A
aliança veio. A cidade de carne abandonou a capital dos anjos de pedra,
deixando para trás somente os destroços de uma nova ruína, por cima de uma
antiga.
Vieram
primeiros os mercenários, pagos para averiguar os recorrentes perigos deixados
pela hecatombe. Depois vieram os soldados e, enfim, os trabalhadores braçais.
Eles ergueram as colunas e as paredes de mármore e granito, arrastaram as
pedras que formavam o antigo pátio, usaram foice para rasgar a vestimenta de
carne que cobria tudo e os cadáveres mutilados que eram tão comuns quanto os
destroços.
Encontraram,
então, Aldebaran e Arafat. Vivos. Eles foram empilhados juntos com tantos
corpos e mal conseguiram tomar fôlego quando enfim se acordaram e sentiram o
peso de dezenas de corpos sobre si.
-
Arafat! Você está vivo?
Aldebaran
foi o primeiro a erguer-se. Ele avistou o braço emoldurado pelas carcomidas
placas de adamante pertencentes ao aliado. Segurou-a firme e tirou um Arafat
atônito, caolho e frio da sepultura.
- E agora, amigo?
Perguntou
Aldebaran recostando-se na montanha de cadáveres.
Arafat
ergueu o braço mordiscado e apontou para o horizonte longínquo.
-
Foi para ali que a cidade de carne marchou.
Arafat
assentiu.
-
Entendi.
Ficaram
parados por tempo incontável, até que o guerreiro de cicatrizes pôs-se a
desmanchar a pilha de corpos.
-
Você não vai desistir daquela cabeça, não é?
Arafat
sequer respondeu. Continuou o árduo ofício. Um minuto depois Aldebaran o
ajudou.
A
dupla viajou para Draganathor, junto com a cabeça de Hidro, contornando a
cidade de carne e se instalando na Torre da Dragocracia junto a outros heróis,
esperando o maior dos confrontos.
***
Algum
tempo após a catástrofe, um viajante vestido com uma velha túnica chegou à
Cidadela de Ferro.
-
Não se pode apenas visitar o barão. Não é assim que funciona, viajante –
respondeu o taverneiro da estalagem na qual ele havia se instalado – sinto
muito pelo seu braço, mas se nosso regente ajudasse cada visitante aleijado,
teríamos um reinado cheio de implantes mecânicos.
Aquilo
não foi o bastante para convencer o viajante. Ele comeu como se fosse a última
alimentação. Tentou dormir, mas cedeu à insônia. A luz amarelada do luar
invadia o quarto da estalagem, facilitado pela janela escancarada.
Hildegrim
estava diferente. Mantinha o braço esquerdo amputado enquanto o lado direito de
seu corpo estava em carne viva, incluindo o rosto, onde uma órbita necromântica
inquietava-se em sua face. Toda sua pele ardia. Ele havia sido, mesmo durante
poucos segundos, parte daquela mortalha. O cocheiro, agora incapaz de exercer
sua profissão, passou aquela noite pensando se a sua vida não pertencia àquela
cidade feita de carne. À Ivny.
Mal
amanheceu e suas últimas moedas foram jogadas sobre o balcão da taverna.
-
Ele vai até o barão – comentou um dos hospedados ao vê-lo saindo da estalagem –
pobre pessoa. Não tem mais ao quê se segurar à vida.
Eram
longas e amplas as escadarias de metal enferrujado que os levava aos portões
mecânicos. Mesmo com apenas um dos ouvidos funcionando em bom estado, Hildegrim
pôde ouvir o eterno tique-taque de engrenagens e polias que formavam a
estrutura da cidadela. O ar pesado era amarronzado, uma imensa engrenagem
girava na velocidade de um ponteiro longo de relógio fazendo elevar uma
quantidade considerável de jaulas imersas no vapor de fumaça cinzenta. Aquele
lugar, de alguma forma, estava vivo, funcionando, e sabia que ele estava ali.
Era
isso que Hildegrim queria. Chegou a um enorme portão incrustado de peças
mecânicas móveis e livrou-se da túnica, mostrando-se como o ser monstruoso que
havia se tornado. Não muito diferente de uma cadavérica criatura da cidade de
carne.
Os
portões se abriram e Hildegrim nunca mais foi visto.
Ele,
talvez, tenha sido o primeiro ser vivo ainda formado de carne que descobriu que
o barão da máscara de ferro queria, contraditoriamente às opiniões do
informante da estalagem, criar um reinado repleto de implantes mecânicos.
***
Somente
alguém com força descomunal poderia remover a imensa parede que havia desabado
sobre Koku durante a luta na cidade dos anjos de pedra. O pequeno garoto macaco
manteve-se desacordado durante muito tempo e, quando enfim acordou, deparou-se
com sua sina: morrer esmagado, sozinho e esquecido.
Até
que aquele excêntrico viajante o encontrou.
-
Mas o quê? – percebeu o viajante com cara de símio – tem alguém vivo aí?
Koku
não respondeu. Não tinha forças para elevar a voz.
O
viajante desavisado esticou o longo braço, alcançou o garoto macaco e o tirou,
num único puxão, da sina mortal.
-
Tá vivo, garoto? - pôs-se o salvador a
cutuca-lo com curiosidade.
Assim
como Koku, o viajante era um símio. Se avolumava nos cotovelos, joelhos e
pescoço, a pelagem típica dos macacos. O garoto nem sabia que existia seres
como ele. O homem macaco soube que o garoto era forte e que iria sobreviver.
-
É o seguinte, nanico: eu libertei você. Agora você deve me seguir até que eu te
exija um serviço. Se for bem sucedido nisso, você estará livre para correr o
mundo como bem quer. São minhas regras, entendeu?
Koku
assentiu com um tímido e silencioso menear de cabeça.
-
Ótimo! – o homem macaco o ergueu do chão e colocou na carruagem que Koku logo
reconheceria com o antigo veículo de Hildegrim – mas, primeiro, darei um jeito
nesses seus hematomas.
O
homem macaco nunca se apresentou. Nunca revelou o próprio nome à Koku. O garoto
macaco logo abandonou, também, o próprio nome e apenas se referenciava ao seu
salvador como Mestre Símio.
***
Ninguém
soube o que aconteceu com Golias, o meio gigante, embora mais tarde ele tenha
aparecido, quase sorrateiramente, na estalagem do Dragão Uivante, onde se
juntou aos heróis na luta contra a verdadeira cidade de carne.
O
meio tempo entre esses episódios da jornada do arqueiro... é desconhecido.
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