sexta-feira, 25 de agosto de 2017

Aventuras anônimas VIII

Nem mesmo quando os primeiros humanos pisaram em Zarast, encontraram a cidade em tamanha ruína como a daquela noite em que Ivny fez sua última caça. Séculos atrás, quando a linhagem dos conquistadores humanos foi humilhada e exilada da própria terra natal pelos dragões, o pai de todos encontrou refúgio nas ruínas de uma antiga cidade devorada pelo tempo. Esta era Zarast.

Sabe-se lá o quê guardava as ruínas onde os anjos de pedra foram erguidos. Os primeiros estudiosos teorizaram ser uma extinta civilização anã que, sendo incapazes de se refugiar no vulcão de Hefasto, viajaram pelas terras de Asaron e fundaram sua capital. Sabe-se, entretanto, que muito da arquitetura e simbologia encontradas nos confins da ruína, não se assemelha com a dos anões e nem mesmo com a de qualquer outra raça do mundo. Encontraram aquelas ruínas preparadas, como se estivessem esperando pela linhagem dos conquistadores humanos desde sempre. Os humanos imaginaram ser um presente dos deuses e, assim como os dragões criaram seu império sobre o cemitério de uma antiga civilização, os humanos criaram seu reinado em cima de outra.

Nunca se soube como aqueles que antes habitavam Zarast se extinguiram. Alguns teóricos falam sobre inscrições que provam que algo monstruoso e enorme está trancafiado no estômago da capital e que a coisa foi a responsável por eliminar os antigos habitantes a ponto de não sobrar resquícios de suas existências, porém, a maioria crê na teoria da escassez de alimentos e infertilidade da terra na época, pois este foi o primeiro desafio que a linhagem dos conquistadores humanos teve de enfrentar em seu novo lar. Tentaram de tudo, desde técnicas mais avançadas na agricultura até magias dos servos divinos da floresta. Nada deu certo até que o pai de todos clamou pelos mortos da última grande guerra, suplicando que seus sacrifícios na luta contra a dragocracia valessem a pena e que a vingança da raça pudesse ser concretizada. Os irmãos mortos na guerra choraram durante três anos e sete dias. Choraram água doce vinda dos céus como uma chuva e encheram reservatórios de água, encheram poços, lavaram o chão, criaram-se os rios e lagos e, junto a tudo isso, a terra tornou-se rica e fértil. O novo império dos humanos.

Vingança foi, então, a palavra mais proclamada no reino de Asaron durante todo o novo reinado dos conquistadores humanos. A terra regada pelas lágrimas de humilhação e raiva fez brotar no coração de cada humano que nascesse nas terras dos anjos de pedra o sentimento de vingança e ninguém aderiu mais a essa ideologia quanto o próprio príncipe do reino. Aisenn, o obsessivo. Triste, nostálgico e focado. Prometeu arruinar a dragocracia ainda durante seu reinado, prometendo dar aos seus herdeiros as antigas terras do império do pai de todos novamente.

Foi o príncipe quem fez o acordo com Mordae e, pela primeira vez, usou o poder imensurável da essência arcana, queimando, para sempre, a carne e as escamas de Garyx, o rei dos dragões vermelhos com uma magia acima da compreensão humana. Foi por causa das atitudes do príncipe que os elfos se reuniram na floresta mística e decidiram recrutar membros da própria raça para saírem do véu de proteção de suas terras para serem vigílias do mundo. Foi, também o príncipe, aquele quem Ivny viu na palma da mão de um dos colossais anjos de pedra, enterrando as lâminas gêmeas no estômago de um mago, naquela noite em que o céu ameaçava chorar mais uma vez por muito tempo.
Os olhos da vampira se adaptaram à noite e assistiram à queda da vítima, derramando-se pelo céu escuro, como as águas eternas das cachoeiras de Zarast sempre faziam. Os mesmos olhos reconheceram a figura principesca portadora das lâminas gêmeas, mesmo nunca tendo o visto. Reconheceram ainda mais duas figuras. Uma serpente lustrosa, com as escamas adaptadas à escuridão da noite em carvão. A criatura tinha o torso e a cabeça de uma linda mulher, dotada de volúpia encantadora. A cauda enroscava-se por entre os dedos de mármore da estátua de anjo de pedra e o rosto fitava outra vítima acuada sob a presença dos poderosos inimigos. Aensell.

“Aensell”, ela gritou e seu coração falho pulsou apodrecido na caixa torácica. O sangue subiu e tingiu os olhos da vampira de um vermelho demoníaco. Ela correu ao encontro do irmão.

***

Haviam seis patamares entre as longas escadarias que levavam ao topo do anjo de pedra, mas Ivny não chegou a ultrapassar o segundo. Desafiada pelo estado de frenesi e a furtividade de uma víbora, a vampira teve a cabeça decepada por uma lâmina fatal.

***

O corpo de Ivny não foi reduzido a cinzas, como o de um vampiro deve ser. Ao invés disso, sangrou. Sangrou um lago, como aconteceria com o cadáver de qualquer humano que tivesse perdido a cabeça.
Mesmo depois de um minuto, seu corpo ainda sofria pelos espasmos enquanto os vulcões de sangue circulavam por debaixo de sua pele. Os espasmos começaram movendo um ombro, depois, como se violentado por uma carga de eletricidade, o braço direito ergueu-se e a cena que se assemelhava a um zumbi saindo de sua tumba terminou nas garras vampirescas alcançando a cabeça de olhos cinzentos, caída a meia distância.

As unhas cravaram-se no topo do crânio ensanguentado enquanto o cadáver de Ivny se erguia, vencendo a morte. Moveu-se como uma marionete e enfiou a cabeça no ferimento do pescoço até que o corte que a havia arrancado torna-se uma fina linha de sangue tímido. Os olhos perderam-se no teor escuro novamente. Ivny estava consciente e, à sua frente, a sedutora mulher com corpo de serpente observava a lamúria morta-viva se concretizar.

- Interessante. Você é um deles e eu não pude reconhecer – comentou a serpente de voz irresistível.
Ivny tentou mover o corpo, mas não conseguiu. Estava presa aos encantos da voz daquela que havia arrancado sua cabeça com uma falcione grande, emoldurada de inscrições dracônicas que se apresentava, agora, empunhada pelas quatro mãos da criatura. Um demônio.


A vampira tinha medo. A serpente sorria.

- Oh, você também não sabia, não é? – a serpente encheu sua voz de ingenuidade e ironia – seu coração foi roubado, querida e ele é lambido continuamente pelas bruxas. É algo terrível de se descobrir, não é?

Ivny sofria. Queria morrer definitivamente. Esquecer da própria existência.

- Você tem potencial, garota. Assim como seu irmão – a serpente se arrastou até perto da sua marionete – por acaso, algum dia, você se perguntou de onde realmente veio?

Ivny tentava enxergar no horizonte escuro a presença de seu irmão. Quem sabe o veria uma última vez antes do eterno fim.

- Você não sabe também, não é? – a serpente ergueu um braço e tateou o queixo de Ivny com natural sedução – Você pensa que aqueles que lhe pariram foram heróis – uma revelação acompanhada por um riso de deboche – você é forte e perfeita para experimentos.

Ivny escutou o estômago da serpente revirar, chutado por uma inexistente cria que agora nadava pela região dos peitos fartos do demônio, como se quisesse escapar pela boca de sua prisão. A garganta da serpente avolumou-se, arranhada pela coisa que estava decidida a sair e, quando finalmente alcançou o céu da boca, um brilho esverdeado tingiu a escura garganta.

Mantinha-se parada, agora, uma gema bruta e espinhosa na ponta da língua do demônio. Brilhava cada vez menos intensamente. A serpente agarrou a nuca de Ivny e forçou sua cabeça até os lábios femininos se encontrarem e o ornamento, enfim, fosse vomitado para a garganta da vampira.

- Faça o que você foi criada para fazer, mortalha – a serpente abandonou Ivny que tossia violentamente tentando regurgitar a gema verde de espinhos, ineficazmente.

O corpo da vampira ficou livre das amarras do encantamento e caiu de joelhos, com as mãos agarrando o próprio pescoço enquanto as agulhas arranhavam a garganta.

“Aensell”, foi a única palavra que ressoou na sua consciência. “Aensell”, o eco tomou forma quando finalmente ela pôde gritar o nome do irmão e os anjos de pedra eram vestidos pelas túnicas de carne.


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