desde que não arriscasse minha própria vida. Bem, essa é uma situação aparente. Gosto demais do garoto, mas gosto mais de mim mesmo.
- Você fala de Aensell? - a voz era de Ivny. Ela resolveu mostrar-se para o espanto da dupla. A vampira ouviu o sussurro quase melancólico de Javert pronunciando seu nome, mas ignorou - Procuro meu irmão. O que ele tem a ver com a jornada de vocês? Falem-me!
Silêncio de espanto.
- Falem-me, já! É noite... já devem saber que ambos não têm chance contra mim depois da luta contra essa coisa.
- Experimente confiar-se tanto assim, garota - esbravejou Sir Antoine, envolto de descargas elétricas - e queime até a morte!
Javert ergueu a mão num sinal de paz.
- Agora temos interesses em comum - Javert voltou a sorrir, tinha tido a melhor das ideias.
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