segunda-feira, 24 de abril de 2017

A Reunião - parte 03

A Torre da Dragocracia fervilhava de pessoas naquela manhã. Milhares de habitantes, mercadores e aventureiros vindos das terras mais distantes entravam e saíam dos inúmeros becos, ruas pavimentadas, pontes magníficas, praças verdejantes ornamentadas com fontes belíssimas, bondes carregados de magia e estranhos veículos de ferro e fumaça.

O primeiro vislumbre dessa torre colossal é único na vida. A metrópole que representa o governo dos reis dragões podia ser vista à longas distâncias, como um ponto culminante que indicava um norte montanhoso, abraçando um horizonte banhado por um sol constantemente amenizado por um céu magicamente nublado. Nas escadarias e patamares, centenas de torres menores se perdiam ofuscadas pela imensidão que era a maior torre do mundo. Indestrutível, diziam alguns. Misteriosa, diziam outros: em seu interior havia uma infinidade de masmorras – algumas delas jamais exploradas.

Aquela cidade-capital era Draganathor, o maior comércio do mundo e, por isso, estava sempre repleta de gente. Os pátios, vistos do alto – enquanto a bordo de um navio voador – sempre estão cheios de pequenas formigas – de todas as raças possíveis – gritando à pleno vapor, vendendo seus produtos, implorando por ajuda, praticando seus ofícios, protegendo a fama da grande capital, esmagadas pela massiva quantidade de alicerces que, com o passar do tempo, tornou-se ainda maior e mais magnífica – como um quebra cabeça de torres, casas, pontes e ruas que se aglomeravam em uma centena de andares, todos unidos à maior das torres.

Dlobok, o draconômico
Cruzava uma das pontes, naquela manhã, um par de estrangeiros...

- Teríamos perdido bem menos tempo se eu estivesse na minha forma dracônica – reclamou o primeiro encapuzado, uma criatura tão pequena quanto um cachorro de rua.

- Você sabe que eu chamaria muita atenção se chegasse na Torre da Dragocracia montada em um dragão vermelho, não é? – comentou uma voz feminina irônica.

- Ou se, pelo menos, usássemos a teleportação... – o pequeno continuou a dar ideias.

- Dlobok, se quem não nos conhece ouvisse essa conversa, notaria erroneamente que o estrangeiro é você e não eu. Sabe muito bem que qualquer viajante que adentra os limites da Torre da Dragocracia através de teleportação têm suas presenças notadas por magia – explicou a mulher – a última coisa que queremos é chamar a atenção de um senhor Draculean.

- Sei disso! Malditos reis dragões e suas regras! Pioram tudo... eu odeio andar. Minhas pernas são curtas e frágeis como os de uma lagartixa, feitas para pequenas distâncias, além disso, esse céu nublado nos engana muito, meu focinho está em chamas devido ao sol.

- Ah Dlobok... aguente mais um pouco, logo chegaremos na Dragão Uivante.

- Falando nisso, explique-me de novo porque existe a necessidade de nos estabelecermos especificamente nessa taverna?

- Haverá outros lá.

- Pessoas que você conhece?

- Não... necessariamente – respondeu a mulher cheia de certezas.

- Hum... – Dlobok ficou confuso por alguns segundos - ... sexto sentido? – deu um palpite.
Yin Yamanaki, a redentora

- Você pode chamar disso. Eu visitei meu Éden e ele me levou ao encontro deles.

- Aensell estará lá?

- Não.

- Pensei que ele estivesse diretamente ligado à essa guerra.

- E está.

- Então...? – Dlobok não gostava de grandes conversas com aquela mulher silenciosa e sem arrodeios, mas já fazia algum tempo que ele precisava falar com alguém sobre qualquer coisa.

- Não sei – e mesmo dando essa resposta, a mulher parecia não ter dúvida nenhuma. Falou como se essa resposta fosse o suficiente.

- Sua sabedoria, às vezes, me espanta, Yin Yamanaki - resmungou Dlobok, ainda seguindo a monja.

***

            O prato caiu no chão da cozinha e quebrou derramando todo o molho que Charlotte havia preparado a poucos minutos.

- Merda! – ela ralhou.

- Mantenha a calma, minha querida. Isso acontece mais vezes do que você pode imaginar – acalentou a velhinha de costas curvadas, rosto enrugado e longos cabelos, tão lisos quanto o de uma jovem, mas tocados por uma branquidão típica da velhice.

- Heróis! Eles sempre comem tanto! – reclamou Charlotte recolhendo os cacos de cerâmica.

- Eles precisam de energia – explicou a velhinha sorridente, sua boca de lábios inexistentes e olhos fechados pelo peso da idade – o medo consome mais facilmente o herói que anda de estômago vazio.

- Eu sei, vovó. Só estou preocupada. Preocupada com todo esse assunto de “cidade de carne”.

- Porque você é sábia, minha querida. Quem ignoraria um assunto como esse? – a velhinha havia chegado na Dragão Uivante a algum tempo e, então, resolvido ficar. Charlotte havia se acostumada à chama-la de vovó. Ela era de grande ajuda na cozinha e nunca pediu pagamento algum – na verdade, recusava qualquer moeda que seja de Barghaman.

Charlotte viu-se de cócoras observando o jorro vermelho de molho escorrer por entre as tábuas firmes no chão da cozinha. Antes da terrível notícia da cidade de carne, aquilo era molho e somente isso. Agora, era o sangue e as vísceras de inúmeras vítimas, inundando o palco de uma guerra prestes a acontecer. A garota viu o rosto de Aensell marcado no piso, sofrendo enquanto sangrava o resto de vida, ao seu redor estavam os novos conhecidos – os hóspedes da taverna – espalhados e quase irreconhecíveis. Seus olhos encheram-se de lágrimas quando ela sentiu um mal-estar repentino lhe percorrer o peito.

- Vovó e se... – engoliu o murmúrio que acompanhava o choro - ...e se tudo acabar? E se todos morrerem?– as lágrimas caíram sem permissão.

Vovó, a velha xamã
            A velhinha foi até um dos armários da cozinha onde se guardavam condimentos e temperos. As frutas que ela bem queria – os tomates que Barghaman havia comprado no dia anterior - estavam no topo, muito longe de seus braços curtos, mas ela as alcançou quando tomou a forma de um urso selvagem alto o bastante, afanando-as com as garras ferozes. Depois, voltou à forma da simpática velhinha.

- Se tudo acabar, minha querida? – indagou a velhinha com a cesta de tomates na mão enquanto andava ao encontro da garota - ... se todos morrerem, então... tudo começará de novo, de algum ponto – colocou os tomates no balcão e recomeçou a fazer o molho – talvez até melhor. Talvez haja mais união, mais mãos para ajudar!

Charlotte levantou-se do chão e olhou para a velhinha sorridente. Esboçou um breve sorriso de contentamento, enxugou as lágrimas e acompanhou-a no ofício. Suas mãos unidas ao da velhinha sábia. Quatro mãos, quatro tomates.


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