A
Torre da Dragocracia fervilhava de pessoas naquela manhã. Milhares de
habitantes, mercadores e aventureiros vindos das terras mais distantes entravam
e saíam dos inúmeros becos, ruas pavimentadas, pontes magníficas, praças
verdejantes ornamentadas com fontes belíssimas, bondes carregados de magia e
estranhos veículos de ferro e fumaça.
O
primeiro vislumbre dessa torre colossal é único na vida. A metrópole que
representa o governo dos reis dragões podia ser vista à longas distâncias, como
um ponto culminante que indicava um norte montanhoso, abraçando um horizonte
banhado por um sol constantemente amenizado por um céu magicamente nublado. Nas
escadarias e patamares, centenas de torres menores se perdiam ofuscadas pela
imensidão que era a maior torre do mundo. Indestrutível, diziam alguns. Misteriosa,
diziam outros: em seu interior havia uma infinidade de masmorras – algumas
delas jamais exploradas.
Aquela
cidade-capital era Draganathor, o maior comércio do mundo e, por isso, estava
sempre repleta de gente. Os pátios, vistos do alto – enquanto a bordo de um
navio voador – sempre estão cheios de pequenas formigas – de todas as raças
possíveis – gritando à pleno vapor, vendendo seus produtos, implorando por
ajuda, praticando seus ofícios, protegendo a fama da grande capital, esmagadas
pela massiva quantidade de alicerces que, com o passar do tempo, tornou-se
ainda maior e mais magnífica – como um quebra cabeça de torres, casas, pontes e
ruas que se aglomeravam em uma centena de andares, todos unidos à maior das
torres.
Dlobok, o draconômico |
Cruzava
uma das pontes, naquela manhã, um par de estrangeiros...
-
Teríamos perdido bem menos tempo se eu estivesse na minha forma dracônica –
reclamou o primeiro encapuzado, uma criatura tão pequena quanto um cachorro de
rua.
-
Você sabe que eu chamaria muita atenção se chegasse na Torre da Dragocracia
montada em um dragão vermelho, não é? – comentou uma voz feminina irônica.
-
Ou se, pelo menos, usássemos a teleportação... – o pequeno continuou a dar
ideias.
-
Dlobok, se quem não nos conhece ouvisse essa conversa, notaria erroneamente que
o estrangeiro é você e não eu. Sabe muito bem que qualquer viajante que adentra
os limites da Torre da Dragocracia através de teleportação têm suas presenças
notadas por magia – explicou a mulher – a última coisa que queremos é chamar a atenção
de um senhor Draculean.
-
Sei disso! Malditos reis dragões e suas regras! Pioram tudo... eu odeio andar.
Minhas pernas são curtas e frágeis como os de uma lagartixa, feitas para
pequenas distâncias, além disso, esse céu nublado nos engana muito, meu focinho
está em chamas devido ao sol.
-
Ah Dlobok... aguente mais um pouco, logo chegaremos na Dragão Uivante.
-
Falando nisso, explique-me de novo porque existe a necessidade de nos
estabelecermos especificamente nessa taverna?
-
Haverá outros lá.
-
Pessoas que você conhece?
-
Não... necessariamente – respondeu a mulher cheia de certezas.
-
Hum... – Dlobok ficou confuso por alguns segundos - ... sexto sentido? – deu um
palpite.
Yin Yamanaki, a redentora |
-
Você pode chamar disso. Eu visitei meu Éden e ele me levou ao encontro deles.
-
Aensell estará lá?
-
Não.
-
Pensei que ele estivesse diretamente ligado à essa guerra.
-
E está.
-
Então...? – Dlobok não gostava de grandes conversas com aquela mulher
silenciosa e sem arrodeios, mas já fazia algum tempo que ele precisava falar
com alguém sobre qualquer coisa.
-
Não sei – e mesmo dando essa resposta, a mulher parecia não ter dúvida nenhuma.
Falou como se essa resposta fosse o suficiente.
- Sua sabedoria, às vezes, me espanta, Yin Yamanaki - resmungou Dlobok, ainda seguindo a monja.
***
O
prato caiu no chão da cozinha e quebrou derramando todo o molho que Charlotte
havia preparado a poucos minutos.
-
Merda! – ela ralhou.
-
Mantenha a calma, minha querida. Isso acontece mais vezes do que você pode
imaginar – acalentou a velhinha de costas curvadas, rosto enrugado e longos cabelos,
tão lisos quanto o de uma jovem, mas tocados por uma branquidão típica da
velhice.
- Heróis! Eles sempre comem tanto! – reclamou Charlotte
recolhendo os cacos de cerâmica.
-
Eles precisam de energia – explicou a velhinha sorridente, sua boca de lábios
inexistentes e olhos fechados pelo peso da idade – o medo consome mais
facilmente o herói que anda de estômago vazio.
-
Eu sei, vovó. Só estou preocupada. Preocupada com todo esse assunto de “cidade
de carne”.
-
Porque você é sábia, minha querida. Quem ignoraria um assunto como esse? – a velhinha
havia chegado na Dragão Uivante a algum tempo e, então, resolvido ficar.
Charlotte havia se acostumada à chama-la de vovó. Ela era de grande ajuda na
cozinha e nunca pediu pagamento algum – na verdade, recusava qualquer moeda que
seja de Barghaman.
Charlotte
viu-se de cócoras observando o jorro vermelho de molho escorrer por entre as
tábuas firmes no chão da cozinha. Antes da terrível notícia da cidade de carne,
aquilo era molho e somente isso. Agora, era o sangue e as vísceras de inúmeras
vítimas, inundando o palco de uma guerra prestes a acontecer. A garota viu o
rosto de Aensell marcado no piso, sofrendo enquanto sangrava o resto de vida,
ao seu redor estavam os novos conhecidos – os hóspedes da taverna – espalhados e
quase irreconhecíveis. Seus olhos encheram-se de lágrimas quando ela sentiu um
mal-estar repentino lhe percorrer o peito.
-
Vovó e se... – engoliu o murmúrio que acompanhava o choro - ...e se tudo acabar?
E se todos morrerem?– as lágrimas caíram sem permissão.
Vovó, a velha xamã |
A velhinha foi até um dos armários
da cozinha onde se guardavam condimentos e temperos. As frutas que ela bem
queria – os tomates que Barghaman havia comprado no dia anterior - estavam no
topo, muito longe de seus braços curtos, mas ela as alcançou quando tomou a
forma de um urso selvagem alto o bastante, afanando-as com as garras ferozes.
Depois, voltou à forma da simpática velhinha.
-
Se tudo acabar, minha querida? – indagou a velhinha com a cesta de tomates na
mão enquanto andava ao encontro da garota - ... se todos morrerem, então...
tudo começará de novo, de algum ponto – colocou os tomates no balcão e
recomeçou a fazer o molho – talvez até melhor. Talvez haja mais união, mais
mãos para ajudar!
Charlotte
levantou-se do chão e olhou para a velhinha sorridente. Esboçou um breve
sorriso de contentamento, enxugou as lágrimas e acompanhou-a no ofício. Suas
mãos unidas ao da velhinha sábia. Quatro mãos, quatro tomates.
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