Cecil Break - Draganoth V |
Tanto barulho que mal se pode ouvir os próprios pensamentos. Os dias de um passado longínquo agora são apenas um espectro que se esvai sob os olhares excêntricos da multidão que povoa a Cidadela de Ferro. Mil e um passos soam como um rufar de tambores para ouvidos sensíveis e, abaixo de cada um de nós, máquinas movidas à magia e vapor trafegam na escuridão iluminada pelo toque de arcanos que desenvolveram essa tecnologia.
Ah! A tecnologia arcana. Ela nos faz seguros, apesar de definitivamente não ser segura. Esses andarilhos urbanos até se esquecem que a pouco mais de duzentos metros um pântano ainda mantem-se lar de uma centena de bruxas enjauladas em seu fedor, exatamente como acontecia em eras passadas. O povo acredita estar seguro, os senhores das torres de ferro impedem a intrusão de qualquer ameaça (é isso o que todos pensam).
À minha frente, a pouco mais de trinta metros, uma torre luminosa se estende como um monólito gigantesco onde um grande olho, vazado por dois ponteiros, mostra aos transeuntes desatentos a hora exata. Oito e quarenta e cinco da noite.
Oito e quarenta e cinco e o céu já jaz bastante escuro, como um carvão encrustado no espaço. Sem pontos. As estrelas eram mais comuns nas eras passadas, agora a nuvem de vapor e ferrugem oculta seus brilhos. Mas não precisamos mais da luz lá de cima. Agora, todo luzidio que precisamos se encontra em terra, ou, pelo menos, nos arranha-céus construídos em mármore, granito e magia.
Se atinarmos nossos ouvidos podemos escutar uma música diferente em cada esquina, soada de instrumentos estranhos de sopro ou violões de som abafado. Notas musicais fugindo pelas fissuras e portas escancaradas das dezenas de estabelecimentos acumulados numa única avenida.
O chão treme vagarosamente e isso não parece afetar ninguém, apesar de todos saberem que estão em cima de uma plataforma de metal reforçada com pregos enferrujados em cima da água lamacenta que todos temem se afogar por acreditarem que seus espíritos serão tragados para a boca de algum asurak ou outro espírito do pântano.
Eu poderia pintar um quadro em preto, branco e ferrugem da cena em neon que se propaga pela esquina em que o homem de sobretudo com quepe estranho educadamente acena para a mulher de cabelo laranja cuidadosamente afivelado no topo da cabeça, enquanto espera pela gaiola que o suspenderá e o levará para o segundo patamar da Cidadela de Ferro.
Um andarilho de cabelo esquisito (cortado apenas dos lados) e tatuagens estranhas que parecem ter sido transcritas de uma rocha antiga encontrada em Chattur’gah, esbarra em meu ombro e me adverte “Olha por onde anda, irmão”, antes de esfregar as mãos sujas de ferrugem em sua camisa sem mangas com uma caveira estampada. É claro que eu não respondo de volta. A ignorância é uma dádiva nas zonas urbanas. Os “bons-dias” devem ser ofertados às pessoas certas. Tudo faz parte de um jogo de manipulação.
O andarilho ainda faz questão de me olhar nos olhos antes de desistir da confusão. A palma da minha mão ferve. Nada demais. A luva branca com o símbolo de minha igreja retém o efeito. Eu não poderia me preocupar com simples vândalos quando meu sexto sentido me indica algo bem maior.
Algo que eu só encontraria no Exílio. Este é o nome da taverna com desmoderado letreiro em neon que finalmente encontrei depois de atravessar tantas pontes de metal, me esgueirar em esquinas lotadas e ouvir os assuntos alheios que tão facilmente são disparados aos quatro ventos para que todos possam ouvir. A privacidade é algo que aprendemos a se desvencilhar com o passar das eras.
“Você precisa de doze créditos para entrar no Exílio”, revela-me o warforged ou cara-de-metal como alguns ignorantes tendem a chamar a raça. O tipo tem mais de dois metros de altura em aço bem produzido, uma estrutura criada para intimidar e barrar penetras. Por sorte (para o mundo), apesar dos warforgeds terem uma compreensão nata da própria existência, eles costumam ser camaradas amigáveis e ele permite minha entrada em troca dos créditos exigidos.
Mesas e cadeiras ocupadas não desinteressam os presentes no Exílio. Uma densa névoa que sufoca apenas até a altura de meus tornozelos não é fria como uma qualquer que enfrentamos no frio da noite externa, mas neutra e artificial. Procuro um lugar perto do balcão tentando me desviar da maioria e em busca de um tempo sozinho com meus pensamentos. O que certamente não iria acontecer.
“Então, o que o audacioso membro da ordem prefere?” indagou uma mulher loira de curvas perfeccionistas vestida com poucas tiras de roupa e com uma tatuagem VII delineada pouco acima da cintura. “Loira ou ruiva?”, e automaticamente tingiu seus cabelos com uma tonalidade vermelha vívida como fogo.
Um changeling… ou replicante, como até preferem serem chamados. Um “presente” para a nova era. Essa raça fugiu a muito tempo dos carrascos que enfrentavam em seus planos de origem e passaram a conviver com os humanos. A princípio uma clara dor de cabeça, pois pouco a civilização havia evoluído em conhecimento mágico para deter os poderes de transformação desses seres alienígenas. A Sétima Ordem decretou uma caça assídua aos replicantes e estes quase foram extintos, não fosse por um punhado de representantes que lutou pelo direito de existir sem a abominação do homicídio. O veredicto foi dado uma década após o reclame: todos os changelings deverão ser marcados com o VII da Sétima Ordem, no qual será magicamente encantado para não ser ocultado pelas magias ilusórias da raça.
“A faina da crisálida não me interessa tanto quanto a própria.”
“Então, você veio à procura da beldade”, respondeu-me a replicante sem nome com um sorriso de deboche desenhado no rosto.
Foi uma troca de olhares longa e peculiar, mas, enfim, não precisamos trocar mais palavras. Talvez seja algo que desenvolvemos conforme os anos: a capacidade de evitar divagações. Poderíamos ter compartilhado interrogações pela metade da noite, mas eu e a estranha nos sentiríamos como juiz e acusado e, definitivamente, nenhum de nós tínhamos tempo para isso.
“Acompanhe-me”, a replicante falou e desfilou pelo salão do Exílio com a maestria de quem passou a vida evitando o toque indesejado de estranhos. Levou-me até uma escadaria tingida pelo pó e iluminada por clarões repentinos e inconstantes. Agradeci mentalmente a velocidade da entrega, mas minha desconfiança titubeava à procura de alguma armadilha.
Ainda nas escadarias, o cheiro adocicado de perfume me invadiu as narinas. Ele acompanhava meia dúzia de mulheres sedutoras sentadas no divã da Musa. Uma cena de hedonismo era o plano de fundo perfeito para uma conversa com a beldade e suas escravas de braceletes e corpos seminus riam com agrado contemplando minha presença.
“Seria demais oferecer uma de nossas bebidas mais fortes para um membro da ordem?” perguntou-me calidamente a Musa, com uma taça de um líquido vinho em mãos. Olhar diretamente para o rosto da beldade é como ser estapeado pela luxúria… dolorosamente, até que sua face fique vermelha. Um toque dela e a maioria dos homens poderia escolher morrer ali, definhando de prazer.
“Não posso beber em serviço, sinto muito”.
“Ah! O velho código de boa conduta dos paladinos. Isso é tão… excitante!”, o joguete da Musa foi acompanhado por meia dúzia de risinhos contentes ao seu redor. “Então, suponho ser algo importante o que te trouxe até aqui… sozinho. A igreja não poupava esforços nas eras antigas. Por mais que você seja um devoto bem poderoso, imaginei que, pelo menos ela obrigasse a vocês agirem em dupla, entende? Como nos livros policiais. Um estereótipo, talvez.”
Cada palavra, por mais insensível que pudesse soar, mordia-me o pescoço como uma carícia. Estendi a mão esquerda e apalpei as bordas da minha luva. Precisava terminar meu serviço rápido.
“Ah! Um digno membro da Ordem da Cruz-Espada”, a Musa identificou o símbolo estampado na palma da minha mão, brilhando num azul ainda fraco. “Os guerreiros santificados, quase extintos, mas ainda desacreditados. Muito bem, paladino, termine logo isso…”
Minha mão emitiu um brilho intenso e um calor muito maior do que o que havia emanado durante minhas andanças na zona urbana da Cidadela de Ferro. Direcionei o símbolo de minha igreja em direção à beldade e por alguns momentos a luz azulada dissipou um pouco da escuridão impenetrável daquela masmorra para, enfim, se tornar opaca e desaparecer.
“Não é você.”
“Claro que não sou quem você procura. O Exílio está de pé sob minha administração a mais de cinco décadas. Eu aprendi a jogar a muito tempo, humano. Sei tirar minhas vantagens mesmo sob essas limitações.”
“Sinto pelo importuno”, vesti a luva novamente.
“Você não espera que isso seja tudo, não é, paladino?” revelou-me a Musa, levantando-se do próprio divã e caminhando em passos curtos tão ameaçadores quanto cálidos.
“Eu posso me vangloriar de minha preparação, beldade, caso você dê mais um passo”.
“Tanta confiança… excitante! ...mas, porque?”, ela parou seu desfile e, por um momento, parecia farejar os ares ao seu redor “Você trouxe um grupo com você… ah! É claro… aí estão os esforços da sua igreja”, ela nitidamente sorriu satisfeita. “Ótimo. Você vai precisar de toda a ajuda possível no lugar para onde você vai.”
Para uma súcubo a indireta estava mais do que válida. O inferno, seja qual for ele, está ansioso esperando pelas almas certas. Eu só precisava de poucos minutos antes que meus aliados chegassem, então sussurrei as primeiras orações dos livros vermelhos quando fui interrompido:
“Então, você já ouviu falar das Masmorras de Yenoghul? O meu “amo” está ansioso por visitas e eu estou ansiosa pela cabeça dele.”
Continua...
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