Em
instantes, os filetes metálicos flutuavam e se multiplicavam criando um
envoltório mortal ao redor do mago da guerra. Acompanhado pelo restante do
grupo, Varuz avançou e seu casulo de lâminas despedaçou as folhas-guilhotina
afastando-as quase inofensivamente.
-
Pare aqui. – retrucou Khali, o elfo indígena da floresta dos mil sussurros –
pois se meu treinamento não me deixa enganar, há uma trilha por essas
redondezas.
-
Não confio nos seus rastreios, erê. – replicou Jack, protegido por seu manto
laminado.
-
Há outro rastreador no grupo, se você acha que não estou sendo obstinado o
suficiente, Jack. – explicou Khali enquanto abaixava-se e tateava o que poderia
ser o vestígio de uma trilha. Aprendera a não dar tanta atenção aos disparates
do halfling.
-
Confio em Freya menos ainda! – indagou ignorando a presença da bárbara ao redor
– continue com seu trabalho de cachorro, então.
Freya firmou as mãos no machado, mas
não tinha a verdadeira intenção de usá-lo contra o halfling.
-
Que mais informações você poderia nos dar, Khali? – apresentou-se Aramyn com
olhares tensos direcionados ao galhos repletos de folhas cortantes.
-
Nada demais. Estamos procurando por um druida. Provavelmente ele sabe como não
deixar rastros. Meu treinamento é ineficaz, se isso for verdade.
-
Não somos inimigos. Temos que encontrar um jeito de trazê-lo até aqui. –
adicionou Freya tomando o cuidado para não ser muito ameaçadora com seu machado
de marfim, afinal sabia que os druidas protegiam seus recantos florestais.
Todos olharam para Aramyn. Ele já
sabia o que devia fazer.
-
Asafe, guia dos espíritos, sou um clérigo de Splendor. Um aliado. E esse é o
meu grupo. Não temos a intenção de enfrentá-lo, nem de ofender seu imaculado
refúgio. Precisamos de sua ajuda, por isso viemos até aqui e convocamos tua
presença.
A voz do clérigo ecoou debaixo da
folhagem afiada e repercutiu num silêncio decepcionante.
-
Consigo ouvir algo! – revelou o halfling enquanto rodopiava em busca de um
lugar onde suas costas não estivessem desprotegidas. Os bons ouvidos de Jack
ajudaram os heróis a criarem expectativas. O que ele havia escutado poderia ser
uma ameaça ou o próprio guia dos espíritos.
A cortina de folhas-guilhotina
abriu-se quando uma figura metálica saltou de seu esconderijo. O estardalhaço
se propagou enquanto o invasor mantinha-se de pé com um escudo que lhe cobria a
perfeição negra que era uma armadura e elmo forjados com exímia habilidade.
Mas
esse não era o alvo da percepção de Jack.
Um
redemoinho de folhas cortantes e um capuz se arrastaram ameaçadoramente revelando
uma finíssima lâmina e os pés rápidos de uma criatura desfigurada e de sutileza
notória.
Freya e Varuz tentavam reconhecer os
perigosos anfitriões quando uma flecha brusca rompeu o ar e atingiu um tronco
de árvore que estrategicamente intercalava a dupla. A flecha dissipou-se dando
lugar a galhos tortuosos e cheios de espinhos pontiagudos.
Os machados de Freya e a robusta
figura metálica reagiram enquanto o arqueiro responsável pelo disparo aparecia
deslizando entre os galhos de folhas-guilhotina, pálido e esguio. Os olhos de
Varuz flamejaram e ele balbuciou duas ou três palavras de sua primeira magia.
Todos
se entreolhavam de forma ameaçadora quando Aramyn ergueu seu escudo revelando o
símbolo de seu divino. Como resposta, o elmo inimigo foi retirado, revelando a
espessa barba de um anão que já não tinha mais seu machado disposto a arrancar
cabeças ou seu escudo protegendo o corpo.
-
Parem. Esse clérigo porta o símbolo de Splendor – revelou o anão – Ninguém
portaria esse símbolo numa região dessas se não fosse um aliado. Estamos com
sorte.
O arqueiro acreditou piamente no
anão e baixou o arco, porém, faíscas ainda jorravam entre os olhares
desafiadores do encapuzado e Jack Turner.
Adiantando
as apresentações, por reconhecer que o grupo invasor não era mais uma ameaça,
Aramyn revelou:
-
Sou Aramyn, clérigo de Splendor, é verdade. E este é o meu grupo. Não lhe seremos
empecilhos, a não ser que sejam inimigos ou tentem nos impedir de prosseguir
viagem.
-
Um clérigo de Splendor é raro nessas regiões, Aramyn. Sou Ragnar, também um
servo divino, mas a divindade que me guia é Hefasto, o senhor dos anões.
Diga-me, o que vocês fazem aqui?
-
Procuramos por Asafe, o guia dos espíritos. A xamã da tribo de Freya – apontou
para a bárbara, que ainda estava com o machado firme em mãos – nos indicou sua
localização. Acreditamos que ele possa nos guiar, de alguma forma, até nosso destino.
-
Viemos aqui com planos similares. Encontramos Asafe. O druida concordou em nos
ajudar, mas desapareceu tendo como desculpa o fato de ter que avaliar se um tal
de Apuana estava disponível para viagem. Quem o tal sujeito citado é, nenhum de
nós sabe.
-
Então, estamos no caminho certo. – encerrou Aramyn satisfeito por não ter de
usar sua espada e escudo tão cedo contra inimigos que pareciam valorosos.
-
Viajamos com destino à Ankhashadalûr, o templo da mãe dos dragões negros.
Durante nossa trajetória, pretendemos eliminar os sete filhos dela. Para onde
vocês estão indo? – perguntou Ragnar e agora, mesmo o encapuzado e o halfling
não mais mantinham a habitual desavença.
-
Parece uma missão digna de grandes heróis. A caminhada de meu grupo se limita
às grutas de Noroi, a bruxa do Pântano das Moscas.
-
Então, nosso caminho se cruzou por mais do que simples coincidência. Deveríamos
prosseguir viagem juntos.
O
encapuzado retirou a vestimenta que lhe cobria o rosto de sombras e revelou seu
aspecto de meio-orc. Uma expressão de desconfiança que cortou qualquer
tentativa de Aramyn responder algo antes que suas palavras se pronunciassem:
-
Eu não me aliaria a alguém na qual não sei o nome ou a forma como poderia chamá-lo.
-
Pois escute bem o meu, sujeito de passos barulhentos, sou Jack Turner, membro
da Ordem do Manto de Zarast, a cidade dos anjos de pedra. Decore bem a
pronúncia. Você acabará por escutá-la muitas vezes. – adiantou-se o halfling
que já havia preparado mentalmente seu discurso de apresentação exagerada.
Houve um silêncio que perdurou até
que o mago, já não mais de olhos ígneos, adiantou-se, bateu os calcanhares e se
pôs em posição militar:
-
Varuz, mago da Ordem Arcana de Mordae. – apresentação rápida e limpa.
A
próxima foi a bárbara:
-
Vocês já sabem o meu nome. – acrescentou Freya com cara de poucos amigos.
Por
fim, o arqueiro, como se temesse pronunciar o próprio título revelou:
-
Sou Azanthe, um arqueiro da Ordem do Arco. – e manteve seu rosto voltado para o
chão, incapaz de encarar alguém.
-
Agora falta você, amigo. – aproximou-se
Aramyn, tomando cuidado para que suas palavras não soassem um tanto exigentes.
-
Chamam-me apenas de “O ceifador”. Eu sirvo à morte e ela me serve. – respondeu
o meio-orc, guardando seu sabre de lâmina finíssima debaixo de sua capa.
-
Oito aventureiros se encontram num dos lugares mais inóspitos do mundo. Isso
não pode ser apenas coincidência, mesmo, Ragnar. – concordou Aramyn.
***
Asafe, o guia dos espíritos |
Freya parou de afiar seu machado de
marfim quando o guia dos espíritos chegou tão rápido e fantasmagórico que mal
se pôde ter reação para contra-ataque.
-
Oito destinos compartilhados e o Apuana ainda permanece escondido. Ele esperou
pacientemente até essa hora. A hora em que ele se sentiria útil mais uma vez.
A
voz soturna acompanhou os passos sutis de uma figura druídica que se curvava
como um símio, pés descalços e sujos equilibrando-se com a maestria de um
animal selvagem nos galhos tortuosos cheios de folhas afiadas e, para ele,
inofensivas. Nutrido apenas da caça e da coleta de alimentos suficientes para
que seu corpo suportasse a vida eremita, Asafe cobria ombros e costas com um
manto de pele sujo e tão espesso que parecia ter sido arrancado de um urso e
dava volume à sua forma esquálida. Dezenas de amuletos, dentes, chifres e minúsculos
crânios de pássaros filhotes adornavam seu pescoço. Os cabelos maltratados
davam volume à face cadavérica onde havia pintado, num branco pálido, um
crânio, aproveitando-se dos contornos ósseos de seu rosto. A cabeça de um bode
funcionava como um elmo, chifres pontiagudos saltavam dela e tiras de couro
amarravam mais pares de chifres que adornavam sua imagem ameaçadoramente.
Um
par de olhos tão densos que podiam roubar almas seria uma descrição plausível.
Cada um dos participantes do grupo sentiu um incômodo que parecia saltar-lhes à
garganta. O rosto apático do guia dos espíritos simplesmente não esboçava
qualquer atitude amistosa, apenas observava, carrancudo, os invasores de seu
lar de folhas afiadas.
-
Vocês precisam me seguir. Um passo a menos é um dia perdido.
Não esperou perguntas. Não esperou
sequer a dúvida estampada na face daqueles que lhe seguiriam, apenas deu a
volta em seus calcanhares e alcançou um galho tortuoso que dobrou-se feito um
arco, suportando seu peso. Observou algo além da esparsa folhagem e saltou para
os galhos adjacentes com proeza.
O
grupo não teve outra escolha a não ser a de segui-lo.
***
Preocupado com a trilha, Khali, que
corria veloz à frente graças ao seu vínculo de treinamento em florestas
fechadas, buscava interagir e ser um porta-voz entre os saltos símios de Asafe
e o grupo despreparado para viagens rápidas numa mata inimiga.
Olhou
para cima das árvores e as folhas-guilhotina já não faziam parte da folhagem.
No lugar destas, folhas verdes, galhos e troncos cobertos por um tapete de
musgo. Fresta à fresta, Khali podia discernir a, ainda insistente, luz do sol
que se propagava acima da copa das árvores que permitia, de alguma forma, que a
claridade guiasse o grupo pelas trilhas mais confusas.
Em
um momento de desatenção, perdeu o guia dos espíritos de vista e lamentou-se.
Feito
uma aranha tecendo teia, Asafe deslizou naturalmente em silêncio por um cipó
coberto de musgo e encarou o indígena face a face, de cabeça para baixo. Khali
saltou pelo susto mas, enfim, contentou-se por não ter perdido a trilha
desenhada pelo druida e, então, poder revelar a direção certa aos seus aliados.
-
Estamos aqui Freya. O guia dos espíritos parou. – alertou à barbara que tentava
a todo custo calcular a distância na qual Aramyn, o último da fila, estava.
O lugar seria uma clareira perfeita
se os galhos e folhas não bloqueassem o céu. Era um descampado livre de
cortinas de musgo, troncos tortuosos e até mesmo das raízes que se
desenterravam, vez por outra, do chão e tornavam-se uma armadilha propícia para
aqueles que tentavam fugir desesperadamente pela mata fechada.
Acima,
entretanto, havia um serpenteado de galhos longuíssimos e tortuosos que se
abraçavam entrelaçando como cordas sustentando a folhagem pesada. Uma perfeita
cobertura contra os pingos violentos de uma tempestade. Um abrigo perfeito para
horas e até dias de descanso.
Não
muito longe, atrás do acúmulo de galhos que se entortavam tanto que chegavam a
encostar no chão, podia-se escutar o barulho de água corrente. Havia um rio por
perto.
-
Apuana espera por vocês aqui. – explicou Asafe e olhou para cima.
Todos esperavam alguma criatura –
mesmo um inimigo – sair de seu esconderijo na copa das árvores, mas não foi o
que aconteceu. Ninguém pôde enxergar nada.
Khali
tentou ordenar seus conhecimentos e analisou a grande árvore de raízes
profundas responsável pela criação da teia de galhos infinitos que cobria
aquele refúgio. Aquela árvore não podia curvar-se daquela forma, mesmo se estivesse
no auge de seu tempo.
-
Há alguma coisa em cima dessa árvore. Algo de grande estrutura. Parece
impossível discernir o que é. Tentarei alcançar os galhos mais altos e buscarei
a resposta.
-
Apenas espere. – Azanthe adiantou dois passos, retirou seu arco e o brilho
prateado contrastou-se com a aparência pálida e pouco saudável do arqueiro. Uma
linha tênue, dourada como o sol, era a corda de seu arco. Ele carregou a arma
até que ela pudesse ouvir seus sussurros e soprou algo inaudível e sem
tradução. Um envolto de insígnias que emolduravam o corpo do arco brilhou
verde, como uma esmeralda sendo tingida pela luz do luar. Retesou o arco e
lançou uma flecha contra os galhos.
Inconscientes dos poderes do arco
mágico, o grupo de novos desconhecidos assistiram, boquiabertos, as folhas
murcharem e tomarem uma coloração amarronzada, como se o vento do outono
tivesse cavalgado até ali e arrastado seu verde. Uma branda ventania arrancou
as folhas murchas dos galhos das árvores e as carregou em redemoinhos, limpando
a visão do que teria em cima da copa da antiga árvore. Ainda encharcados pela
chuva de folhas secas, um a um, cada herói reconhecia o que estava se
escondendo deles desde o princípio.
-
Corrijam-me se eu estiver enlouquecendo, mas, aquilo é uma caravela? –
perguntou Jack sem esperar por resposta.
-
Este é Apuana. – respondeu Asafe.
***
Não demorou muito para que Ragnar e
Freya dispusessem de seus machados e arrancassem os galhos certos para que a
caravela encontrasse o caminho para o rio de águas rápidas situado à frente do
refúgio. O grupo assistiu galhos e cipós partirem enquanto o Apuana escorregava
pelos ramos, rangendo pelo peso e se arrastando com a ajuda do limo acumulado
em sua base depois de tanta espera.
-
Esta é Aomame, a mais antiga serpente de água. – Asafe apresentou o rio ancestral
aos heróis. Seu corpo banhava Chattur’gah até alcançar o pântano das moscas,
onde morria lentamente até desaparecer e transformar-se em poças sujas. Naquele
lugar, pelas redondezas, havia o refúgio de Noroi, a primeira maldição, em
algum lugar na base de uma montanha tempestuosa.
Cativados pela magia da situação, os
heróis buscaram os galhos mais baixos e os usaram de ponte segura para adentrar
a velha caravela que, depois de tanto tempo, sentiu seu piso ranger quando pés
pisotearam seu corpo.
O
tempo e a umidade tentaram devorar Apuana. Velas e bandeiras haviam sido
corroídas e o pouco que restava deixou-se ser carregado pelos ventos da
floresta. A base de hastes e as bordas de entradas estavam preenchidas de
musgo, cascos de caracóis e fungos e estes revestiam alguns metros de chão e
paredes de madeira frágil, porém consistente. Ficaram tão dispersos, entretidos
com a embarcação, que, apenas depois de alguns minutos, Aramyn tentou avistar o
desaparecido guia dos espíritos.
Em
algum lugar no alto das árvores distantes e escondidas, Asafe finalmente
esboçou um sorriso esperançoso. Balbuciou algo para o vento e, em cima do rio
Aomame, Apuana moveu-se, cavalgando a água e arrastando uma tripulação
surpresa.
-
Estamos nos movendo. A caravela está nos levando para o pântano. – observou
Khali, aguçando seus olhos élficos e penetrando a escuridão emoldurada por
galhos tortuosos que se abraçavam a alguma altura acima da passagem do Apuana
formando um arco de boa viagem por onde a caravela iria transitar.
-
Você tem um grande poder de observação, índio. – desdenhou Jack e saltou para
as bordas da caravela, equilibrando-se perigosamente e enfrentando o vento
úmido que lhe soprava no rosto.
Em momentos como aquele, mesmo
rodeados de uma selva cheia de ameaças, mesmo sabendo do destino para o qual
ela os arrastava, todos sentiram um sentimento de liberdade banhar seus
corações. Escutaram, silenciosos, o barulho da base da caravela lutando contra
a água insistente e persistiram em suas esperanças.
***
Meus pés descalços não
sentem mais a frieza das terras ermas. O frio não importa desde que ela me
tocou. Agora estou sentado nos restos mortais de alguma criatura que foi
parcialmente devorada por este pântano de lágrimas.
Sim, lágrimas. Eu
pude perceber isso quando limpei o meu rosto surrado e senti o gosto salgado
preencher meus lábios. Precisei parar e escrever sobre isso. Esta é a minha
sina desde que me conheço por gente... ou por criatura. A pena de um corvo,
velhos e manchados pergaminhos de couro amarelados e um frasco contendo a tinta
rubra infinita e com sabor de sangue, são minha única carga.
Eu ainda não fui
notado. Imagino que ninguém seria capaz de prever a chegada da morte. Meus
passos não deixam pegadas, meus gritos não podem ser ouvidos e minha imagem não
pode ser notada pela maioria. Deixei as caravanas macabras dos orcs
praguejadores para trás. Eles se preparavam para a morte. Os líderes religiosos
preparavam seus súditos para o fim inevitável. Sacrifício pela eternidade. Uma
ilusão praguejada nas mentes dos fanáticos. Os orcs gritavam as palavras
insultuosas, se escarificavam, afiavam as lâminas tortas de seus machados
letais. Os ogros arrastavam grandes tambores de guerra e construções de madeira
amarradas por cipós e restos de cordas de cânhamo nas suas costas, como uma
pesada mochila de carga.
Um xamã orc cuspiu no
rosto de outro. A resposta foi ainda mais violenta por parte do ofendido. Era
fácil destacar os líderes entre os orcs, eles tinham marcas e pústulas que
brotavam feito vulcão de suas peles rígidas. Também ostentavam um cajado com
uma das extremidades minadas por galhos e chifres tortos. Um dos orcs atingiu o
peito de outro e o empurrou contra o chão pantanoso, continuou a estocá-lo até
que as pontas letais de cada chifre enterrassem na carne familiar, enquanto
entoava uma prece maldita que engolia a alma da vítima apodrecida. Os restos
foram jogados para os ogros famintos e os orcs assistiram o banquete com as
bocas cheias de água.
Moscas em todo lugar.
Elas não se importam com as poças salgadas. Elas estão igualmente famintas e os
ogros não podem fazer nada contra elas. Parasitas.
Tudo a partir dali
tornou-se um cinza que, vez por outra, brota um filete de sangue, tingindo a minha
visão com um vermelho agonizante. Estou bem próximo do refúgio da primeira
maldição.
A figura desconhecida guardou,
então, seus pertences, enrolou o pergaminho e, de pés descalços, caminhou até a
base da montanha tempestuosa. No céu, ao longe, os raios dançaram ameaçadores.
***
-
Bonifrates! – alertou Khali com seus olhos perscrutadores de escuridão.
Não que todos soubessem o que
poderia ser aquilo, mas, um a um, os heróis protegidos pelo toldo do convés
inferior, permitiram-se serem molhados pela neblina noturna e fria como o toque
de um espírito. Lá fora também chovia aquelas criaturas miúdas, feitas de
pequenos ossos, laços feitos de cipós desentrelaçados e galhos secos.
Pequenas
criaturas que encharcavam a copa das árvores e os galhos na forma de arco que
circundavam o Apuana. Eram diferentes entre si, mas todas frágeis, armadas com
lascas de ossos e dentes afiados arrancados de alguma coisa que um dia viveu na
grande selva. Algumas tinham cabeças de pequenos pássaros, corvos de bicos
curvados, crânios de bebês que haviam sido arrancados ainda na forma de feto.
-
O que diabos é isso? – reclamou Jack ainda tonto de sono.
-
Magia negra. – respondeu Varuz, sólito, apalpando sua bolsa de componentes
mágicos em busca do elemento certo.
- Sai daí, índio! – gritou Freya para Khali
que recuava enquanto disparava uma flecha certeira num dos bonifrates que
iniciou a investida chuvosa.
As criaturas miúdas mergulharam na
escuridão num suicídio em massa. Emitiram um ganido fino e estridente enquanto
se desafiavam a alcançar suas vítimas. Parte deles simplesmente caiu no rio,
outra não alcançou o convés e os bonifrates se desmontavam quando colidiam com
as bordas do Apuana, mas, a maioria, chegou ao ponto de enfiar suas armas
improvisadas como agulhas na pele dos heróis.
Ragnar
e Aramyn avançaram, escudos a frente. Ultrapassaram o recuo de Khali e
escutaram os bonifrates se chocarem em suas proteções. Eles se estilhaçaram e
foram pisoteados. Freya avançou sem temer e golpeou uma massa de criaturas,
parte delas foi arremessada de novo em direção às árvores.
-
Não se aproximem. – avisou Varuz para os próprios aliados enquanto esparramava
as lâminas afiadas no chão e conjurava a magia já conhecida. Elas levitaram
mais uma vez e rodopiaram como um redemoinho letal ao redor do mago. Os
bonifrates não temeram e saltaram para cima do vórtice de lâminas sendo
ceifados e se juntando ao vendaval cortante. Eles tiveram seus corpos separados
pela magia, mas, ainda assim, alguns mantiveram domínio de suas quedas e
alcançaram o mago no centro do casulo mortífero. Varuz precisou livrar-se dos
bonifrates manualmente.
O ceifador e Jack mantinham
distância da massa morta-viva de pequenos ossos que começava a se espalhar
fatalmente pelo convés e invadir cada fissura do Apuana, enquanto Azanthe
disparava nos bonifrates e interpunha seus saltos antes que estes pudessem cair
no chão ou atingir um de seus aliados.
-
O que é isso? Essas coisas são infinitas? – reclamou Freya, livrando-se de um
bonifrate que mordia seu ombro e pisoteando um segundo que fazia uma corrida
vitoriosa em busca de sua perna.
-
Se essas coisas continuarem a cair desse jeito, nós não teremos escapatória.
Existe um mar de bonifrates vindo de ambos os lados da caravela – avistou
Khali, mais preocupado em avaliar a situação do que matar as criaturas
infinitas com suas flechas finitas.
-
Se esses bonifrates foram feitos de magia negra, sucumbirão ao clamor de nossa
fé, Ragnar. – acrescentou Aramyn enquanto atingia uma das pequenas criaturas
feito um bastão.
Ragnar
alcançou seu candeeiro apagado e preso ao cinto e iniciou as orações. Uma luz
tímida transformou-se em um raio de luz que se propagou como uma imensa
fogueira, transbordando calor e claridade ofensiva. Aramyn encarou o objeto
mágico estupefato. Reconhecia o item e sabia de suas propriedades sagradas.
-
Aramyn, agora! – Ragnar chamou sua atenção.
O clérigo de Splendor adiantou-se
rumo à proa da caravela e ergueu seu símbolo sagrado. A cruz dos anjos de pedra
brilhou intensamente somando-se ao brilho sacro do lampejo divino e os
bonifrates foram lancetados pela presença avassaladora da fé dos clérigos. As
criaturas explodiram. Bonifrates se despedaçaram e seus restos foram jogados
para fora do convés, levitando lentamente enquanto fluíam ao redor do círculo
de espadas luminosas conjuradas por Aramyn e Ragnar.
Tudo
aconteceu em instantes. Os observadores ficaram ofuscados pela claridade santa
e um feixe de luz colidiu com a escuridão. Tudo o que sobrou foram os restos
dos bonifrates que choviam inofensivamente sobre o Apuana ou eram varridos pelo
rio Aomame.
-
Parece que funcionou direitinho. – acrescentou Jack, rompendo o silêncio que
havia sobrado depois da expulsão.
Ao fundo, Khali observava os
bonifrates que tiveram a sorte de estarem distantes da explosão sagrada. Eles
alcançaram as árvores mais afastadas, fugindo como diabo foge da cruz.
-
Isso é tudo o que esta noite pôde nos ofertar. – sussurrou para si mesmo.
***
Relato:
Khali
Era
o nosso terceiro dia de viagem e, logo mais cedo, quando eu ainda estava sendo
auxiliado pela luz do sol, vi alguma coisa se movendo debaixo da água aos pés
do Apuana. Algo com alguma proporção medonha, capaz de sair das águas escuras,
saltar e me alcançar ali, nos limites da proa do navio.
Não
importa. Eu precisava continuar atento.
Não
é à toa que meus olhos são capazes de enxergar mesmo os detalhes mais ínfimos.
É claro, parte disso porque carrego o legado élfico. Qualquer filete de luz me
permite adentrar as sombras como uma flecha se enterra na carne humana. Mas,
além disso, meus olhos estavam acostumados com os nuances de sombras e
claridade devido ao meu treinamento na Floresta dos Mil Sussurros.
Eu
vim de lá e, devo dizer, embora meu treinamento esteja me auxiliando bastante
aqui na selva de Chattur’gah, meu lar e essa profusão de mata fechada são
florestas distintas. Meus ancestrais dizem que Chattur’gah e a Floresta dos Mil
Sussurros são uma só e que, em um tempo muito esquecido, as duas se abraçavam,
e continuou assim até que os homens dos reinos vizinhos denegriram a terra e a
transformaram numa planície sem fim que acabou separando ambas as vegetações.
Se
essa história é verdade, eu não sei, mas uma coisa não posso negar: a Floresta
dos Mil Sussurros é um bosque cheio de lareiras preparadas para abrigar a minha
família, enquanto Chattur’gah é uma prisão de galhos e folhas partidas que se
entrelaçam com o intuito de intimidar seus visitantes desavisados.
Sim,
estou acostumado com histórias de fantasmas e espíritos naturais. O povo dessa
região também. Eles até usam esse conhecimento de forma errada e se aliam à
magia negra. Não que isso não aconteça na Floresta dos Mil Sussurros, mas, a
grande diferença é que minha família inteira protege aquele lugar e respeita os
espíritos como parentes. Já aqui, em Chattur’gah, as cabalas de bruxas e
feiticeiros são temidos demais. Eles sobrevivem e tem um lar reconhecível: o
tal Pântano das Moscas, que é o local para onde eu e meu grupo ruma agora.
A
patrulha da Floresta dos Mil Sussurros já haveria de ter marchado para essas
redondezas muitos séculos atrás e arrancado o mal pela raiz, por isso, fico
satisfeito de estar nesse lugar e ajudar a propagar a crença de minha família.
Bruxas, necromantes e qualquer coisa que carregue o espírito maculado precisa
ser destruída. De preferência com uma flecha certeira no peito disparada de meu
arco.
Que
os Quatro me concedam habilidade para efetivar meus disparos, mas o que
pressinto por aí é um lugar escuro, tenebroso, cercado de névoa fria, como o
toque de um carniçal, e tempestades violentas. Não será um bom lugar para
disparar flechas, nem será um bom lugar para rastrear. A chuva apaga todos os
rastros. Meu treinamento me ajudou a reconhecer possíveis pegadas, mesmo em um
ambiente esburacado pela chuva, ainda assim, existe muita possibilidade de eu
falhar.
Eu
deveria estar limpando as terras de Azran das hordas trôpegas que sobraram
depois do exorcismo da antiga muralha, foi para isso que saí da Floresta dos
Mil Sussurros: eliminar essas criaturas e me harmonizar com minha arte. O meu
arco.
É
um pouco difícil explicar a um completo ignorante como eu e minha arma somos um.
Enquanto reteso a linha do meu arco, sou capaz de sentir sua vontade de gritar
e cuspir a munição. Os passos certos, na hora certa, e uma de minhas flechas
voará em linha reta contra meu inimigo, visando aprofundar-se na carne da forma
mais intrínseca.
São
essas artes que me fazem o vigilante perfeito para esta situação. Eu descanso
bem menos, mas isso não importa. Há muito distanciei de minha família, fazia o
máximo para provar-lhes minha eficiência e, agora, com este grupo, não é
diferente. Não importa o quão distintos eles possam ser de mim ou entre si. São
meus aliados agora. Minhas flechas são disparadas para protegê-los e meus olhos
são perscrutadores para alertá-los.
Agora
o silêncio ajuda a fazer ecoar o mais sigiloso barulho. O bater de asas de um
pássaro, uma folha dançar pelo vento, galhos sendo partidos por criaturas
selvagens curiosas que tentam averiguar a coisa que trafega pelo rio Aomame:
nossa caravela. Ah, e é claro, o barulho da água jorrando no casco do Apuana.
Um
sutil nuance de ondas propagadas na direção errada me chama a atenção. A coisa
embaixo do rio está lá novamente, preparada para o bote. Ela possivelmente é um
ser inteligente ou tem algum senso de caça apurado. Se aparecesse durante o
dia, haveria meio mundo de aliados para enfrentá-la, agora, meu mínimo
movimento, um simples passo para trás e ela pode agir antes que eu possa
chamá-los.
Ainda
estou encarando a água quando uma voz melodiosa me preenche os ouvidos. Uma voz
feminina e cálida, cada nuance soado de sua língua experiente estala em minha
mente e me obriga a observar a criatura de beleza exuberante sair do Aomame
como uma serpente enfeitiçada dança buscando sair do cesto. Finalmente posso
ver suas curvas perfeitas, uma exímia nadadora num vem e vai libidinoso de
cintura, um umbigo lavado pela água escura desenha os traços lascivos que meus
olhos rastreiam até se depararem com um par de seios nus, pequenos e agudos que
lapidam a subliminar intenção de me devorar.
Ela
estica um dos braços em minha direção como se implorasse por uma aproximação
que a muito lhe foi recusada. Sigo rente, passo após passo firme, meus olhos
agora hipnotizados por um olhar verde como esmeralda. Me aproximo dos limites
da proa e piso nas bordas como se preparasse um último salto. Reteso a linha de
meu arco e a atinjo um pouco abaixo do seio esquerdo. Por pouco não enterro uma
de minhas flechas exatamente no lugar onde ela possivelmente mastigaria com
suas presas venenosas e afiadas de besta.
A
face da criatura agora é preenchida por escamas negras monstruosas, seu pescoço
apresenta guelras hediondas e seus olhos são uma fenda amarelada, feito uma
serpente. Ela saliva seu rancor e boquiabre, me apresentando cada fila de
dentes pontiagudos como os de uma piranha, além da língua bifurcada que sibila suas
maldições. Encolhe-se e mergulha no rio escuro antes que eu dispare um novo
projétil.
Meu
trabalho foi realizado com êxito, mas ainda tenho horas e horas noite à dentro
até que minha vigilância possa ser abdicada.
***
Relato:
O Ceifador
Minha
arma é o silêncio. As motivações que me fizeram chegar até aqui, nessa selva de
criaturas mortas, estão acima da vontade humana. Me agrada que eu seja o
escolhido.
Esse
grupo veio a calhar. Eles não fazem tantas perguntas e isso ajuda a afiar minha
lâmina. Imagino o quão seria difícil chegar até aqui sem os devaneios desses
indivíduos, tão focados em suas missões que decidiram depositar confiança em
alguém que nem o nome verdadeiro citou. Não importa esse despreparo, a verdade
é que eles estão certos em confiar em mim, enquanto podem. Uma sombra do seu
lado sempre será uma aliada eficaz.
E
é nas sombras que estou agora. A escuridão que se estreita na popa de uma
caravela que segue sozinha ao seu destino. Não me é estranho. Chega a ser
poético. Uma caravela que trafega por um rio de mortos é como a cópia de um
quadro cinzento dos planos de minha deusa. Se as coincidências permanecerem
iguais, haverá muita coisa a se enfrentar no final dessa viagem. Isso será
ideal para um ceifador.
Sim,
existem outros como eu, sóbrios da vida. Eles podem ser qualquer um. Já me encontrei
com vários, por acaso, embora esses achados sejam muito raros. Há um taverneiro
em Zarast que todas as noites veste seu capuz de aniquilador, enquanto de dia
está bem-disposto a servir vinho. Um dos senhores das torres de Mordae é um
exímio necromante e também um ceifador. A garota perdida no meio das ruas de
Draganathor, sobrevivendo de assaltos e fugas, já havia empunhado uma lâmina
letal contra a garganta de duas vítimas, quando eu a conheci. E, mesmo aqui, em
Chattur’gah, numa imensidão esquecida e inexplorada, um ceifador faz suas
andanças.
“
Lif. ”
“
Sim, amo. ”
Ela
costuma sempre aparecer sussurrando em meu ouvido, com a voz silenciosamente
impecável, como se pudesse ser ouvida por qualquer um.
“
Traga-me notícias das redondezas. ”
“
Sim, amo. ”
Diabretes.
Elas são nosso elo com a deusa. Por causa delas, os ceifadores se reconhecem. Um
comando e a pequena criatura humanoide com asas de morcego e um minúsculo par
de chifres, alça voo e, aproveitando-se do véu que separa a vida e a morte,
viaja despercebida, com um par de olhos perscrutadores que me trazem a
informação preciosa. A partir daí eu decido se pretendo compartilhá-la com os
outros ou não.
Explicar
o porquê de eu, repentinamente, saber das coisas é a parte mais difícil. Não
fui feito para mentir, mas para omitir. Se aqueles com a qual eu viajo me
fizerem perguntas sobre isso, deverão se contentar com mais um mistério não
revelado.
Os
elandrins agem dessa forma. Sussurram em nossos ouvidos o nome da próxima
vítima e, nós, os ceifadores, não questionamos, não podemos diferenciar o bem
do mal. É por isso que estou aqui. O anjo com pele de carvão cobriu-me com suas
asas letais e me ofereceu a mais perigosa missão entre seus subordinados. Desde
aquele momento anseio pelo coração negro da coisa que mora na pirâmide de
Ankhashadalûr.
Ela
não sabe, mas está com seus dias contados.
Agora
a noite me abandona, assim como a reserva de fumo que havia guardado para
alimentar meu cachimbo durante essa viagem aparentemente eterna. Lif nunca
demorou tanto para retornar. Começava a ficar preocupado quando escuto seu
bater de asas.
“
O pântano a nossa frente chora, meu amo. Haverá manipuladores da morte e seus
fanáticos como ninguém antes viu. Esse grupo viaja para o destino incerto e já
carrega a marca do próprio óbito. Haverá perecimento entre a fila de seus
aliados. ”
A
notícia de mau agouro, é claro, não havia me surpreendido. A morte perscruta
esse grupo. Se ela tiver que carregá-lo, bem, que seja de maneira heroica. Eu
estou preparado. Meus braços sempre estiveram abertos para a última apunhalada.
Um dia, eu sei, morrerei fazendo o serviço de minha deusa, mas, por enquanto,
deixemos que a dúvida fortaleça a esperança de meus aliados.
***
Se o silêncio carregasse
algum eco, ele seria igual a este que agora presencio em frente ao lar da
primeira maldição. São como batimentos cardíacos que interagem com meus ouvidos
e me põem em contradição. Não sei se estou atento ao ressoar de meu próprio
coração ou se a montanha inteira que se desaba pela gruta tem um próprio,
eclodindo num distante interior de uma criatura enorme como o céu cinzento que
deságua a eterna tempestade sobre os viajantes desses arredores.
A entrada do covil
não é um portal de boas-vindas intimidadoras que um escritor inspirado poderia
desperdiçar os melhores adjetivos. É a boca cavernosa de alguma coisa
enterrada, cercada do entrelaçado de raízes finas gotejantes. Já se é possível
notar a água parada e suja pela umidade enterrar-se como uma língua alcança a
garganta. Essa é a sensação: estar sendo engolido pelo esquecimento.
(...)
Minhas vestimentas
estão molhadas até o alcance do peito. A água transborda em profundidades
variadas dentro dessa imensidão obliterada. Se meus pertences fossem mundanos,
temeria perdê-los para a umidade desse lugar. As paredes grosseiramente
curvilíneas salivam constantemente e ainda tenho a impressão de estar
caminhando rumo a um coração negro.
(...)
Se meus olhos não
estivessem acostumados com visões tão macabras, minha mente se turvaria
mediante ao enorme casulo que bombeia o sangue escuro para o corpo montanhoso
do lar da primeira maldição. Inúmeras raízes se enterram no coração negro feito
artérias e se preenchem com um fluxo coagulado de líquido caliginoso. Mesmo assim,
não haveria um jeito de antecipar minha imaginação e descrever com palavras a
coisa que agora encaro.
Ajoelho-me perante a
desenvoltura macabra do ambiente e deposito a folha de pergaminho e o frasco de
tinta carmim à minha frente, no chão. Recolho a pena de corvo e tracejo as
primeiras curvas da antiga história.
“Atreva-se
a olhar para o passado e
verá
que o céu da manhã não te ofusca
a
face de reflexo.
Tentando
tomar o luar pela cauda,
haveria
somente uma visão chuvosa
de
quem está sumindo.”
“Você
procura saber mais sobre isso,
mas
já não é exatamente o mesmo e,
então
percebe que está perdendo tempo
tentando
procurar sua coroa e desperdiçando
o
vinho que te puseram no copo.”
“Aquela
última tempestade ao seu redor
regou
o pântano com suas lágrimas
e
no silêncio do seu melhor sonho
você
está cantando para o vento
tudo
aquilo que você desejou.
E
idealiza que existe um final,
mas
ele é infinito.”
“A
sina dos que prezam aqueles que já
esqueceram
é esperar muito tempo pelo inevitável nada.”
(...)
O
grande coração negro parou de bater. Lentamente. Como alguém que espera
impacientemente pelo último suspiro. Raízes se desenterraram de seu negrume e
alcançaram minha fronte, ameaçadoramente. Aos poucos as veias esverdeadas como
o talo de uma erva daninha, desenharam a silhueta feminina cheia de curvas e
anseios libidinosos.
E
elas continuaram a dar forma à primeira maldição. A pele pálida foi
vagarosamente vestida por um manto enegrecido preenchido de escamas letais.
Longos cabelos escuros se comportaram delicadamente sobre uma face feminina de
olhar profundo como um rio de algas e, por fim, foi coroada. Ela era a
representação de uma majestade fúnebre.
“
Vieste prenunciar o início da grande mácula, escravo sofrido. Vens aqui
presenciar as lágrimas que inundarão o mundo. As almas serão regadas com
esquecimento e os sacrifícios tingirão as nuvens de vermelho. Veneno irá
chover. Vermes crescerão nas entranhas dos pecadores. A voz da primeira
maldição cegará os inocentes e romperá o coração dos fervorosos. Estou aqui, de
volta, para a última caminhada. ”
Ela falou comigo. Cada palavra soando como
uma nova maldição sendo inventada. Não me olhou nos olhos, mas marchou, pisando
etereamente no chão maculado, ignorando minha presença física e lancetando minha
mente e coração. Me recompus, ergui-me, guardei meus pertences e a segui,
silencioso.
O desamor carece ainda mais os corações
frios. Eu pensei. Mas vocês, leitores, não conhecem a história.
***
Relato: Freya
Vermes pisoteáveis. Foi tudo isso que enfrentamos
até agora. Aquelas coisas que saltaram dos galhos das árvores, encheram essa
barcaça de pequenos ossos e que, por sinal, eu nem me sujeitei a decorar seus
nomes. Isso não me deixa feliz. Quero dizer, isso entristece até o meu machado!
Os padres da equipe vêm falando de morte
incessantemente. Aquele anão só tem boca para seus feitos. Histórias de uma
muralha arruinada que abrigava milhares de mortos-vivos. Não entendo a cabeça
desses sujeitos que adiam uma guerra. Ora, pois se fosse uma ameaça à Chattur’gah,
as grandes tribos derrubariam a muralha inteira a golpes de machados e depois
matariam tudo que ousasse ultrapassar ela.
Não me entendam mal. Eu não sou uma louca
violenta. Gosto de ver o sangue de meus inimigos jorrar, junto com a cabeça,
mas sei bem quando partir para cima ou recuar. Quero dizer, numa situação como
essa da muralha, a decisão deveria ser rápida. Uma multidão destemida, imersa
na grande fúria de Zoe, golpeando com machados, lanças e clavas a cabeça do
líderzinho ostentador que, provavelmente, está bem sentado em um trono de ossos
esperando as chupadas de seus vassalos.
Me proibiram de arrancar o mastro dessa
barcaça. Quatro ou cinco machadadas no lugar certo e esse pilar de madeira
cairia e deixaria de ser um empecilho no meio do convés. Tentaram me convencer
que, se eu fizesse isso, estaria desrespeitando o lar de um antigo espírito que
move a embarcação. É nisso que Aramyn acredita, depois de ter encontrado um
amontoado de ossos apodrecidos lá embaixo. Logo ele, que chutou a cabeça do
desgraçado.
Eu acredito que espíritos não sentem dor.
Eles estão lá para serem encaminhados para o lugar que eles deveriam ir depois
de alcançar a morte. Alguns usam luzes e bolas de fogo, eu guio eles com meu
machado.
O pequeno bichinho de estimação do grupo
está enraivecido porque não aguenta mais me escutar afiando a lâmina da minha
arma. “Você não tem algo mais útil para fazer, bárbara? Vá lavar uma roupa ou
cozinhar alguma coisa para nós! ”, ele diz. Eu poderia cozinhar, tenho minhas
especialidades e halfling assado é uma das minhas preferidas.
Afiar o machado passou a ser meu exercício
contra a ansiedade. Meu coração é de urso e tem uma coragem impaciente de
demonstrar força. Existem histórias interessantes de coisas que eu fiz com três
anos de idade que metade desse grupo temeria imitar, mas eu não perderia meu
tempo contando isso para esses péssimos ouvintes. Também não quero correr o
risco de ser considerada uma propagadora de lendas exageradas como o anão.
Eu não digo isso muitas vezes, mas eu não
sou uma bárbara qualquer. Minha xamã me disse isso. Disse-me que, um dia, eu me
harmonizaria com Zoe, o deus das feras e, então, nenhum desafio seria páreo
para mim. O espírito do urso lateja em meu coração. Esses que se dizem aliados
e me cercam sabem de pouca coisa, por isso anseio pelo dia em que irei
surpreender eles.
Qualquer coisa que estiver no final dessa
viagem será grandiosa demais e se meu machado prevalecer entrarei para as
hostes eternas dos guerreiros da minha tribo. O primeiro bárbaro que encarou
Noroi e as distantes terras de Ankhashadalûr e saiu com vitória. Meus pais,
seja em que mundo eles estiverem, se arrependerão muito por terem me abandonado
no meio do mato.
É por isso que afio o meu machado. Ele e
eu precisamos estar mais do que bem preparados para o que há de vir. Orcs,
bruxas, bárbaros de dentes serrilhados, gigantes e dra...
(...)
Alguma coisa bateu no casco da barcaça.
Finalmente é hora da treta!
***
Cada
centímetro do Apuana rangeu quando seu corpo inteiro foi abraçado por um par de
garras ferrenhas. Nos ouvidos mais criativos, o barulho soou como um gemido de
sofrimento da grande embarcação. Os heróis sentiram seus corpos cederem e serem
arremessados contra a gravidade quando a criatura escamosa impôs o peso de seu
torso sobre a construção antiga com a intenção de fazer chovê-los para dentro
de sua boca de dentes afiados.
Jack
agiu acrobaticamente e foi o único que alcançou a borda contrária à garganta
dracônica que gorgolejava o ácido pronto a ser aspergido. Curvou-se em
segurança e assistiu cada um de seus aliados tombar, se arrastando
involuntariamente ao encontro do dragão negro que havia surgido da água suja
abaixo do Apuana. Suas asas se projetaram para fora do rio Aomame e criaram uma
cortina negra de escamas e água a jorrar feito cachoeira de seus tenazes.
Freya segurou-se no mastro que
rangia melancolicamente e conseguiu alcançar o braço de Aramyn que caía sem
controle ao encontro de seu final. O clérigo sentiu os ossos da mão direita se
quebrarem resistindo ao esforço brutal da bárbara em mantê-lo pendido em
posição vertical, mas aquela situação era melhor do que deixar-se despedir da
segurança proporcionada pela aliada. Ele olhou o resto de abismo que o separava
do poço de ácido que se formava na garganta da criatura e notou que Ragnar não
havia tido a mesma sorte de ter alguém tão próximo para auxiliá-lo.
O
anão era uma pedra rolando pelo convés. Sua armadura arranhava as tábuas do
Apuana enquanto ele despencava em direção à criatura. Num último surto de
esforço, arrancou seu machado e o enfiou sem dó na madeira. O chão rompeu-se,
cedendo ao golpe de Ragnar e a arma lhe serviu de gancho e segurança. Estava a
poucos metros da primeira fileira de dentes sujos e amarelados do dragão negro
e pôde notar a língua sibilante, como a de uma serpente, dançar pela boca da
criatura, ansiosa pelos petiscos que lhe seriam jogados. Avaliou a situação e
buscou uma maneira de livrar-se daquela disposição. Tudo o que pôde ver foi
Khali, apoiado no timão.
Khali
tentava buscar alguma posição adequada para efetuar um disparo. Impossível
naquela situação. O máximo que podia fazer era esperar a ação de alguém ou, se
tivesse habilidade e fosse audacioso o suficiente, saltaria em direção a outros
obstáculos e ajudaria seus aliados de alguma forma. Talvez se o mago pudesse
conjurar a magia certa. Vasculhou os arredores e tentou notar Varuz.
Infelizmente, o encontrou numa posição não mais favorável.
O
mago da guerra sustentava seu próprio peso nas bordas da entrada do convés inferior.
Mal ele havia notado a aparição da criatura enorme que saía do rio, saltou, à
passos longos, em busca de um refúgio e, por pouco o alcançou a tempo
suficiente de não tornar-se uma presa fácil do predador dracônico. Vasculhou
sua bolsa de componentes mágicos, mas convenceu-se que nenhuma magia seria tão
efetiva naquele momento. A criatura gorgolejava líquido corrosivo que logo
seria cuspido. Precisava se manter de pé e com a mente sã para que suas magias
fossem eficazes. Lutou contra o peso da gravidade e se jogou para dentro do
convés inferior, onde permitiu-se cair e ser arrastado até se encontrar com a
parede lateral. Seus aliados estavam lá fora, prestes a serem alvos de uma
chuva de ácido. Temeu possíveis fins, mas precisava concentrar-se na magia
correta.
As fendas que separavam as tábuas
que se estendiam formando o convés superior eram finas demais. Elas provaram
ser ineficientes quando Azanthe afundou seus dedos nelas em busca de apoio para
não se deixar ser levado pela armadilha do dragão negro. Por mais que seus
esforços fossem intrépidos, dedo por dedo tornava-se um peso insuportável.
Inevitavelmente, a batalha que ele mantinha contra a gravidade estava sendo
perdida e seus aliados assistiram o arqueiro deslizar sobre o chão de madeira
ao encontro da garganta corrosiva.
O dragão negro sentiu as mãos de sua
iguaria segurarem uma de suas presas numa última tentativa de não se deixar
afogar em seu veneno. Sem mais esperas, regurgitou e a baforada se estendeu
letal, aspergindo cada ponto de alcance com o líquido corrosivo que adentrou
fissuras, manchou a pele dos heróis e levantou um repentino vapor fétido,
preenchendo o campo de batalha com o terror que é espalhado pela simples
presença de um dragão. As garras da coisa se aprofundaram nas bordas do Apuana
lascando a madeira frágil, enquanto a mandíbula mastigava um Azanthe indefeso,
imerso em dores inimagináveis.
Uma sombra veloz quebrou a rotina de
sucesso do dragão. Saltou de cima da cabine e agarrou seus chifres tortuosos.
Um capuz desentrelaçou-se guiado pela ventania e a face do ceifador mostrou-se
fria e imutável enquanto enfiava a finíssima lâmina entre as escamas que
protegiam a cabeça da criatura.
“
Que a morte seja bem-vinda, fera. ” – sussurrou o meio-orc.
A
dor adentrou aguda e insuportável e o dragão boquiabriu-se num urro lamentável
que ecoou pela floresta pantanosa. As garras, agora acostumadas a estarem
fincadas na madeira da embarcação, se desvencilharam e o corpo de Apuana
equilibrou-se horizontalmente novamente, após alguns socos de água e corpos de
heróis que foram jogados no ar enquanto tentavam se recompor e ficar de pé.
Azanthe buscou uma fuga dos entredentes do dragão e deixou o corpo cair inerte,
ainda exalando o vapor tóxico do hálito dracônico.
Jack
se segurava na borda posterior da embarcação e após o baque e o abandono do
peso do dragão sobre o convés, sentiu seu corpo voar e tomar distância do
Apuana tendo um fim molhado, mergulhando nas águas barrentas do rio Aomame.
Notando
que o dragão se arrastava para seu esconderijo aquático, Freya largou a mão de
Aramyn que se mantinha ajoelhado num chão marcado pelas nódoas tóxicas do
gorgolejar dracônico, e investiu despreocupada com o balancê da embarcação.
Saltou num último momento e seu machado finalmente pôde sentir o sangue quente
jorrar entre as escamas metálicas da garra do dragão negro. Outro urro soou
somado ao ainda insistente eco do anterior, enquanto a enorme garra esbofeteava
a satisfeitíssima bárbara que foi jogada metros convés adentro esboçando um
sorriso sádico de missão bem-sucedida.
O dragão contraiu suas asas numa
visível tentativa de alçar um voo repentino. Com a segunda garra, tentou
agarrar o arqueiro debruçado no chão, mas Ragnar interpôs-se com seu escudo e
seu corpo contra a ferrenha arremetida.
“
Aramyn! O grupo precisa das bênçãos! “ – gritou o anão, feito um baluarte de
adamante intransponível.
O clérigo de Splendor concordou,
firmou seus pés e suas preces enquanto se levantava e empunhava um escudo
surrado pelos inúmeros usos. A oração inundou os ouvidos de todos os aliados e
a chama de fervor foi aglomerada pelo acompanhamento devoto de Ragnar.
Azanthe
tomou o primeiro fôlego real depois da ameaça dracônica e a dor amenizou quando
as palavras açoitaram sua vontade e domaram seu coração. Ele se ergueu com o
arco em mãos e retesou a linha esperando o momento certo para um disparo
preciso. Ainda agarrando-se nos chifres do dragão, o ceifador pareceu entender
o que o arqueiro esperava. Enfiou a
lâmina mais uma vez entre as brechas da armadura de escamas e saltou de cima do
dragão afim de alcançar o mastro e se distanciar da luta.
O dragão sentiu a agulhada mais uma
vez enquanto o sangue quente lhe escorria pela cabeça e inundava sua garganta.
Jamais haveria de ter presumido uma quantidade de dano tão intensa em tão pouco
tempo. Observou a silhueta do ceifador distanciar-se e tentou abocanhá-lo em
pleno ar, mas foi surpreendido por uma flecha certeira e escaldante de Azanthe.
Tomar
fôlego, agora, era algo quase impossível para a enorme criatura. Ela sabia.
Tinha que desistir. Suas asas já estavam prontas para isso. Mais tarde buscaria
uma investida mais bem planejada.
***
Enquanto isso, o Apuana abandonava
Jack nas águas correntes.
“
Malditos! Eu nunca deixo vocês para trás! Sempre faço o melhor que posso para
salvá-los! Se eu tiver uma poção em mãos, vocês sabem, eu não a nego para um
aliado! Vocês precisam de mim para vencer isso tudo! Como ousam esquecer o
herói depois de tudo que eu já fiz? ”
Uma corda foi lançada e o halfling
segurou-se firmemente nela.
“
Apenas se ocupe em voltar para o Apuana, herói. ” – avisou Khali satisfeito
pela situação.
“
Seu índio desgraçado e falador! Pelo menos dessa vez seus olhos estavam mirando
a direção certa! ”
Tomou impulso e subiu pelas cordas
antes que as coisas que viviam no interior do rio Aomame o alcançasse.
***
O dragão tomou impulso, engolfando
uma ventania violenta embaixo das asas. Ele poderia se recuperar bem mais
rápido que suas vítimas e, então, retornar para uma vitória mais eficiente. Foi
imerso nessa certeza que a criatura presenciou o vórtice elétrico disparado por
um Varuz de mãos envoltas num arco relampejante. O mundo trovejou quando a
corrente elétrica se prendeu nas escamas do enorme lagarto e o circundou arrebatando
as camadas frágeis de cartilagem que uniam os tendões das asas responsáveis por
alçar voo. A ventania reunida para erguer e impulsionar o dragão no ar,
dissipou-se, rasgando a cortina couraça e inutilizando suas asas.
Em
instantes, o corpo elétrico do mago de guerra abandonou a fúria arcana e
tornou-se um humano desprovido de defesas mágicas pelos recorrentes segundos
até que sua mente pudesse escolher a próxima magia a ser conjurada.
O
dragão não tinha mais suas asas, mas suas garras continuavam afiadas. Saltou
contra as árvores, agarrou-se aos troncos e serpenteou adentrando o amontoado
de galhos que pouco a pouco ofuscava sua presença. O ego da criatura foi
rasgado em pedaços, o rancor preencheu sua garganta com mais um de seus vômitos
corrosivos. O dragão negro sabia: mais um de seus sopros e, parte daqueles
intrusos execráveis sucumbiria, por isso, pela última vez, preencheu o ar com o
líquido corrosivo.
Ragnar e Aramyn entoaram suas
orações e cobriram seus corpos com resistência divina, por isso, adiantaram
seus passos e ergueram seus escudos em frente aos demais, como uma muralha de
aço intransponível. O líquido corrosivo choveu como se caísse de uma nuvem
tóxica. Jack, ainda molhado, e o ceifador, ainda deslizando pelo mastro central
do Apuana, saltaram para localizações distantes da chuva e não se preocuparam
com o ácido. Freya sentiu os pingos corroerem sua pele e ignorou a dor num
grito embrutecido de pura resistência bárbara. Varuz presenciou a enxurrada
gotejante de perto e seu corpo cedeu ao hálito destrutivo da criatura,
contorceu-se de dor e seus joelhos alcançaram o chão na tentativa de um
equilíbrio suficiente para não despejar-se no convés.
Azanthe
deslizou seu corpo para trás da proteção improvisada de Ragnar e, mais uma vez,
esperou o momento certo. Quando o escudo do anão desceu e a baforada se
dispersou em formato de fumaça enegrecida, o arqueiro disparou certeiramente. A
flecha assobiou enquanto suas penas confrontavam o ar e o disparo calculou o
tempo exato em que a pálpebra escamosa do dragão negro iria se abrir fazendo
com que a flecha se enterrasse profundamente no olho.
O dragão negro desequilibrou-se
enquanto emitia o terceiro urro grotesco de dor. A presença aterrorizante
afastou todas as criaturas que cercavam as redondezas e o sofrimento pôde ser
ouvido até onde se duvidava poder escutá-lo. As garras do dragão se esforçaram
para manter-se firmes na escalada e, por fim, parecia que elas não iriam
conseguir.
Em
seu último resfolegar, a cauda do dragão negro dançou feito uma serpente
pisoteada na cabeça, chicoteou a água e, enfim, encontrou um alvo de destino.
Varuz parecia ainda confrontar a dor corrosiva quando a cauda do lagarto lhe
ameaçava a fronte. Aramyn não pensou duas vezes e saltou contra o destino do
mago, sendo atingido pelo último golpe e arremessado para fora do Apuana ao
mesmo tempo em que o rio Aomame devorava o dragão.
***
Relato:
Aramyn
Está frio. Eu procurei harmonizar
minha fé no Templo dos Anjos de Pedra, mas, continua frio. Caminhei pelas
planícies de Azran e exorcizei a praga em busca de renovação, mas aonde quer
que eu tenha pisado, continua frio. Me despedi para sempre de amigos,
reconfortei meu coração com a certeza de que poderia proteger outros e,
inevitavelmente, ali estava ele. O frio.
Minha
primeira recordação é a do vento gélido batendo em um rosto infantil, regado
por lágrimas. Eu estava sujo, meu corpo ainda doía, apesar das magias de cura
conjuradas pelos clérigos que me resgataram embaixo dos escombros. O mármore e
o granito que me abraçaram e resolveram não esmagar o meu frágil corpo. Eu
olhava para aquele amontoado de ruínas e tentava saber o que eram lembranças.
“Você
está bem, garoto?” – perguntou-me um paladino. “Sou Steins, um dos
representantes da corte de Azran. Você teve sorte. Está a salvo. Consegue se
lembrar do teu nome?”
Eu não me lembrei. Eu nem consegui
soletrar um não.
“Tudo
bem, você ficará bem, criança. Eu te levarei para Asaron. Você vai gostar do
lugar.” – avisou-me Steins ajoelhado em minha frente como um nobre cavaleiro
com a intenção de fitar-me os olhos chorosos de criança.
“Você
lembra de alguma coisa?”
Nada. Mas meu silêncio continuou
sendo a única resposta. O paladino suspirou entristecido pela tragédia. Ele
recompôs-se rapidamente e se levantou olhando para o mesmo horizonte arruinado
que eu deslumbrava.
“Lembre-se,
Aramyn, este foi o seu reino. Coisas reais o destruíram. Essa mácula vai se
propagar pelo restante da era e o que sobrar de nossas esperanças.” – falou-me
Steins e, não me preocupei com o nome que ele havia me chamado.
Me
senti menos criança. Me senti como uma tocha fraca no meio de uma geleira.
(...)
O
que é isso ao redor de mim?
Água.
Cada
fresta da minha armadura foi inundada e agora o líquido sujo pressiona o meu
peito e tenta invadir minha boca. Eu não conseguiria fazer muita coisa contra
esse ambiente... frio. Alcancei o fundo do rio em instantes e senti algo arranhando
minha perna.
Mortos-vivos.
Eles estão em todos os lugares. Eu saberia reconhecer seus toques gélidos mesmo
cego. Eles me puxam para a morte irônica do exorcista: inundado pelas águas que
abrigam um cemitério de cadáveres famintos.
Todas
essas criaturas juntas formam o frio dentro de mim e a pequena brasa que nunca
se extingue por pura teimosia de ser a única em um lugar rodeado de gelo, é a
coisa que me mantém vivo. Mas a brasa começa a enfraquecer, acompanhando meu
fôlego. Meus olhos só enxergam o turvo da água barrenta, meu corpo não consegue
se mexer ao mesmo tempo que minha mente se evapora, inundada por lembranças.
Sinto as criaturas aos meus pés me
puxarem para baixo. Sinto uma força involuntária puxar-me para cima. Livro-me
do cemitério e minha boca alcança o ar livre de água fria. A bárbara está ali,
junto com os outros, em um intermédio que eu ainda não consigo diferenciar se é
um momento real ou parte das minhas lembranças.
Seguirei
vivo.
CONTINUA...
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