Ainda era passado e a
torre da dragocracia não tinha sua paisagem ameaçada pelo plano de fundo em
carne viva. Charlotte acordou cedo aquele dia. Permaneceu livre dos cobertores
e esperou a primeira fresta de sol iluminar o assoalho de seu quarto. Ficou
ali, a abraçar as próprias pernas, pois não desejava levantar suspeitas. Como
de costume, levantou-se, molhou o rosto atônito e abriu as janelas. Era um dia
como qualquer outro. Pouco nublado. Desceu até a cozinha da estalagem, pegou
baldes e caminhou até o poço. Agora tinha água para se lavar e cozinhar. O
trabalho do resto de sua vida.
Poucos minutos depois de
sua chegada, Barghamann acordou. Ele também tinha um ritual diário. Lavava-se
com a água que a filha a pouco havia trazido do poço, armava-se com um machado
e descia até o depósito de lenha, onde ele trabalhava arduamente durante meia
hora. Foi nesse intervalo que Charlotte aprontou-se e saiu, como quem fosse
fazer compras.
Nas ruas movimentadas de
Draganathor, Charlotte evitou olhares. Movimentou-se esguia e de cabeça baixa.
Ansiosa. Chegou até a casa abandonada. Ela já havia passado por perigos ali,
lembrava-se bem, mas a escuridão cinzenta daquele armazém era propensa a
encontros secretos. Observou seus arredores com desconfiança e, enfim,
aproximou-se da porta de madeira quebradiça. Já não era preciso girar a
maçaneta, mas sim erguer o peso desta para, então, arrastá-la, num barulho que
assustou os ratos escondidos entre as caixas velhas do depósito. Pouca luz
entrava lá, mas a parca iluminação ainda permitia enxergar o véu de poeira que
dançava no ar.
Charlotte |
- Você está aí? – sussurrou Charlotte percorrendo os olhos pela sala de caixas de madeira retorcida alguém que a respondesse.
- Estou – respondeu a voz
soturna, vinda da escuridão empoeirada.
A silhueta da criatura de
olhos vermelhos agora era visível à Charlotte. Tão à frente que a garota
invasora se surpreendeu por não ter a notado antes. Charlotte se amedrontou
quando a presença pálida e trôpega se arrastou por entre os caixotes para
encará-la. A coisa feminina estava fraca. Debilitada. O medo da invasora
transformou-se em pena.
- Ivny... – sussurrou
Charlotte, caridosa, um passo à frente, no intuito de tocar a criatura no
ombro.
Os olhos da criatura,
agora fracamente vermelhos, notaram a aproximação e seu corpo reagiu,
afastando-se, como se o toque fosse capaz de feri-la.
- O que aconteceu com
você? – perguntou Charlotte, aos sussurros, ameaçando encher os olhos de
lágrimas.
Ivny, a coisa vampiresca,
não conseguia mais a encarar olho no olho. Manteve-se cabisbaixa durante a
conversa.
- Ele... – Ivny engoliu
as palavras e encerrou o assunto.
- Saiu da Dragão Uivante,
mesmo sob os protestos de Barghamann, como você havia previsto.
- Para onde? – cada
palavra pronunciada por Ivny vinha das sombras. Isso a envergonhava.
- Falar com o príncipe de
Zast...
- Zarast – corrigiu Ivny.
- Isso...
- Você...?
- Estou bem, Ivny.
- Que caminho ele tomou?
- Marco do percurso, dos
Vistani. Presumo. Era o único que ele conhecia.
- Não é um caminho seguro
para se andar sozinho.
- Ele não foi sozinho.
- Quem?
- Um meio gigante. Eu o
vi com um.
- O nome...?
- Não sei. Usava um arco.
Um arco muito grande.
- Hum...
- Como você está, Ivny?
- Não se preocupe comigo.
Sou um cadáver.
- Vai atrás dele?
- Sim...
- Acha que ele não sabe
se cuidar?
- Não é isso.
- Então...?
- É meu dever. Desde
sempre.
- Porque você não visita
um templo de Amaryllis? As sacerdotisas poderiam tentar livrá-la dessa
maldição. São mais eficientes que os senhores draculean.
- Eu não quero me livrar
disso.
- Ivny...
- Estou bem, Charlotte.
Sei do meu papel.
Ivny ergueu o rosto e
tomou coragem para olhar Charlotte e sua pele rósea, alva, quente e preciosa.
Com medo do que era capaz, a vampira afastou-se.
- Espera, irmã! –
suplicou Charlotte.
- Não posso ficar muito
tempo. Você também não.
Charlotte assentiu.
- Volte. Não deixe que
Barghamann saiba da minha existência.
Charlotte concordou e
observou Ivny se misturar à parte densa da escuridão, depois, suspirou
profundamente, arrastou a porta do velho armazém. Agora para saída. Havia
passado mais tempo do que ela previra. Voltou para a Dragão Uivante. Tinha
muito trabalho a fazer.
***
- Está surda, filha?
Estou a mais de cinco minutos lhe gritando o nome – ralhou Barghamann,
rabugento.
Charlotte se recompôs.
Seu pai havia acabado de subir os poucos degraus do depósito. Tinha um pano
vermelho e sujo lhe enxugando o suor do ofício. Por pouco não havia se deparado
com ela chegando na taverna.
- Porque esta cara? –
Barghamann pouco desconfiou da situação, mas preocupou-se em perguntar isto a
garota.
- Eu... acordei um pouco
tonta. Deitei-me mais um pouco, depois de recolher a água.
- Está enjoada? – agora
Barghamann pareceu mais preocupado – O que isso quer dizer?
- Não se preocupe, pai –
Charlotte disfarçou um sorriso nervoso – eu estou bem. Eu falei para o senhor que
a carne de porco parecia um pouco estragada...
- Hum... – resmungou
Barghamann - ...não sinto nada e comi até me empanzinar!
- Isso porque tens um
estômago de guerreiro, senhor Barghamann! – Charlotte suspirou aliviada, o
blefe havia funcionado – estou bem melhor. Pronta para mais um dia.
- Sobre isso – Barghamann
lançou o pano vermelho encharcado num balde – eu tratarei de contratar alguém
para te ajudar.
- Posso segurar as
pontas, por enquanto, pai.
- Sei disso, minha filha.
Você é uma adulta. Aprendeu com a vida. Sabe o que deve fazer...
Charlotte ficou nervosa,
mas não deixou que isso aparentasse.
- ... mas quatro mãos
trabalham melhor do que duas.
- Está correto pai –
aproximou-se de Barghamann e o abraçou, sem nojo do suor – agora, deixa-me
cuidar de meus afazeres. Tenha um bom dia – beijou a face do velho e foi à
cozinha.
Aquele dia passou muito
rápido. Pelo menos para Charlotte.
***
Ivny |
Uma carruagem de janelas
fechadas trafegava pelo Marco do Percurso. Solitária. Sentado a comandar os
cavalos estava o cocheiro. Olhos vidrados no céu alvo de outrora. Mal piscava.
Estava daquele jeito desde que ousou recusar as ordens de Ivny.
- Ninguém mais toma
aquele caminho, jovem – explicou o cocheiro, ainda em Draganathor – só quem
sabe lidar com a maldição dos Vistani – continuou a explicar-se, mas não parecia
convencer a garota decidida – nenhum cocheiro se arriscaria. Pergunte a qualquer
um.
- Você se arriscará –
comandou a austera Ivny, fitando com seus olhos vermelhos os olhos apagados do
cocheiro. Ele aceitou a proposta, tomou as rédeas, esperou que a passageira
embarcasse, sentou-se no trono da viagem e pôs-se a fazer seu trabalho.
Desde então, o cocheiro
de olhar apagado, procurando saciar as vontades da garota, arriscava a própria
vida numa viagem maldita.
- O que é a maldição
Vistani? – perguntou Ivny, dentro da carruagem de janelas fechadas, para que
não entrasse uma fresta de sol
- Os Vistani são ciganos.
Uma linhagem muito antiga. Eles declamaram essas terras como deles.
Consideram-na um lar – respondeu o cocheiro com voz pausada e sem ritmo – são bruxos
também.
As feiticeiras deles rogaram uma praga nessas planícies. Nada cresce
aqui que não seja plantado pelos Vistani ou pela própria natureza.
- Então, porque os
cocheiros temem essas terras, se estão só de passagem?
- As bruxas. Elas têm
olhos de mau olhado. Algumas rogam maldição. Drenam a alma. Outras leem seu
destino, mas são destinos ruins, fadados a morte – respondeu o cocheiro,
enfeitiçado.
- Que apareça algum
desses ciganos. Não tenho problemas pois, de destino ruim, sei que já carrego,
mas o sofrimento que passarei até chegar lá me é desconhecido.
O cocheiro nada comentou.
Continuou a viagem.
***
- São os Vistani –
indagou o cocheiro sem temor.
Havia se passado não mais
que algumas horas.
- Sinto que está
anoitecendo. Temos que parar. Você precisa descansar e os cavalos também. Falarei
com os ciganos.
O cocheiro parou. Desceu
da carruagem, abriu a única porta do veículo, observou novamente os olhos de
sua senhora. Nada. Pôs-se a fazer o resto do serviço do dia: empilhou o feno
armazenado atrás da carruagem, afrouxou as rédeas dos cavalos e teve a certeza
de que eles seriam bem alimentados, depois, no trono da viagem, embrulhou-se
num cobertor e deu uma chance ao sono.
Ivny o observou. Faminta.
E o deixou ali. Foi ter com os Vistani.
***
Os Vistani chamam de
Marco do Percurso os intervalos a cada seis horas de viagem naquelas planícies
amaldiçoadas. Eles cravam grandes pedras na terra, como um mênir druídico, e entalham
nelas o símbolo dos Vistani: a rosa dos ventos. Os marcos são lugares de
proteção para os ciganos. A magia conjurada sobre as pedras afasta lobos e
outros animais noturnos, afasta até mesmo os goblins e gigantes, por isso, não
é incomum que os vagões das carruagens Vistani fiquem acampados ao redor desses
pontos. Aconteceu exatamente isso aquela noite.
Auxiliada pelo barulho descuidado
do banjo e acordeão, Ivny aproximou-se como uma sombra. Furtiva e afiada. Os
Vistani se acostumaram com a paz que os rodeava e quando perceberam a vampira,
estavam de guarda baixa. A algazarra encerrou imediatamente. Os homens
armaram-se com sabres. Sabres de prata, Ivny pôde perceber. As mulheres ficaram
com os amigos e amantes. Eram rápidas. Já tinham adagas nas mãos, porém, de
onde elas tiraram estas, Ivny não pôde perceber.
- Você é uma criatura da
noite, não pense que não estamos familiarizados com suas habilidades – ameaçou um
dos ciganos. Ele era alto e esguio, a barba rala, por fazer, num rosto afilado
e jovial que se contrastava com aquele momento de aflição, pois sua face
acostumara-se, a muito, a sorrir sem grandes motivos. Sobrancelha e orelhas
marcadas por brincos. De prata.
Ivny postergou sua
apresentação. Tentava combater o prazer de sentir aquele cigano amedrontado. Os
demais membros da comitiva ficaram em segundo plano, mas logo seriam igualmente
assimilados.
- Não tenho a intenção de
feri-los. Baixem suas armas – comandou Ivny.
- Não mesmo! – respondeu o
cigano. Nenhum Vistani desarmou-se. Ivny teve de se acostumar com a ameaça
fatal das lâminas de prata.
- Ouvi falar sobre as
habilidades Vistani. Sobre as bruxas. Disseram-me que elas poderiam prever meu
destino.
- Você está morta,
amaldiçoada! – respondeu a cigana de cabelos longos, morenos e ondulados, feito
pelos deuses somente para ela, assim como seus olhos verdes, raros. A cigana
tocava o ombro daquele que primeiro falou. Um toque de garra de pantera.
Íntimo. Ivny imaginou que eles eram um casal.
- Então, não tenho um
destino? – Ivny perdeu-se em pensamentos, vagando o olhar na fogueira do centro
do acampamento, esperando torna-se ela e o fogo, cinzas. Mostrou-se frágil e
confusa. Quando novamente ergueu o rosto deparou-se com a cigana próxima
demais. Não importava. A vampira não receou a proximidade.
- Você está perdida. É um
cadáver. Triunfa somente à noite – falou a cigana, fitando a vampira tão profundamente
que causou, a esta, mal-estar de fome avassaladora – Mas suas feições, por
alguma razão, lembram-me alguém – Ivny arregalou os olhos, atônita – você procura
um mago. Um jovem mago.
- Sim – não importava
como a cigana sabia. Ela era uma das bruxas, Ivny logo percebeu – preciso saber
onde ele está – e mostrou-se frágil, quase chorosa e derrotada.
Houve um momento de
silêncio.
- Vimos esse sujeito a
alguns dias – revelou o cigano, sem sabre em riste.
- Onde?
- Há um vilarejo
abandonado. Está também amaldiçoado, mas não por nós e sim, por algo bem maior.
Algo que você desejaria não encontrar.
- Fala-me mais...
- O vilarejo chamava-se
Alkor. Não nos ameaçava em nada. Oferecia-nos queijo e leite de cabra. Tentamos
salvá-lo da ameaça ou, pelo menos, alertar os habitantes. Não adiantou. A coisa
na carruagem veio mesmo assim.
- De que coisa você está
falando?
- Um velho. Certamente é
isso que enganará seus olhos à primeira vista, mas, além de sua pele frágil e
enrugada, existe um demônio no qual nenhum Vistani jamais nomeou.
- Obrigado – Ivny
agradeceu já se afastando do grupo.
- Espere! – ordenou a
cigana. Ivny estancou, mas não se virou novamente para encará-la – deixe o
garoto em paz!
- O quê?
- O garoto não precisa de
você – a bruxa cigana revelou em tom baixo e confidente.
Ivny ficou calada. Por um
tempo só se ouviu o estalar da madeira sendo consumida pela fogueira.
- Engana-se, bruxa.
Aensell sempre precisará de mim.
Continuou sua andança.
***
- Vejo um vilarejo
abandonado ao longe, mestra – anunciou o cocheiro.
- Está bem. Você
estacionará a carruagem aqui e descansará. Não estarei muito longe – respondeu Ivny
despertada de um transe. Ela já não sabia se gostava ou odiava o peso da sua
situação, passava a viagem toda mergulhada em memórias. Boas ou ruins.
- Mas, porque, senhora?
Não seria mais seguro estarmos cercados pelo vilarejo? – argumentou o cocheiro
ainda de rédeas nas mãos.
Ivny surpreendeu-se. O
escravo estava hipnotizado pelos seus olhos dominantes. Não deveria questionar.
- Não é seguro. Os
Vistani me alertaram sobre uma maldição maior que a deles. Você não precisa
passar por esse perigo.
O cocheiro assentiu –
Está bem.
Não era uma resposta que
ela esperava. Esperava somente pela aquietação. E quieta ficou por quase cinco
minutos, esperando a tardia luz do sol esconder-se. Finalmente rompeu o
silêncio:
- Qual o seu nome?
- Sou Hildegrim.
Calou-se. Calaram-se.
Avançou a noite. Ivny
saiu de seu esconderijo. Hildegrim dormia. Já havia alimentado os cavalos. Ao
longe havia uma enorme fogueira no centro do vilarejo. Decidiu agir nas sombras.
Não se despediu de nada.
***
Havia uma fogueira. Era
enorme. Atingia grandes alturas e deixava o rastro de fagulhas dançando no ar
noturno. A madeira incinerada estalava. Ivny podia ver isso na frecha de uma
das casas que invadira. Era um vilarejo pequeno e abandonado. As casas foram
construídas contornando o centro. Não tinha grande porte. O vilarejo não queria
crescer para os lados, seus moradores haviam construído casas umas em cima das
outras, mais priorizando o céu do que a terra. As moradias tinham bom alicerce,
cada uma com seu jardim ou cercado onde, Ivny previra, os habitantes plantavam
e criavam cabras e porcos. Alkor não era o tipo de vilarejo que a população abandonaria
sem uma causa muito forte, no entanto, ele havia. O que sobrara agora eram
ruínas entregues aos ratos e insetos e um viajante de braços cruzados a
contemplar a imensa fogueira que, o próprio, havia criado.
Ivny esgueirou-se. Andou
a passos curtos e estudados com a furtividade que sua maldição havia lhe
proporcionado. Do lado de fora, o fogo estalava e o homem, cada vez maior,
contemplava a chama, como uma deusa. Ivny não queria aparecer repentinamente –
não como aconteceu com os Vistani – a fogueira era alta demais e ela temia.
Vampiros temem o fogo. Ela esperaria pela hora certa que parecia nunca chegar.
Ao seu lado, as tábuas rangeram-se
até o ponto de partir. Uma lança havia sido arremessada contra a sua posição e,
por pouco, Ivny não fora pega desprevenida. A vampira encaixou o olho na fresta
das ruínas e observou o homem contemplativo armado de um arco notavelmente
grande e poderoso. A seta apontava para a sua direção. Dotada de reflexos
superiores, Ivny saltou para o lado antes que a flecha, do tamanho de uma lança,
acertasse seu corpo. Mais uma munição disparada, mais demolição. A flecha
pesada partiu as tábuas e atravessou o corredor de ruínas que Ivny se escondia.
Depois outra. E mais outra.
Como um vulto, Ivny
escapou. Sua visão sobrenatural ajudou a notar o caminho e, entre saltos e
acrobacias, a vampira alcançou o segundo andar de uma das casas. Flechas eram
disparadas a cada três segundos. Velozes e fulminantes. A invasora desviava-se
e movimentava-se com graça para decepcionar a mira de seu atacante. Ela armou-se
do par de lâminas curtas que guardava sempre ao alcance, como se as sacasse do
nada e, enfim, elas se materializassem afiadas em suas mãos. Saltou em direção
do arqueiro, homem de músculos avantajados e estatura grande. Deslizou como uma
dançarina diante os disparos do inimigo, desviou-os e o alcançou, lâmina fiel a
riste, preparada para degolar. Sentiu, então, a ponta aguçada de uma das
flechas atravessar-lhe o estômago.
Ivny parou, chocada. Nada
poderia sobreviver àquela lança atravessada no estômago. Ela, contraditoriamente,
podia. Esperou o meio gigante aproximar-se e o ameaçou no pescoço.
- Pare, agora! – exigiu Ivny,
o sangue ganhando passagem pela sua garganta e manchando seus lábios com um
fino riacho vermelho. A expressão no rosto da vampira era de frenesi. Desejava
sangue.
O homenzarrão parou. Duas
únicas flechas em seu depósito de aljavas.
- Nomeie-se! – exigiu mais
uma vez.
- Sou Golias – respondeu a
vítima enquanto via o ferimento no estômago de Ivny fechar-se, limitado ao
ferimento trespassado de sua flecha.
- O que está fazendo
aqui? – Ivny estava presa ao chão pela flecha, mas queria saber mais.
- Queimando... –
respondeu monótono.
- Porque tamanha
fogueira?
- Era um veículo grande e
amaldiçoado. Foi necessário.
- Um veículo?
- Uma carruagem, sem
teto.
- Porque queimar uma
carruagem? – Ivny não sabia como aquela conversa havia chegado ali, mas estava
curiosa. Tinha muitas perguntas.
- Como eu disse: era
amaldiçoado.
Ivny mostrou as presas
manchadas do próprio sangue.
- Conte-me algo que faça
sentido ou morra!
- Havia um velho na
carroça. Parecia inofensivo, mas o mago me alertou que o ancião era, na verdade,
um demônio.
- Um mago? – Ivny contagiou-se
pela ansiedade.
- Sim. Um mago. Andava
comigo.
- Qual era o nome dele?
- Aensell.
As lâminas afiadas de
Ivny desvencilharam por um segundo. Segundo o suficiente para ser surpreendida
por Golias. A breve falha rendeu seu desarmamento e um gancho poderoso em seu
pescoço. Mãos tão poderosas que seriam capazes de explodir um crânio.
Mas Golias não o fez.
Arrancou a vampira de sua flecha, resultando num riacho de sangue e a derramou
no chão. Ivny tossiu, fraca. Era fome. O meio gigante cruzou os braços e passou
a observá-la com atenção.
- Porque está aí, parado?
Poderia ter me jogado na fogueira – perguntou Ivny, ofegante. Vampiros não se
cansavam, mas a fome os marcava com uma sensação de exaustão.
- Você é a irmã dele, não
é?
O disparate atordoou a
vampira.
- Sou.
- Ele se foi. Com uma
draculean.
- Não. Não acredito
nisso. Aensell não se aliaria aos escravos da dragocracia.
- Não o fez por vontade
própria.
- Preciso ir atrás dele.
É meu irmão e precisa de mim.
- Ele me pareceu
dependente de pessoas, mesmo.
Ivny levantou-se e
analisou seu ferimento. Já não o tinha, mas estava tão fraca quanto se tivesse
sofrido tamanha hemorragia.
- Para onde?
- Zarast.
Ivny deu mais uma olhada
na grande fogueira que consumia a noite. Não se despediu. Deixou para trás
somente o meio gigante de braços cruzados a observá-la.
Golias |
***
- Vou com você – o meio
gigante interrompia o retorno de Ivny
- Como?
- Eu vou com você.
- Porque?
- Devo algo ao garoto.
- Deve? O quê? –
interessou-se a vampira. Virou-se para Golias e o fitou nos olhos.
- A vida.
Ivny não concordou com a
vinda do meio gigante, nem discordou. Nada fez para impedir que Golias entrasse
na carruagem. Não exigiu que o mesmo saísse quando o cocheiro se acordou e
pôs-se a ordenar seus cavalos.
Quanto chão ela ainda
iria percorrer?
***
- VAMOS GAROTO! – gritou o
robgoblin chutando as costas de um menino preso a coleira. Como um cão.
O garoto despencou no
chão, já demasiado espancado.
- Você precisa me falar o
que estou rastreando! – respondeu ele, corajoso, com a boca ainda mastigando
terra.
- CO-MI-DA! – o robgoblin
agarrou seu pescoço e apertou-lhe a mandíbula, depois o jogou novamente no
chão.
Havia outros quatro
robgoblins com este.
- Bem que você falou que
o menino iria facilitar as coisas, Gatarghûn. Ele fareja como um lobo –
comentou um dos quatro restantes, uma figura cavernosa, sem uma das orelhas,
sem muitos dentes. A língua quase saltava para fora a cada sílaba pronunciada.
- Falei mesmo. O menino
veio da Mil Sussurros. Foi ensinado por fantasmas de lá. Consegue farejar tudo.
QUEREMOS COMIDA, GAROTO! PORCO SELVAGEM! LOBOS! GENTE! CARNE HUMANA, COMO A
SUA!
- Se arrancássemos seus
braços, seria difícil ele fugir.
- IDIOTA! Nós fugimos com
as pernas!
- Mas não desatamos nós
com elas.
Todos os robgoblins
concordaram.
- Está feito? – perguntou
um dos robgoblins pisando nas costas do garoto e desembainhando uma espada
enferrujada.
- NÃO! MEU ESCRAVO VAI
MORRER POR CAUSA DO FERIMENTO! – esse era Gatarghûn, senhor por direito do
garoto. Não tinha pena do escravo, mas lhe tinha a posse e queria que ele fosse
perfeito.
- Não seja tolo, Gatarghûn.
Cortamos e queimamos. O fogo extingue a doença.
- EU NÃO DEIXAREI QUE ELE
FUJA. NÃO HÁ NECESSIDADE DE CORTAR SEUS BRAÇOS!
- Estamos famintos.
Precisamos se energia se vamos enfrentar porcos selvagens, lobos ou gente.
Gatarghûn ficou indignado.
Pisoteou o chão, chutou pedras, ralhou.
- SEMPRE ASSIM! VOCÊS SE
APROVEITAM DA MINHA INTELIGÊNCIA! SEMPRE!
O senhor do garoto soltou
a coleira que foi, imediatamente, agarrada por outro robgoblin.
- QUE SEJA! CORTE-O NO
ANTEBRAÇO. NÃO O CORTE NA ALTURA DOS OMBROS. TENHO PLANOS DE COMO AMARRÁ-LO.
Todos concordaram.
Por um momento, os
robgoblins se estranharam. Todos queriam fazer o serviço de açougue.
- BASTA! SOU EU,
GATARGHÛN QUEM VOU FAZER ISSO!
- Mas eu tive a ideia!
- DANE-SE! SOU DONO DELE.
EU QUEM SEI O QUANTO TEM QUE CORTAR... –
aproximou o rosto medonho do garoto amedrontado e choroso. Segurou o frágil
braço e sussurrou - ...bem aqui – esboçou um sorriso maldoso e sua cabeça
explodiu espalhando restos de cérebro cinzento.
Uma lança fincara no chão
perto do menino. Ela ceifara a vida de Gatarghûn. Os demais robgoblins não
tiveram tempo para reagir. Outras lanças fizeram o mesmo com eles.
- Deixe um vivo, Golias –
uma voz feminina projetou-se de uma carruagem a certa distância.
Havia um meio gigante a
dez metros dos arruaceiros robgoblins. O corpo robusto, cheio de músculos e a
pele manchada de cinza como uma pedra. Era muito mais fácil notar a coloração
rochosa quando se observava Golias durante o dia. Ele disparava flechas do arco
feito sob medida. As flechas eram como lanças. Faziam estrago. Como a voz
soturna havia comandado, apenas um dos robgoblins sobreviveu.
***
Hildegrim estacionou a
carruagem próximo ao terreno sangrento de goblinóides. O robgoblin sobrevivente
tinha a perna lacerada por uma das flechas de Golias. Ele ouviu o barulho dos
pesados cascos dos cavalos a pisotearem as tripas e crânios de seus irmãos.
Depois, a própria carruagem esmagou o resto.
- Q-q-quem são vocês? –
gaguejou o sobrevivente.
A porta da carruagem
escancarou-se. Um vento frio antecipou-se lá de dentro, junto com a presença obscura de Ivny. Olhos vermelhos se projetaram na estrutura que a protegia da
luz do sol.
- De onde vocês vieram? –
perguntou Ivny, soturna.
- Somos da Madeira-viva –
o robgoblin respondeu sem titubear. Estava hipnotizado pelo olhar sangrento.
- Isso fica aonde?
- Em Asaron.
- Vocês vieram de tão
distante assim?
- Os druidas da
Madeira-viva nos expulsaram. Muitos grupos se separaram, caminhando para terras
remotas.
- Então, vocês são apenas
idiotas perdedores.
O robgoblin assentiu
afirmativamente.
- Em suas andanças, por
acaso, encontraram-se com um mago?
O robgoblin assentiu,
dessa vez negativamente.
- Eu vi um mago! – respondeu
a voz infantil, livrando-se do peso do corpo de Gartaghûn que havia se
debruçado sobre ele depois de ter a cabeça explodida – eu vi! – o garoto
levantou a mão, ansioso.
- Quem está falando? –
perguntou Ivny, pois não tinha visão de seu informante.
O menino levantou-se,
trôpego, ensanguentado, mas muito vivo:
- Me chamo Koku. Venho da
Floresta dos Mil Sussurros.
O garoto mais parecia um
macaco. Agia como um. Permaneceu bípede pelos primeiros três passos,
depois apoiou
o peso com a ajuda das mãos. Seus olhos perseguiam curiosos a silhueta dentro
da carruagem. O garoto tentava discernir algum cheiro.
- Quando você viu o mago?
- Há três sóis.
- Conheceu-o?
- Não. Eu o enxerguei,
sozinho. Parecia perdido. Estava com os robgoblins, não pude ajuda-lo. Se
tentasse fazê-lo, levaria os goblinóides comigo, para ele.
- Em que direção?
Koku apontou para adiante
a estrada.
- Para Zarast? – concluiu
Ivny, em tom de dúvida.
- Não sei. Não conheço
Zarast. Nunca sai de Mil Sussurros.
Ivny pensou em perguntar
como Koku havia chegado até ali, mas concluiu que a história seria demasiada
longa.
- Hildegrim, temos de
prosseguir – comandou sem olhar o cocheiro nos olhos.
- Sim, senhora –
respondeu o dono das rédeas. Parecia satisfeito com a ordem.
Golias não encontrou nos
robgoblins qualquer coisa que lhe servisse. Prendeu-se nas costas da carruagem.
Ivny voltou a olhar para o robgoblin.
- Você, venha! –
comandou. O robgoblin arrastou-se para dentro da carruagem. Comportado.
A carruagem esmagou mais
dos corpos .
- Espere! Espere! –
suplicou Koku. A carruagem não parou – por favor, não conheço nada! Não posso
voltar para Mil Sussurros! Por favor, me ajude a encontrar Khali! – o garoto
pensou: que idiotice! É claro que aquela criatura não conhecia seu amigo. E
perseguiu a carruagem, ignorado. Ofegou. Foi deixado para trás. Ia desistir,
até que teve uma ideia – Eu-eu posso rastreá-lo! – a carruagem parou – Posso leva-la
exatamente para onde ele está! Sei fazer isso. Sou um fantasma!
Por um momento, somente
ouvia-se o barulho secular da ventania. Depois a porta da carruagem
escancarou-se.
Koku entendeu o recado.
***
Estava escuro demais para
Koku, lá dentro. Ele sentiu o líquido quente aspergir sobre ele. Inundava o
chão. Tinha cheiro de morte. Enojou-se.
- Então, você é da
Floresta dos Mil Sussurros – comentou Ivny alternando entre mordidas – ouvi muitas
histórias de lá, quando era criança.
Koku surpreendeu-se:
então, aquilo na escuridão a devorar o robgoblin, já foi uma criança.
- Sim, sou – respondeu trêmulo.
- O que vocês fazem lá?
- Protegemos a floresta.
Somos guardiões! – respondeu com orgulho.
- E o que tem de especial
nessa floresta, se comparada com as centenas de outras espalhadas pelo mundo?
- É a floresta mais antiga! A natureza de lá
ainda é protegida pela magia do alto-elfos. Lá é o único caminho para
Ellidoränne, o reino deles.
- E porque saiu de lá?
- ...E-eu pretendo voltar
– gaguejou Koku, procurando uma resposta plausível – tam-também estou à procura
de alguém.
- Quem é esse tal de
Khali?
- Um amigo – respondeu sem
titubear – Um mestre! – corrigiu com ímpeto.
- Nossos caminhos se unem
até que eu encontre meu irmão – concluiu Ivny – depois nos dividimos.
- Então, o mago que
procuras é seu irmão?
- Sim.
- O que aconteceu entre
vocês?
Ivny calou-se. Permaneceu
assim durante toda uma refeição. Koku percebeu que nunca mais deveria fazer
esse tipo de pergunta.
- Abra a porta... – enfim
Ivny se comunicou.
Koku o fez. A luz do sol
invadiu. A espuma sanguínea, grossa, escorreu para fora da carruagem. Um baque
surdo e o corpo do robgoblin, vítima das presas, caiu nas tábuas. Koku o viu e
o terror lhe invadiu a face.
- Jogue este corpo fora,
depois saia da carruagem... – comandou Ivny.
Koku fez.
Como um macaco, escalou a
carruagem. Deparou-se com Golias, na traseira do veículo. Não queria conversar
agora. Na verdade, sabia que o meio gigante era de poucas palavras. Adequou-se
em cima de tudo. Protegeu o rosto do sol, olhou para os rastros que a carruagem
deixava. Viu o distanciar do cadáver goblinóide. Ele ia se tornando uma massa
pútrida avermelhada, disforme. Muito mais distante (e cada vez mais distante)
estava Koku de seu lar.
***
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