quinta-feira, 20 de abril de 2017

A Reunião - Parte 01

O velho rabugento jogou um saco de peças de ouro em cima do balcão do mercador.

- Esses tomates estão ficando cada vez mais caros - reclamou o velho, analisando a fruta vermelha e pouco suculenta que tinha em mãos.

- Sinto muito, senhor. Sabe, você deve estar atualizado sobre esses acontecimentos que estão ocorrendo no mundo, então…bem, eles dificultam muito nosso comércio, os lavradores não querem mais viver isolados em suas fazendas - o mercador tentou se explicar.

- Não estou sabendo de nada. Tenho muito trabalho na minha taverna, não posso me ocupar com fofocas vindas de outros reinos.

- Os deuses queriam que fosse fofoca, meu caro senhor. Mas, não é. E mesmo desavisado, você, sendo o dono de uma taverna, já deve ter ouvido algo sobre a Cidade de Carne.

- Sim, eu ouvi, mas isso não é assunto para mim e ficaria grato se parasse de falar sobre essas coisas comigo.

- Bem… como queira, senhor - desculpou-se o mercador um pouco envergonhado.

- Tudo bem. Você não é o primeiro. Aí estão suas peças de ouro, aqui estão meus tomates. Até a próxima.


O mercador observou o velho ranzinza distanciar-se. Conhecia-o. Era Barghaman, o dono da taverna do Dragão Uivante. Muitos conheciam sua história: ele havia sido um campeão, um dos bons, mas agora mantinha-se longe de qualquer encrenca. Poucos filosofavam sobre o motivo de Barghaman ter abandonado sua vida de aventuras, mas aqueles que o faziam, sabiam bem quantos amigos e amores ele havia perdido nesses tempos em que ele próprio desafiava o destino. O tempo o fez rabugento, um velho acostumado a ralhar quando algo lhe incomoda, mas, ainda sim, um sujeito de bom coração que tentava ajudar a quem podia sem pedir nada em troca.


A gota d’água - e o estopim para sua velhice rica em rabugência -  foi a despedida do garoto que, por tanto tempo, Barghaman depositava um instinto paternal. Aensell era seu nome e muitos se lembram dele - inclusive aqueles governados pela Dragocracia - o jovem teimou com seu destino e largou o porão seguro e arrumado da taverna para caminhar pelo mundo em busca de respostas. E encontrou essas respostas - encontrou-as tanto que seu nome tornou-se sussurro constante na boca dos feiticeiros da Ego Draconis:


“Aensell, o  estudioso da Teoria do Acaso”, era seu título.


O garoto encontrou o caminho, seu velho idiota. Barghaman pensava consigo mesmo, mas isso não curava sua indignação. Enquanto andava pelas ruas, de volta à sua taverna, o velho foi surpreendido por uma gritaria repentina:

- Senhor Barghaman! Cuida-te! Há pessoas estranhas na Dragão Uivante! Sua taverna está ameaçada! - contava-lhe um conhecido hóspede da taverna.


Pingos vermelhos caíram no chão de mármore que compunha o comércio. Era o tomate, esmagado involuntariamente pelo braço de metal de Barghaman. Aquilo era a sua marca: uma braçadeira que cobria-lhe metade do braço e o tornava extraordinariamente forte. Havia uma história por trás daquele braço de ferro. Uma história que não tem tempo de ser contada.


Barghaman, o dragão uivante


Barghaman correu até a Dragão Uivante, a mão de ferro trêmula, preparada para esmagar um inimigo, caso fosse preciso. Ele chegou e se deparou com um ostentoso guerreiro de armadura negra como ébano em frente à porta de sua taverna, como uma gárgula vigilante, impedindo a entrada de visitantes.

- Mas, quem diabos é você, sua maldita aberração? - ralhou Barghaman ao se aproximar do guerreiro monstruoso.


Monstruoso, sim. Um humano de pele pálida, marcada por imensas cicatrizes que lhe partiram um olho, ambos os lábios e deixaram seu rosto com o aspecto de algo a ser temido. Os cabelos brancos eram pontiagudos como vidro e pareciam afiados. Sua presença era incômoda e qualquer pessoa que se aproximasse sentiria um frio na espinha. Tudo isso, somado à sua estatura quase gigante, auxiliavam para torná-lo um vislumbre medonho.


O gárgula de ébano não falou, ao invés disso, afastou a capa que lhe cobria os ombros e tirou do esconderijo uma apodrecida cabeça sem olhos que pertencia a um gnomo muito velho. Ele empunhou a cabeça esfacelada como um clérigo empunha seu símbolo sagrado e esperou alguma reação.


Arafat, coração gélido
Barghaman se viu mais surpreendido que antes. Quase saltou de medo quando ouviu uma voz projetar-se de onde parecia ser da cabeça apodrecida.

- Este é o dono da taverna, idiota! Deixe-o entrar! - recomendou a cabeça.


Naturalmente, o gárgula de ébano permitiu sua passagem. Barghaman engolia a seco quando viu a reunião de pessoas estranhas dentro de sua taverna. Podia ter desistido de lidar com isso, mas…

- Não, não, não, não! Aqui não! - ralhou o velho.

- Seja bem-vindo, senhor Barghaman. Esperávamos ansiosamente por você! - apresentou-se, sem rodeios, um halfling saltitante, usando uma mesa como palco.

- Sobre o quê isso se trata, Javert? Seu maldito fanfarrão! - reclamou Barghaman enquanto passava os olhos pelos arredores de sua taverna.


Havia indivíduos lá que, notavelmente, pertenciam a todos os cantos do mundo. Como um
Javert, conta-história
circo que reúne uma dezena de ilustres bizarrices.

- Ora, não está claro? Estes recrutas estão se preparando para o que está por vir, é claro, meu velho. - explicou Javert.

- E o quê está por vir? - perguntou Barghaman tentando controlar seu nervosismo.


Houve um espaço de tempo silencioso antes de Javert responder:

- A coisa, Barghaman. A criatura feita de carne!





***


O gato preto deslizava pelas pernas do estranho que falava:

Makai, o monge-cego
- Nós, os monges do silêncio, vendamos nossos olhos pois o mundo, assim como vocês veem, é feito de cor e ilusão. Tudo trata-se da projeção de luz e a luz nos engana. Quando nos desfazemos do sentido da visão, não somente nossos ouvidos ficam mais aguçados, como também desenvolvemos um sexto sentido capaz de perscrutar longas distâncias e nos noticiar perigos - este era o discurso do monge de olhos vendados, emitido em palavras confortantes enquanto bebia do chá que lhe era servido em xícara de porcelana.


O gato preto virou vapor e logo refez-se em cima da mesa onde todos mantinham a atenção.

- Devo alertá-los que, nunca, em momento algum da minha vida, senti algo tão presente e, ao mesmo tempo, morto e vingativo, como a coisa que marcha em direção à essa cidade-torre. Ela contamina o ar, tornando-o mais denso. Recolhe da natureza a vida e a transforma em ruína sedenta. Percorre os campos, tornando-os inférteis e rouba a alma daqueles que insistem em encará-la. Essa é a maior ameaça desse mundo. - indagou o monge cego.

- Veja bem…err… quero dizer: ouça bem, Makai, ouvi histórias da Cidade de Carne e elas não contavam sobre males menores. Se é difícil encará-la olhando-a como um casulo, imagina quando nos depararmos com o interior cavernoso e infernal? É a visão dos nove infernos juntos, em plano material, rasgando-nos a carne e destruindo nossas esperanças - completou Javert.

Aldebaran, Incêndio e Volúpia
- Que o inferno venha, junto com todas as suas criaturas! Eu e Arafat enfrentamos muitas dessas proles nas terras ermas!


O homenzarrão esfacelado pigarreou sério, tirou a cabeça do cadáver de seu cinto e mostrou a todos os presentes.

- Sim, sim, claro. Eu, Arafat e… a cabeça do Hidro, enfrentamos muitas dessas proles nas terras ermas.


Arafat, o guerreiro de coração gélido ficou satisfeito com a correção e guardou a cabeça de Hidro atrás da capa.

- Incêndio e Volúpia queimaram a carne de mais de uma centena dessas aberrações e mais milhares entre as hordas trôpegas. Sei onde ferí-las, onde causar dano. Sei como fazer essas coisas sofrerem e também sei como destruí-las de vez - explicou o guerreiro, enquanto empunhava um par de lâminas que emanavam chama eterna e ardente.


Este era Aldebaran, um caçador das terras ermas de Nevaska, portador de espadas flamejantes. Incêndio e Volúpia tornavam-se ferozes em suas mãos e ardiam com mais fulgor que nas mãos de qualquer outro guerreiro.

- Do que vocês estão falando? - indignou-se Barghaman - Conseguem notar a besteira que vocês estão prestes à fazer? São aventureiros! Conseguem viver onde bem querem! Salvaram mais vidas que os Senhores Draculean, com certeza têm onde ficar e evitar toda essa guerra. Porque estão aqui, esperando a morte?


Todos os heróis que estavam ali, na Dragão Uivante, ficaram repentinamente em silêncio.

- Draganathor é problema da Dragocracia. São dragões! Reis dragões! … eles já são fortes o suficiente sozinhos, mas não lutarão desacompanhados, não! Eles passaram os últimos anos escravizando a mente de inocentes, criaram seus vassalos para morrer nessa luta por eles. Os filhos desses dragões-reis são alguns dos seres mais poderosos de todo mundo! Vocês acham que eles precisarão da ajuda de vocês? Vocês ouviram algum chamado? Estejam longe dessa luta o quanto puderem! Eu conheço a Dragocracia… e vocês vão lutar sozinhos. Eles não vão agradecer. Vão manipular suas mentes e escravizá-los como premiação e ainda farão com que esta seja a melhor escolha!


Barghaman sentiu o leve toque de uma mão sobre seu ombro. Era uma mão negra como carvão e parecia pedir, com educação, para que o velho se aquietasse.

- É a sina de todos os heróis, senhor Barghaman - falou o estranho, tirando o capuz da cabeça e mostrando a face negra de um drow com olhos profundamente púrpuros - nós sempre lutamos sozinhos. Nos arriscamos de forma egoísta, como se quiséssemos que nossos nomes, através de nosso sacrifício, fossem ecoados pela eternidade. Você é um, Barghaman, o dragão uivante, mas foge disso.


Barghaman ficou atônito. As palavras que ele receava ouvir - você é um herói - foram pronunciadas, como se invocadas para convencê-lo de algo.

- Quem é você, afinal, elfo negro? - perguntou Aldebaran, com Incêndio na mão - Seu rosto não me é estranho, criatura!

Lathandhril, o drow
- Sou Lathandhril, um dos três reis das terras de Rivergate. É estranho pronunciar o meu nome, todos na minha terra me conhecem somente pelo título de “O Drow” - o elfo negro voltou-se para Barghaman, que ainda permanecia preso na própria consciência - eu tive o prazer de conhecer o seu filho, Barghaman. Aensell é um ótimo garoto, o mais inteligente humano que já conheci.


O nome do garoto fez Barghaman acordar:

- E onde ele está agora? Porque não veio com você?

- A luta dele é essa que esperamos e tantas outras. Agora mesmo, sei que ele faz algo que está além da nossa capacidade ou além de nosso destino - respondeu o drow.

- Eu e o Arafat conhecemos o moleque. Criatura boa. Bitolado, mas um aliado sem igual, isso eu posso afirmar - Aldebaran complementou.


Uma lâmina negra riscou o chão. O som metálico foi atípico e fez com que todos os presentes olhassem para uma mesa adiante.

- Esse nome… Aensell. Conheço ele de onde vim. Esse nome era bastante pronunciado. O estudioso do acaso, não é mesmo? - perguntou a voz feminina, ainda oculta por um capuz.

- Esse mesmo, minha jovem! - respondeu Javert, como se quisesse, à todo custo, juntar mais personagens à roda de discussões - ...e a quem pertence essa voz tão magnífica?


A mulher afastou o capuz do rosto e mostrou ser uma jovem de beleza única e estrangeira. Cabelos curtos eram a moldura de uma face perfeita de olhos que sempre pareciam distantes. O vestido curto era uma silhueta fina e sinuosa que se debruçava sobre suas curvas e culminava na lâmina longa feita de vidro negro em sua mão.
Alexia Vinland, Senhora da Torre da Necromancia

- Sou Alexia Vinland. Eu não sei se sou conhecida ou odiada aqui em Draganathor, menos ainda sei se vocês conhecem o meu título de senhora da torre da necromancia em Mordae, embora o termo “senhora” não me caiba perfeitamente - ela avançou em passos lentos, quase maliciosos, em direção à mesa de discussão - sou também a portadora da lâmina das bruxas, a espada que me foi oferecida, por direito, pela minha mãe.

- Uma representante do magistério de Mordae? - surpreendeu-se Javert - pensei que a Ordem Arcana do reino da magia havia decidido manter-se alheia à essa guerra na torre da Dragocracia.

- Na verdade, não sei - respondeu Alexia, pensativa - sou muito novata nesse tipo de coisa. Talvez tenha deixado de ler alguma lista de regras, mas, só sei que estou exatamente no lugar em que deveria estar.

- Essa lâmina que você diz que carregar - intrometeu-se Makai, o monge cego - ela emana uma mácula terrível. Não é um item que pode ser portado por heróis. Foi forjada por um inimigo.

- Disso bem sei, ceguinho. A lâmina das bruxas foi criada a muito tempo e, por muito tempo, pertenceu a minha mãe. A história desse artefato está além a compreensão de vocês. As quatro bruxas mais poderosas que rondam este mundo foram as responsáveis por…


Alexia não teve tempo de continuar seu discurso. Sentiu uma mão fria estreitar-se no pescoço e seu corpo ser erguido com  facilidade:

- Mas… mas o que é isso? - Alexia esperneou tentando livrar-se do guerreiro de face mutilada.

- Acalme-se, Arafat! Solte ela, grandão! - recomendou Aldebaran, sem sucesso.


A ira de Arafat era tamanha que, pela primeira vez, todos os presentes notaram aquele rosto austero transformar-se em uma presença furiosa.

- Solte-me aberração! Você não sabe com quem está lidando! - Alexia ergueu a lâmina das bruxas e uma chama negra ferveu no vidro.


Um tentáculo de sombra, como uma serpente, entrelaçou-se pelo braço de Arafat e, sinuoso, alcançou a orelha esquerda do guerreiro, enterrando-se dolorosamente… mas, Arafat nada sentiu. Estreitou ainda mais a manopla na garganta da bruxa e a esperou sufocar aos poucos.

- M-mi-minha lâmina não funciona contra ele! Que tipo de aberração é você? - aperreou-se Alexia tentando livrar-se do aperto.

- Sua lâmina não funcionará contra um ser criado pelas mesmas criaturas responsáveis pela criação dela. As Baba Yagas, Alexia… o coração gélido de Arafat foi costurado em seu peito por uma delas. Meu amigo, não é um indivíduo qualquer - respondeu uma voz vinda de alguma parte da taverna.

- Quem está falando?

- Solte-a, Arafat. Ela é necessária - a voz permaneceu.

Arafat o fez.


Alexia levou a mão à garganta e descansou o peso de seu corpo sustentando-se numa mesa.

- Desculpe-me pelo meu amigo - salientou Aldebaran - ele não é bom em fazer amizades.

- Uma criatura criada pelas Baba Yagas - Alexia surpreendeu-se e olhou ao redor da taverna tentando identificar, em vão, o rosto de cada um dos presentes - Quem são todos vocês? Como podem existir alheios ao conhecimento dos grandes?

- Não é por falta de tentativa - apressou-se Javert à argumentar - eu mesmo, adoraria ser reconhecido, mas, heróis são aclamados pelo povo, não por seus governantes.

Alexia tomou fôlego profundo e riu. Uma risada que poderia ser descrita como diabólica e cheia de deboche, mas isso não atormentou os heróis ali presentes.

- Hehehe... vocês... vocês são exatamente aquilo que devem ser. Perfeita harmonia entre heróis e vilões, como minha mãe dizia - ela baixou a guarda satisfeita - é como eu disse: eu estou exatamente no lugar que deveria estar.


***


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