sábado, 17 de setembro de 2016

A História de Derek Turner



O que se conta sobre Derek Turner é a história de um garoto que aprendera a mentir cedo. Tinha a presteza para isso, uma criatividade única para invencionices, a lábia tão afiada que era capaz de enganar até o mais incrédulo ouvinte. Mantinha-se como um gatuno, livrando-se dos mais breves afazeres, pois ora estava mortalmente doente, ora tinha a saúde de ferro. Em seu pequeno vilarejo, sua fama se alastrou, e logo sua palavra passou a ser questionada a todo momento, por isso precisava de outros padecentes.


Esperava paciente e sem tédio nas alamedas onde mascates e outros comerciantes trafegavam, sempre a espera de surrupiar alguma encomenda alheia, algumas vezes afanando com mãos leves, outras desdenhando da sabedoria do viajante com galhofas convincentes. Deitado às sombras de árvores de copas baixas, sobre raízes protuberantes, apreciando os doces roubados e o cachimbo, espólio de uma das enganações que ele mesmo julgou a mais sublime dentre as realizadas até aquele momento, Derek parecia reconhecer no semblante de sua vítima o nível da dificuldade que seria persuadi-la.


A princípio, contentava-se com os mais ingênuos, pois o trabalho era mais fácil e a garantia era certa. Mas seu ego um dia resolveu desafiá-lo e ele já não mais pregava peças nos viajantes crédulos. Deixou em paz as sacerdotisas inocentes dos templos próximos e os comerciantes que carregavam cargas parcas e passou a tentar a sorte com as estranhas caravanas que levavam especiarias para castelos distantes e aventureiros que se arriscavam nas masmorras escondidas naquelas terras. E era exímio de tal forma que passou a colecionar, em seu recanto, as mais esquisitas e variadas coisas que conseguira através de sua arte da trapaça.


Aconteceu de, um dia, uma estranha carroçaria, construída em estranha e macabra madeira negra e coberta por penduricalhos barulhentos como chocalho, transitar pelo seu território. Um par de rodas gigantes girava nas laterais do veículo, dando um movimento monótono e sacolejante ao transporte. Havia um corvo a crocitar preso em sua gaiola de cobre, uma dupla de cavalos de pés peludos e pigmentação cinzenta e uma senhora de rugas profundas e bem agasalhada com um manto pesado feito das penas de pássaros negros como carvão que conduzia a carruagem sem aparentar pressa ou temor.


Derek sentiu breves calafrios e um tremor repentino nas mãos. O medo o abraçava e ele, envolvido pelo pavor, decidiu se esconder e assistir a carruagem mórbida dar continuidade à sua trajetória. E quando a viu, já a alguns metros adiante seu esconderijo, uma curiosidade incontrolável inundou sua vontade: seria aquela viajante um novo nível de desafio a ser enfrentado por sua lábia. Ele desconfiava que qualquer bagagem naquele veículo seria rara, mas o legado ao final da conquista não era o de possuir qualquer bem adquirido por sua enganação, mas a própria satisfação de enganar aquele ser.


E foi assim que Derek saiu de seu esconderijo e gritou buscando a atenção da velha cocheira:

- Não me entenda por mau, minha boa senhora, mas o caminho que agora trilha a levará para um grande perigo, pois é por essa estrada que você acabará sendo emboscada pelos gananciosos espíritos vindos do Pântano do Ébano. Se não os conhece, devo alertar-te, não conseguirá passagem segura sem um guia experiente, já tão acostumado com a situação. Tudo que lhe peço são míseras cinco peças de ouro como meu pagamento e algo precioso que será ofertado para acalmar as almas lamentantes que ali residem.


A mórbida senhora fitou Derek com um longo e tenebroso olhar que fez a espinha do mentiroso gelar. Mas, enfim, concordou silenciosamente e entregou as cinco moedas de ouro sem pronunciar uma só sílaba.


Acreditando terem cortado a língua da velha, Derek aceitou o silêncio e o assentimento de sua vítima, agarrou as cinco moedas e pôs-se a guiá-la pelo caminho perigoso por ele inventado.


E por menos de uma hora andou e quando sentiu seus pés a latejar decidiu que seria ali, naquele lugar aleatório, que poria em prática a segunda parte de seu plano.

- Minha senhora, consegues enxergar as marcas acima dos galhos daquelas árvores? - apontou o charlatão, tendo a certeza que a visão da velha já não era perfeita - pois ali estão os avisos deixados pelos viajantes de outras eras e é graças a isso que nós, os experientes andarilhos, sabemos nos situar nesses bosques. Diante tanto barulho que sua abastada carroçaria fez durante toda a viagem, temo que os espíritos daqueles que um dia viveram no pântano do ébano, só se satisfarão com algo de boa qualidade.


Desviou o olhar da velha e passou a direcioná-lo para o misterioso plano de fundo escuro entre as árvores, como se pudesse sentir algo vindo de lá. Aquela encenação não era realmente necessária, Derek sabia, mas aquilo o divertia.


Ao retornar a encarar a cocheira, surpreendeu-se com o brilho opaco e negro de uma gema preciosa do tamanho de um punho entre os dedos frágeis de sua vítima. Uma ágata.

- Isso é mais do que o suficiente, minha senhora - afanou a jóia negra e passou a escalar uma árvore aleatória, escondendo a ágata entre as folhas mais densas da copa - acredito que sua passagem não será mais perturbada.


E aquilo foi tudo. A trapaça estava realizada. A velha viajante abriu um sorriso torto e assombroso. Um sorriso breve na qual Derek ficou a duvidar da intenção. Por meros segundos, o charlatão notou uma fileira de dentes pontiagudos, como os de uma serra, estreitar-se pela boca fina e cavernosa da velha. Ela deu ordens aos seus obedientes cavalos cinzentos e, pouco a pouco, o barulho de seus cascos ecoavam mais distante do ponto onde Derek permitiu-se silenciar por alguns minutos.


Havia dado certo, de algum jeito. Ele escalou a árvore novamente e tomou posse da gema preciosa enquanto seus olhos brilhavam e um esboço de sorriso se formava em seu rosto. Aquilo poderia render riqueza o suficiente para uma vida inteira.


Derek usou as cinco moedas de ouro naquela noite extravagante com comida e bebida. Contou sobre sua aventura nas cavernas atrás das cachoeiras, onde conseguiu riqueza o suficiente até a morte e pagou uma rodada para cada um que ousava não acreditar na sua versão honrosa da história. Foi levado para um dos quartos de uma taverna quando começou a agarrar-se com o sono…


… então, teve a pior noite de sua vida. Sentiu-se dentro de um pesadelo, incapaz de se acordar, cercado por uma escuridão densa, ouvindo os sibilos de uma criatura grotesca nos fundos de uma caverna. Levantou-se ainda no escuro e não tornou a dormir.


Assim aconteceu na noite posterior e Derek pôde ouvir mais próximo a respiração gutural da criatura sibilante. A cada noite ela estava mais próxima e mais rasteira. No sexto pesadelo, Derek teve a impressão de ver uma garra gigante cortar as sombras ameaçadoramente. Ele perdido, sozinho, na escuridão que parecia eterna e sufocante.




Quando todos passaram a notar o arroxeado ao redor de seus olhos, seus passos trôpegos e um histerismo que se tornava cada vez mais habitual, nada fizeram. Ninguém se sentia à vontade para ajudar aquele que tanto os enganou.


Numa das noites, em mais um dos pesadelos na qual Derek era incapaz de se acordar, ele enfrentou a escuridão e correu a esmo gritando um eco infinito, acompanhado por uma repentina e assustadora risada. Um deboche da própria obscuridade. Em poucos momentos, sentiu-se como se estivesse fugindo de algo, do desespero esmagador que assolava suas noites. Então, sentiu seu rosto chocar-se a uma parede de escuridão. Uma barreira incapaz de emitir qualquer brilho, mas com um aspecto vítreo, dura como diamante.  


Acordou-se mais exausto do que nunca, mas, de alguma forma satisfeito: havia encontrado uma resposta para sua maldição. A quanto tempo esquecera a ágata… e onde ela estava agora? Apalpou seus bolsos, visitou seu esconderijo, vasculhou os lugares por onde andou e a gema preciosa parecia ter desaparecido definitivamente. Como isso poderia ter acontecido?


Quando desistiu de procurar, a solução do problema parecia o mais lógico: alguém a havia roubado. Mas quem?


Passou os próximos dias mais acordado e exausto do que com o ânimo que costumava ter. Sentenciou os responsáveis pelo roubo, julgando cada um que lhe encarava por míseros momentos, por isso, passou a manter-se distante, na parte suja e escura da taverna, como um plano de fundo que deveria ser evitado. Vez ou outra gritava para que qualquer um pudesse ouvir:

- Devolvam minha jóia preciosa. Ela é minha. Se vocês não o fizerem se arrependerão!


Logo, as ameaças se tornaram mais uma súplica do que uma intimidação:
- A criatura no escuro está chegando, seus tolos. Vocês não podem ouvir ou enxergar, mas ela está vindo e arrastará todos vocês pra escuridão e arrancará suas cabeças com suas garras.


Mas a fama de embusteiro de Derek não havia sido sanada e, quando notaram seu corpo secando e a esqualidez se aprofundando em seus ossos, alguns acharam que aquele seria o final digno para o mentiroso, outros sentiram pena, mas nada fizeram para ajudá-lo e se uniram à zombaria daqueles que um dia haviam sido vítimas em potencial de Derek.

- Não acreditamos em uma só palavra tua, Derek Turner e, seja qual for a maldição que você desenterrou surrupiando as masmorras, ela lhe é bem merecida. Se quer realmente ajuda, procure uma sacerdotisa. Ela saberá o que fazer.


Mas Derek tinha medo do rosto caridoso das sacerdotisas, como ele se provou posteriormente ao encarar uma. O olhar de compaixão era intolerável, como um raio de sol penetrando a escuridão densa que cobria seus olhos.


Ninguém mais acreditava em Derek Turner e o charlatão passou a odiá-los ainda mais, dia após dia. Odiou até mais do que a sombra que perturbava suas noites e, enfim, acostumou-se com sua sina tenebrosa e se via na espera de finalmente encarar a criatura feita de escuridão. Talvez, descrevendo-a para seus ouvintes, ele pudesse ser mais convincente.


Então, ele adormeceu como nunca e naquele pesadelo o som dos passos  de seu caçador noturno finalmente cessou. Derek estava na escuridão fria que passara a envolver todas as suas noites e viu se aproximar a silhueta translúcida e os seis olhos amarelos que orbitavam ao redor desta. Eram órbitas grandes, porém distantes, como ele podia descrever: um céu de obscuridade iluminado pelo lampejo macabro que escorria assustadoramente num plano de fundo monótono.


Um repentino rasgo na escuridão deu origem a uma bocarra salivante onde uma língua bifurcada serpenteava aleatoriamente pelo espaço ao redor de Derek. Era, porém, um sorriso gratificante, um enclausuro para fileiras de dentes pontiagudos e contrastantemente brancos.

- Então, você cansou-se da espera, Derek Turner. Pois sou eu, aquilo que tanto temia. A garra na escuridão e o tormento de seus sonhos.


Era uma voz medonha, um sibilo silencioso que parecia ecoar em qualquer ocasião e, ao mesmo tempo, provocava um estranho alívio em Derek.

- Eles não acreditam mais em você, meu querido Turner. A vida de um enganador passou a não ter mais sentido.


E Derek desabou no chão escuro, cobriu os ouvidos com as palmas das mãos e deixou cair incontroláveis lágrimas que mancharam seu rosto de desespero.

- Mas há um jeito de eles voltarem a acreditar, Derek. Há um jeito de você fazer com que eles também possam enxergar esse pesadelo.


O estranho alívio voltou a confortar o mentiroso:

- Como? Como posso fazer isso?


A cabeça diabólica da criatura projetou-se da escuridão e encarou Derek. Os seis olhos amarelos ainda assim distantes, subvertendo o mísero restante de coragem de sua vítima.

- Agora que somos como um, Derek, você é a ameaça. Você é a garra na escuridão e o pesadelo constante. Você será a criatura mais convincente que existiu em seu plano. A coisa que os fará temer.


Dito isso, a macabra criatura tirou da escuridão que adentrava sua fileira de dentes pontiagudos uma esfera amarela e opaca e a estendeu para o amedrontado sofredor. Era um olho, áureo e orbitante, uma íris minúscula rodopiando pelo líquido flavescente que fitou Derek sem temor.


A boca do enganador salivou e a garganta ansiou pela especiaria. Derek retribuiu o olhar vil para a criatura e devorou a coisa que revelou-se dolorosamente corrosiva. O trapaceiro levou as duas mãos à garganta enquanto sentia o ácido descer para seu tubo digestivo, seus olhos lacrimejaram e ele se ajoelhou agonizando de uma dor lancinante, regurgitando qualquer líquido. Um líquido que parecia vivo à nadar pelo estômago de Derek.


Demorou algum tempo, mas Derek acostumou-se com a dor. Vomitou o sangue que escorria de sua língua e gengivas e sentiu a boca mutilada, os dentes estreitos e pontiagudos como os da fera que havia lhe oferecido a especiaria, como os da velha que lhe ofertou a jóia de sua maldição.

Agora Derek, esquálido, insano e desdentado ria incontrolavelmente. Uma gargalhada que ecoou infinitamente pela escuridão de seu pesadelo. Então, se acordou… mais vivo do que nunca. E era noite. A última noite de todo o resto.


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