Um redemoinho de penas brancas ensanguentadas rodopiava pela câmara devastada. O ser de pele esmeralda não continha os ferimentos das lâminas rubras que o mutilavam. Ele morreria ali, ao lado de seus irmãos já derrotados.
- Quem são vocês? - ganiu o arconte, estancando um de seus graves ferimentos abaixo do peito esquerdo.
A dupla de albinos siameses não respondeu. Salvo a risada zombeteira de um dos irmãos e o resvalar do aço de suas lâminas, os invasores não emitiram qualquer palavra, apenas agiam, liderados por uma misteriosa presença manipuladora da escuridão responsável por dissipar as bênçãos celestiais que continham naquela câmara.
O primeiro dos gêmeos pálidos avançou numa acrobacia ofensiva que obrigou o arconte à defender-se com sua espada bastarda, abrindo o caminho para a lâmina certeira e fatal do segundo irmão. A luz da auréola do arconte, já tênue devido ao enfraquecimento do celestial, apagou-se imediatamente enquanto a cabeça de seu portador era decepada pela lâmina rubra.
- Vocês fizeram um ótimo trabalho, irmãos - indagou a voz que veio das sombras na masmorra.
O primeiro dos irmãos pálidos assentiu austero, como um soldado ao receber um elogio, insólito e decidido que não havia feito mais que sua obrigação. O segundo, rosnou como uma hiena e ganiu enquanto ria diabolicamente, satisfeito com a congratulação.
Acheron |
Sem pressa, a voz das sombras tomou forma. Uma silhueta macabra que saía da escuridão como um mergulhador saindo de uma poça de piche, mas sem qualquer gota negra na pele. Era um humano de pele alva, inteiramente calvo, trajando a vestimenta dos magos vermelhos, empunhando um cajado sangrento onde orbita um olho monstruoso. Uma tatuagem avermelhada dava os contornos de uma figura dracônica que rodeava sua nuca e o topo de sua cabeça e que brilhava fracamente, como se tivesse algum poder medonho que precisava se libertar.
Junto à presença escura do mago vermelho, havia aquela existência fria e mórbida em sua volta, quase viva e consciente, como, de fato, era. O mago vermelho ergueu ambas as mãos como quem louva um céu escuro e entoou um cântico de necromancia.
Acompanhando sua voz, somaram-se outras centenas. Eram murmúrios do além, criaturas etéreas que saíram do corpo de seu dominador e levitaram, em voos tão repentinos como uma rajada de ar frio. As aparições fustigaram os corpos celestiais jazidos no chão e amaldiçoaram suas existências. Os arcontes, derrotados pelas lâminas rubras, definharam até tornarem-se sangue púrpuro, que apodreceu e coagulou, tornando-se vítreo. Migalhas de estilhaços negros.
Como se pudesse impor sua vontade contra o frio, o mago vermelho o manipulou na forma de fortes rajadas que varreram o sangue-vítreo e os fez rodopiar até tomar uma forma ondulante que fundia-se, estilhaço por estilhaço, até formar uma parede de pura escuridão profana.
Nesse minuto, saía de seus esconderijo um halfling enclausurado num manto de lâminas. Seus passos naturalmente abafados, incapazes de emitir qualquer barulho.
- Mais um véu, Acheron? Precisamos mesmo de tanta precaução assim? Tenho certeza que eu, sozinho, daria cabo ao grupo inteiro. Um único rodopio e as cabeças destes rolariam no chão.
- Você é brilhante, Jack Turner. É uma sorte que tenhamos você no grupo e, certamente, não duvido que possa fazer aquilo que me diz, mas, não é hora. Não é hora de subestimar nossos inimigos e nem é hora de todos morrerem - respondeu o mago vermelho.
- Não entendo! Você mesmo não me explicou que eles haviam estragado seus planos mais de uma vez? - precipitou-se o halfling.
- Faz parte da sapiência de um humilde servo ser paciente. Eles fizeram isso, mas, enquanto faziam, trouxeram-me uma inúmera quantidade de armas a que me disponho agora.
- E onde estão essas… armas? Eu não sou digno de empunhá-las? Quero-as agora!
- Seria um desperdício em suas hábeis mãos, meu caro Jack - indagou Acheron com um sorriso convincente no rosto - além do mais, você é uma criatura perfeita do jeito que se encontra. Se desse a ti minhas armas macabras, elas te consumiriam e arrastariam parte de sua consciência para a completa escuridão e, eu sei, você deseja continuar a ser você mesmo.
- O que fazem, então, essas armas? Diga-me ou desconfiarei de suas intenções para comigo.
- Eu não ousaria esconder qualquer coisa de meu mais precioso aliado. Direi a ti algo importante: além da presença fria de Flogisto, desenterrada das Cavernas de Vento Cortante, além do olho da deusa arrancado das tumbas de Gerad e acima, até mesmo do conhecimento raro obtido através do Necronomicon, tenho em minha posse a última e mais poderosa das armas.
- A última e mais poderosa arma? Fala como se o que tem em posse fosse mais poderoso e eficiente do que a mim! Eu duvido muito…
- E não é, meu querido Jack. Não é. Você é tão importante que, como arma, não pode ser usado aqui, nessa masmorra. Falo de outra coisa! Algo que foi despertado de uma prisão milenar.
- Você fala daquele mártir lamentoso, feito de máscaras de carne.
- Exatamente Jack. Como sempre você me mostra ter uma mente aguçada e perspicaz.
- Seja como for, adianto-lhe que essa coisa não chegará a ser usada. Azlean será mais do que o suficiente para derrotá-los. Eles teriam, sim, chances de derrotar o filho de Garyx, caso o grupo deles ainda tivesse meu nome na lista. Infelizmente, perderam a minha confiança aos poucos, insistindo nessa tentativa idiota de salvar o mundo como missão divina, enquanto seus deuses enfiavam o pau nos seus cus e baixavam suas guardas para o inimigo que lhes arrancava a cabeça bem na hora do gozo.
- Eu não conseguiria usar de melhores palavras para descrever o infortúnio deles, meu caro Jack.
Acheron, Jack e os pálidos gêmeos atravessaram a muralha de vidro púrpura com a naturalidade de alguém que atravessa uma fina cachoeira. Eles perturbaram a escuridão natural da masmorra, impregnando-a com as sombras vindas do plano dos espectros.
- Essa é a última câmara, não é mesmo? - interrogou Jack.
- Exatamente. A derradeira. - respondeu Acheron.
- Estou curioso para saber que tipo de desafio você colocará nesta, uma vez que todos os anteriores me pareceram gradativamente um mais poderoso do que o outro. Quem poderia ser mais efetivo do que Azlean?
- Meu caro, Jack. Sempre há algo mais forte que pode ser enfrentado. Suspeito que a melhor arma contra o inimigo está além do que pode ser amaldiçoado, incinerado ou decapitado. A fraqueza desses, talvez seja, exatamente, a lembrança familiar e o desperdício de confiança em um antigo aliado valoroso. Alguém que, por mera aparição, provará ao grupo deles quem realmente está vencendo essa batalha e terminará por sair vitorioso na guerra.
- Por mais perspicácia que eu possua, devo confessar que estou sem nada a entender.
- Ah! Mas você vai entender, meu caro Jack… você vai entender.
A última cortina de sombras se desfez. A paisagem estava emoldurada por pares de estátuas angelicais que resistiram à queda de um templo construído no céu e ao fundo a presença de um último guardião banhado em luz aureolar.
- Puta que me pariu! Pelo deus decapitado e a rola em sua bunda… eu não esperava por ele, maldito Acheron. Não espera mesmo!
[...]
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