Nem mesmo quando os primeiros
humanos pisaram em Zarast, encontraram a cidade em tamanha ruína como a daquela
noite em que Ivny fez sua última caça. Séculos atrás, quando a linhagem dos
conquistadores humanos foi humilhada e exilada da própria terra natal pelos
dragões, o pai de todos encontrou refúgio nas ruínas de uma antiga cidade
devorada pelo tempo. Esta era Zarast.
Sabe-se lá o quê guardava as
ruínas onde os anjos de pedra foram erguidos. Os primeiros estudiosos teorizaram
ser uma extinta civilização anã que, sendo incapazes de se refugiar no vulcão
de Hefasto, viajaram pelas terras de Asaron e fundaram sua capital. Sabe-se,
entretanto, que muito da arquitetura e simbologia encontradas nos confins da
ruína, não se assemelha com a dos anões e nem mesmo com a de qualquer outra
raça do mundo. Encontraram aquelas ruínas preparadas, como se estivessem
esperando pela linhagem dos conquistadores humanos desde sempre. Os humanos imaginaram
ser um presente dos deuses e, assim como os dragões criaram seu império sobre o
cemitério de uma antiga civilização, os humanos criaram seu reinado em cima de
outra.
Nunca se soube como aqueles que
antes habitavam Zarast se extinguiram. Alguns teóricos falam sobre inscrições
que provam que algo monstruoso e enorme está trancafiado no estômago da capital
e que a coisa foi a responsável por eliminar os antigos habitantes a ponto de
não sobrar resquícios de suas existências, porém, a maioria crê na teoria da
escassez de alimentos e infertilidade da terra na época, pois este foi o
primeiro desafio que a linhagem dos conquistadores humanos teve de enfrentar em
seu novo lar. Tentaram de tudo, desde técnicas mais avançadas na agricultura
até magias dos servos divinos da floresta. Nada deu certo até que o pai de
todos clamou pelos mortos da última grande guerra, suplicando que seus sacrifícios
na luta contra a dragocracia valessem a pena e que a vingança da raça pudesse
ser concretizada. Os irmãos mortos na guerra choraram durante três anos e sete
dias. Choraram água doce vinda dos céus como uma chuva e encheram reservatórios
de água, encheram poços, lavaram o chão, criaram-se os rios e lagos e, junto a
tudo isso, a terra tornou-se rica e fértil. O novo império dos humanos.
Vingança foi, então, a palavra
mais proclamada no reino de Asaron durante todo o novo reinado dos
conquistadores humanos. A terra regada pelas lágrimas de humilhação e raiva fez
brotar no coração de cada humano que nascesse nas terras dos anjos de pedra o
sentimento de vingança e ninguém aderiu mais a essa ideologia quanto o próprio
príncipe do reino. Aisenn, o obsessivo. Triste, nostálgico e focado. Prometeu
arruinar a dragocracia ainda durante seu reinado, prometendo dar aos seus
herdeiros as antigas terras do império do pai de todos novamente.
Foi o príncipe quem fez o acordo
com Mordae e, pela primeira vez, usou o poder imensurável da essência arcana,
queimando, para sempre, a carne e as escamas de Garyx, o rei dos dragões
vermelhos com uma magia acima da compreensão humana. Foi por causa das atitudes
do príncipe que os elfos se reuniram na floresta mística e decidiram recrutar
membros da própria raça para saírem do véu de proteção de suas terras para serem
vigílias do mundo. Foi, também o príncipe, aquele quem Ivny viu na palma da mão
de um dos colossais anjos de pedra, enterrando as lâminas gêmeas no estômago de
um mago, naquela noite em que o céu ameaçava chorar mais uma vez por muito
tempo.
Os olhos da vampira se adaptaram
à noite e assistiram à queda da vítima, derramando-se pelo céu escuro, como as
águas eternas das cachoeiras de Zarast sempre faziam. Os mesmos olhos
reconheceram a figura principesca portadora das lâminas gêmeas, mesmo nunca
tendo o visto. Reconheceram ainda mais duas figuras. Uma serpente lustrosa, com
as escamas adaptadas à escuridão da noite em carvão. A criatura tinha o torso e
a cabeça de uma linda mulher, dotada de volúpia encantadora. A cauda
enroscava-se por entre os dedos de mármore da estátua de anjo de pedra e o
rosto fitava outra vítima acuada sob a presença dos poderosos inimigos.
Aensell.
“Aensell”, ela gritou e seu
coração falho pulsou apodrecido na caixa torácica. O sangue subiu e tingiu os
olhos da vampira de um vermelho demoníaco. Ela correu ao encontro do irmão.
***
Haviam seis patamares entre as
longas escadarias que levavam ao topo do anjo de pedra, mas Ivny não chegou a ultrapassar
o segundo. Desafiada pelo estado de frenesi e a furtividade de uma víbora, a
vampira teve a cabeça decepada por uma lâmina fatal.
***
O corpo de Ivny não foi reduzido a
cinzas, como o de um vampiro deve ser. Ao invés disso, sangrou. Sangrou um
lago, como aconteceria com o cadáver de qualquer humano que tivesse perdido a
cabeça.
Mesmo depois de um minuto, seu
corpo ainda sofria pelos espasmos enquanto os vulcões de sangue circulavam por
debaixo de sua pele. Os espasmos começaram movendo um ombro, depois, como se
violentado por uma carga de eletricidade, o braço direito ergueu-se e a cena
que se assemelhava a um zumbi saindo de sua tumba terminou nas garras
vampirescas alcançando a cabeça de olhos cinzentos, caída a meia distância.
As unhas cravaram-se no topo do
crânio ensanguentado enquanto o cadáver de Ivny se erguia, vencendo a morte.
Moveu-se como uma marionete e enfiou a cabeça no ferimento do pescoço até que o
corte que a havia arrancado torna-se uma fina linha de sangue tímido. Os olhos
perderam-se no teor escuro novamente. Ivny estava consciente e, à sua frente, a
sedutora mulher com corpo de serpente observava a lamúria morta-viva se
concretizar.
- Interessante. Você é um deles e
eu não pude reconhecer – comentou a serpente de voz irresistível.
Ivny tentou mover o corpo, mas
não conseguiu. Estava presa aos encantos da voz daquela que havia arrancado sua
cabeça com uma falcione grande, emoldurada de inscrições dracônicas que se
apresentava, agora, empunhada pelas quatro mãos da criatura. Um demônio.
A vampira tinha medo. A serpente
sorria.
- Oh, você também não sabia, não
é? – a serpente encheu sua voz de ingenuidade e ironia – seu coração foi
roubado, querida e ele é lambido continuamente pelas bruxas. É algo terrível de
se descobrir, não é?
Ivny sofria. Queria morrer
definitivamente. Esquecer da própria existência.
- Você tem potencial, garota.
Assim como seu irmão – a serpente se arrastou até perto da sua marionete – por acaso,
algum dia, você se perguntou de onde realmente veio?
Ivny tentava enxergar no
horizonte escuro a presença de seu irmão. Quem sabe o veria uma última vez
antes do eterno fim.
- Você não sabe também, não é? –
a serpente ergueu um braço e tateou o queixo de Ivny com natural sedução – Você
pensa que aqueles que lhe pariram foram heróis – uma revelação acompanhada por
um riso de deboche – você é forte e perfeita para experimentos.
Ivny escutou o estômago da
serpente revirar, chutado por uma inexistente cria que agora nadava pela região
dos peitos fartos do demônio, como se quisesse escapar pela boca de sua prisão.
A garganta da serpente avolumou-se, arranhada pela coisa que estava decidida a
sair e, quando finalmente alcançou o céu da boca, um brilho esverdeado tingiu a
escura garganta.
Mantinha-se parada, agora, uma
gema bruta e espinhosa na ponta da língua do demônio. Brilhava cada vez menos
intensamente. A serpente agarrou a nuca de Ivny e forçou sua cabeça até os
lábios femininos se encontrarem e o ornamento, enfim, fosse vomitado para a
garganta da vampira.
- Faça o que você foi criada para
fazer, mortalha – a serpente abandonou Ivny que tossia violentamente tentando
regurgitar a gema verde de espinhos, ineficazmente.
O corpo da vampira ficou livre
das amarras do encantamento e caiu de joelhos, com as mãos agarrando o próprio
pescoço enquanto as agulhas arranhavam a garganta.
“Aensell”, foi a única palavra
que ressoou na sua consciência. “Aensell”, o eco tomou forma quando finalmente
ela pôde gritar o nome do irmão e os anjos de pedra eram vestidos pelas túnicas
de carne.
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