Capítulo 1
Nascido na lua rubra
Não mais que uma lua rubra surge no
céu a cada centena de ano, mas nessa história, ela se obrigará a aparecer três vezes. Um olho que sangra maus presságios de guerra é
temido nas terras altas, onde os reinos se protegem entre montanhas, muralhas e
fortalezas, mas, para o povo que venera a matança e que admira o sangue que
brota da pele, a lua rubra é o indício de que algo prestigiado irá nascer. Era
isso o que os bárbaros das terras amargas e inférteis de Ankhashadalûr
acreditavam: a lua que sangra trará um poderoso guerreiro que será batizado com
o licor carmesim do cadáver de sua mãe.
Naquelas terras, a barba ensopada de
sangue ocultava dentes oblíquos de uma arcada serrilhada, como abocanhes de
tubarão. Filetes escarlates borbotavam das gengivas do bárbaro e sangue jorrava
do ferimento que atravessara o ventre de uma mulher que se contorcia de dor
lancinante, deitada na lama, em gritos e esperneios que romperiam a frieza de
qualquer homem. Mas, os bárbaros das terras amargas não eram homens. Eram
monstros. E havia o prazer de provocar a dor física naquela futura e falecida
mãe.
Independente do prazer que aquele
bárbaro sentia ao provocar sofrimento, aquele sacrifício era, acima de tudo, um
elemento ritualístico. A mulher, suja, abraçou o alívio da morte quando sua
vista se esbranquiçou e ao fitar os olhos de seu algoz ainda conseguiu
expressar o prazer de ter executado sua tarefa de forma correta. Morreu com
dentes amarelos à mostra, mas seus ouvidos ainda escutaram o choro abafado do
bebê tirado à força de seu ventre.
“Um
menino!”
Comemorou o bárbaro bêbado de sangue,
salivando líquido vermelho por entre dentes. Com uma única mão era capaz de
cercar o bebê e levantá-lo friamente em direção ao olho da noite. A lua rubra.
A lua dos maus presságios.
“É
garoto de sangue frio!”
Os demais bárbaros se arrastaram da
escuridão que cercava a cena de abandono. Enxergaram o bebê que, como soubesse
que seu destino era o trono e que todos ali lhe deviam respeito, cessou o
pranto. O silêncio do episódio foi interrompido pelo acúmulo de brados
violentos. Os bárbaros regurgitavam suas comemorações, afinal, nas terras
amargas nascia o filho da lua rubra.
Mo'bagh, líder dos synkar |
Capítulo 2
Etimologia
Por causa da crença, banharam o bebê
apenas três dias após seu nascimento. Até lá, o sangue encarquilhou-se em sua
pele e lhe deu um ar de filho do demônio. O lavatório foi um rio de águas
rápidas, um dos braços de Aomame. Aomame (na língua synkar: ao, serpente, mame, leito), nas terras amargas, foi a serpente mitológica que
gerou seus filhos synkar, homens de pele parda e dentes serrilhados, vomitando
vida e desabando morta na selva de Chattur’gah. Do sangue de seu corpo a
apodrecer vazou a água pantanosa que criou o rio Aomame, a passagem fluvial que
agora limpava o sangue coagulado do filho da lua rubra.
Por mais de sete noites, apenas pela
alcunha de filho da lua rubra o bebê havia sido chamado. Mo’bagh, o líder das
regiões inférteis e suposto pai do mau presságio, resolveu procurar o
anacoreta. Embrenhou-se nas terras mais altas e esquecidas a procura daquele
que diziam saber sussurrar com os espíritos. Seu povo deu-lhe o nome de
Asafamana, mas as tribos de homens que os bárbaros de dentes serrilhados
cortavam a cabeça chamavam-no de Asafe, como se fossem mais íntimos e pudessem
falar apenas metade de sua identidade.
Asafe
escolhera, então, o nome para o filho da lua rubra. Dizia Mo’bagh, pai
invejado, que, pela primeira vez, vira o anacoreta admirar-se com a presença de
uma prole e, assombrado, mal pôde lhe prever uma nomeação. O guia dos espíritos
chamou-o de Asaulochte e isto significava, em synkar, asaul, sombra ou mortalha (a vestimenta que cobre o corpo de um
cadáver antes de ser sepultado), loch,
que antecedia qualquer adjetivo sinônimo de último ou derradeiro e o sufixo kithe, que significa “aquele que gera”.
“Aquele
que gera a sombra da morte” era um título mais do que agradável para os ouvidos
de Mo’bagh,
Por corrupção de língua e o desvio
entrecortado da langue dos bárbaros das terras amargas, o nome se estreitou com
os anos. Parte do sufixo chte passara
a não ser pronunciado e o prefixo a-
foi abandonado, pois os bárbaros de Ankhashadalûr valorizam o som sibilante do
fonema s-. Passaram a sibilar, então,
o nome Saulot, o filho da lua rubra.
Capítulo 3
A filha da loba
Saulot não era guerreiro. Os bárbaros de dentes
serrilhados passaram a sussurrar com cuidado o bastante para que as fofocas não
chegassem aos ouvidos de Mo’bagh, seu líder, mas esses sussurros nunca
precisaram aguçar a mente do pai da lua rubra, pois, desde infante os bárbaros
das terras amargas mostravam-se robustos, frios e furiosos, como a prole de um
demônio deveria ser e este não era o caso de Saulot.
Pálido
e franzino, sempre com a carne lhe faltando nos arredores, Saulot era fraco e
doente. Contavam-lhe as pequenas e frágeis costelas, o cabelo fino como o de um
ancião e uma tosse seca que importunava Mo’bagh todas as noites. Mal lhe
sobrava forças para erguer o machado e nem mesmo um galho lhe parecia um
brinquedo de agressão nas mãos. Perdia o fôlego com facilidade e logo
mostrou-se inapto caçador.
Inegável,
entretanto, era a sua perspicácia. Compreendia tudo apenas por mera observação
e tinha imaginação fértil. Ele teorizava – cientificamente, embora não soubesse
de fato o que essa palavra significava – a razão do porquê o vento soprava de
certa direção, porque as cavernas profundas repetiam exatamente o que lhes era
pronunciado à boca, porque a saraivada de pássaros sempre voava na mesma direção
quando o inverno chegava, porque o rio Aomame tinha tantos braços e suas terras
eram pantanosas e também porque a maioria das terras amargas eram inférteis e
as vísceras das vítimas inimigas ajudavam no plantio – não por métodos
ritualísticos, mas por pura naturalidade das coisas.
Esses
assuntos incomodavam seu pai, embora alguns guerreiros da tribo invejassem essa
perspicácia e relacionavam à essa habilidade o fato de o pequeno garoto ter a
sina de ser deus, criador de vida e morte e, já tão cedo, tentasse entender seu
destino divino. Mo’bagh, entretanto, queria um filho guerreiro, que lutasse
junto a ele em suas caças e que tivesse talento, principalmente em trazer o
terror para as tribos inimigas dos bárbaros de dentes serrilhados.
Certo
dia, os bárbaros de dentes serrilhados obtiveram vitória sob a tribo do lobo e,
nessas terras afastadas mutilaram homens, estupraram mulheres e profanaram as
crenças na mãe-lobo, mijando em seus totens e queimando seus rústicos templos.
Fizeram, depois, o que faziam quando saíam vitoriosos de uma luta contra uma
tribo inimiga: selecionaram os guerreiros mais fortes e as mulheres mais belas,
os amarraram em longos troncos de árvores pesadas e os fizeram marchar para as
terras amargas para sacrificá-los de forma medonha e injusta, lhes cortando a
cabeça e as fazendo rolar pelos degraus da magnífica pirâmide erguida para o
deus Kaz, senhor das matanças.
Trouxeram
de lá o que eles chamavam de “a filha da loba”, uma garota que, como Saulot,
havia nascido destinada a guiar seu povo – para a tribo do lobo, através de
sabedoria e compreensão – e a mantiveram numa jaula, maltratada como um lobo
seria naquelas terras amargas. Eles a assistiram definhar aos poucos e
invocavam a presença da mãe da garota – a loba da tribo – para ser desafiada e
derrotada em solo amaldiçoado pelo inimigo.
Não
demorou para que Saulot e sua curiosidade optassem por se encontrar com a filha
da loba às escondidas, nas noites de mais densa escuridão, quando a lua não
passava de uma fina foice tortuosa no céu. Ela lhe contava sobre outros
costumes e ele lhe dava de comer os restos de carne que sobrava dos banquetes.
Entre
um assunto e outro, a filha da loba contou a Saulot sobre as terras distantes e
seus guerreiros. Saulot impressionou-se. Ele desconfiava que existia algo além
da vastidão selvagem, mas imaginava que aquelas terras pertenciam aos pássaros
e aos deuses. Ouviu falar sobre os feitos de grandes heróis, sobre um produto
forjado em chamas e pedras mais resistentes que os cavernosos lares esculpidos
nas montanhas e também sobre magia! A isto, o filho da lua rubra deu bastante
atenção e sua pretensão passou a ser, a partir daí, conhecer mais desses segredos
milagrosos.
Os assuntos com a filha da loba encerraram-se
quando Mo’bagh descobriu a aproximação de seu filho com a escolhida de outra
religião. O pai foi ter com o filho e Saulot, empolgado com a possibilidade de mencionar
à Mo’bagh a existência de tais arsenais, contou-lhe tudo sobre o aço e a magia.
Recebeu, como resposta, a cabeça da filha da loba, gritos e surras violentos.
-
Você deveria ser o filho da lua rubra! – o pai urrava – a única conversa que
você deveria ter era com a boceta da inimiga e o sangue que você a faria
jorrar! Você, Saulot, não é meu filho, nem filho da lua rubra, você é maldição
do nosso povo!
Saulot já havia derramado lágrimas
de dor física antes, mas aquelas eram diferentes, vinham do peito e o angustiavam,
procuravam passagem pela garganta, mas acabavam por jorrar pelos olhos, como se
estes fossem, naturalmente, o único caminho. Descobriu o sentido literal da
palavra obrigação e decidiu, ali, nunca mais decepcionar seu pai, nem a lua
rubra – seja ela quem fosse.
Capítulo 4
O avatar da mãe loba
Saulot
encontrou um jeito perspicaz de ser um bom caçador. Guiava-se pela perspicácia.
Enxergava o mundo de forma diferente. Não seguia os rastros das corças, mas
sabia a hora e o lugar que estas iriam saciar a sede. Não sabia pescar com o
arpão, mas sabia guiar os peixes para sua armadilha. Não tinha robustez para
enfrentar um lobo, mas superava a inteligência de caça do animal e, assim, ganhava
vantagem ao confrontá-lo.
Saulot, jovem |
No
inverno tropical de Chattur’gah, no ano em que Saulot alcançara a adolescência,
os bárbaros de dentes serrilhados passaram a temer a lenda da mãe loba como uma
maldição. O aspecto selvagem e divino que era o totem da tribo do lobo – antes ferida
e quase aniquilada pela tribo de Mo’bagh – mandara para a selva seu avatar: um
lobo atroz gigantesco e de hálito tão frio que era capaz de congelar carne e
sangue e, com sua presença, carregou uma frente fria que prejudicava ainda mais
o crescimento de qualquer semente plantada naquele terreno infértil.
Ankhashadalûr experimentava, pela primeira vez, um inverno feito de neve e
branquidão.
Os synkar tentariam suportar aquela
provação pelo tempo que pudessem, mas Mo’bagh visitara novamente o sábio Asafe
e, ao líder da tribo de bárbaros de dentes serrilhados, o anacoreta revelou que
de nada adiantariam centenas de sacrifícios humanos, nem as preces e o
fanatismo de sua tribo para com Kaz, a sina dos synkar era morrer congelados
pela vingança divina. Como resposta à lamentação desesperada de Mo’bagh, Asafe
lhe revelou que a única forma de deter essa sina seria caçando e matando o
avatar da mãe loba e foi isso que o líder dos synkar decidiu fazer.
Reuniram-se
os bárbaros mais fortes, com suas armas profanadas pelo sangue de centenas de
vítimas e, enfrentando a neve e forte ventania que destruía a selva de Chattur’gah,
abandonaram o lar prometendo fazer todo o possível, inclusive morrer, tentando
eliminar o avatar da mãe loba. Neste grupo, Mo’bagh estava e também Saulot, não
por escolha própria, mas porque o líder dos synkar desejou que se o destino o
desafiava, desafiaria também a sua linhagem e, se ele próprio morresse, que seu
filho também tivesse a mesma sina ou triunfasse para que se tornasse digno.
E assim os perigos desconhecidos de
uma nevasca foram enfrentados pela tribo que fundara Ankhashadalûr. Muitos
morreram, outros por resistência física sobrenatural sobreviveram e, juntos a
estes, o franzino Saulot permaneceu, contra todas as possibilidades, vivo. Os
campeões synkar diziam que o filho da lua rubra nasceu do frio, seu sangue era
gélido como o vento que se propagava e sua pele era álgida como a neve, por
isso, o garoto não precisava do calor que os outros bárbaros tanto necessitavam
para a sobrevivência.
Passaram-se
semanas até que os bárbaros conseguissem usar suas técnicas de rastreio na neve
e nas pedras geladas das montanhas ao redor de Ankhashadalûr e, finalmente,
reconheceram uma pegada lupina sobrenaturalmente maior que a de um lobo comum.
O avatar da mãe lobo não demoraria a ser encontrado e aquilo preencheu os
corações furiosos dos synkar de esperança, deleitando-se com a possibilidade de
vingança diante tanta morte e maldição. Pouco mais de uma dezena de bárbaros
havia sobrevivido às andanças e estes chegaram à fresta cavernosa da montanha,
tão larga e tão malcheirosa de cadáveres e ossos que os alertou de que seria
ali o lugar do confronto.
Eles se banharam de carniça, afiaram
seus machados e mantiveram-se quietos durante horas até que o lobo atroz viesse
ao encontro da caverna e torna-se vítima de tão demorada caça. Foi exatamente
isso que aconteceu naquela noite, quando a lua se tornou sangrenta novamente –
embora os bárbaros ali ocultados na caverna jamais tiveram a oportunidade de
ver o olho carmesim assistir o embate naquele céu noturno.
A
luta começou e as presas da loba atroz fatiaram a carne dos bárbaros como foice
e lança. Os machados dos synkar pouco lhe faziam ferimentos, pois o pêlo era
espesso e sua carne tão dura quanto pedra. Os bárbaros mantiveram a furiosa
batalha de qualquer jeito e, pressentindo a derrota, Mo’bagh mergulhou num ódio
mortal e furioso, um frenesi incansável de batalha que fez jorrar da cabeça e
do torso da enorme criatura tanto sangue que os bárbaros foram obrigados a
lutar debaixo da chuva rubra.
Mesmo
diante um guerreiro de robustez descomunal, o avatar da mãe loba mostrou-se
superior, abocanhando-o e o trespassando com presas afiadas que fizeram os
ossos do líder synkar estalar de esmagamento. A criatura rosnou ainda com a
carne de Mo’bagh entre os dentes e o jogou contra a parede num baque ecoante e
mortal. O lobo atroz já podia sentir os machados teimosos mutilarem sua pele,
mas seu faro ainda encontrava vida em Mo’bagh, a criatura pretendia devorá-lo
por inteiro não fosse a interrupção de Saulot.
O jovem franzino manteve-se diante
do corpo do pai mutilado. O coração empurrando as lágrimas de dor e lamentação
para a garganta e elas, teimosamente, jorrando pelos olhos como cascata. Saulot
preparou-se para a morte e fitou os olhos amarelos da criatura enquanto o medo
o consumia, então, ele percebeu algo: o avatar da mãe loba confrontava um
repentino terror ao retribuir o olhar com ele. Era um medo que se tornava cada
segundo maior até converter-se em um pânico trêmulo e, finalmente, a uma dor
sobrenaturalmente física que fez a criatura sangrar pelos olhos e pelas
gengivas ainda preenchidas pela carne dos bárbaros devorados. O lobo atroz
inquieto não revidava a morte e foi o campeão Horax quem, por último, deu-lhe
um golpe no pescoço, com seu poderoso machado largo, e fez a cabeça do avatar
rolar no chão.
Saulot debruçara-se sobre o pai após
a luta – pelo menos o que restara dele – e Mo’bagh sequer conseguiu abrir os
olhos para ver o final vitorioso ou a influência de seu filho nesta. Apenas
metade da meia dúzia de bárbaros sobreviventes pôde sentir a presença de Saulot
na luta – Horax a sentiu – e, por isso, de imediato não declararam o filho da
lua rubra como o responsável pela derrota da criatura.
Partiram
a carne da loba atroz, lhe cortaram os tendões, esperaram avançar a noite e, no
outro dia, após a hora do sol à pino, marcharam para Ankhashadalûr novamente.
Capítulo 5
A vitória da inveja
E enquanto voltavam, os sete
bárbaros de vinte, puderam notar o ar se aquecer no ambiente. No oitavo dia de
viagem notaram a relva colorir de verde o território que antes era branquidão
maldita, no nono as árvores já tinham folhas e gavinhas e trepadeiras já se
enrolavam a tudo. No décimo dia o sol quente já não era um castigo e as trilhas
já podiam ser vistas. Os campeões bárbaros voltaram à Ankhashadalûr vitoriosos
e já os esperavam com um banquete de sangue e carne.
Foi
de Radrath, o xamã dos synkar, a ideia de a tribo se preparar para recebê-los. “Os
novos dias são abençoados! Nossas terras, regadas de tanto sangue, agora
permitem que as sementes germinem. Eu sabia que vocês haviam sido vitoriosos
assim que pude notar a mudança repentina no ar”. Os bárbaros de dentes
serrilhados festejaram naquela o resto do dia e após o avançar da noite e em
uma pira imensa os escravos dos synkar foram jogados e seus gritos de
sofrimento tornaram-se o cântico à Kaz.
Ao redor dos vestígios da maldade
noturna, Horax contava triunfante a vitória sobre o avatar da mãe loba,
narrando, com detalhes, a forma como seu machado arrancara a cabeça da criatura
com uma força impulsionada pela vingança de esta ter eliminado Mo’bagh, o líder
da tribo. Horax era o centro das atenções até que um dos campeões revelou o
episódio sobrenatural que ocorrera entre Saulot e o lobo atroz. O título de
filho da lua rubra, nessa noite, foi repetido diversas vezes e tanto era o peso
dessa designação que os bárbaros citaram o nome de Saulot como o próximo líder
dos synkar.
Horax
achou a possível nomeação de Saulot injusta, pois acreditava que era ele próprio
quem merecia a tal, após ter sido o responsável pelo arrebatamento do lobo. Não
fosse ele, afinal, a criatura havia de ter readquirido forças para atacar de forma
fulminante outra vez. Contra a decisão de toda a tribo, porém, ele nada poderia
fazer. Entretanto, uma forte aliança com o xamã Radrath lhe foi oferecida.
Horax, campeão de Ankhashadalûr |
Radrath que, no amanhecer do dia
posterior, chamou Horax para sua cabana e explicou seu plano:
-
Kaz revelou-me, em sonho, que é você,
Horax, quem deve liderar os synkar e Saulot será o responsável por isso.
-
Eu sabia que merecia o título, velho Radrath, mas minha opinião de nada vale
contra a reunião de todos os votos da tribo. Eles ainda acreditam nas profecias
da lua rubra, embora, por tantas vezes, Saulot se mostrou o mais inapto dos
synkar.
-
Por isso, o próximo líder será você, Horax, e resolveremos isso através da
violência, como nossa tribo sempre o fez. É símbolo para Kaz que tudo seja
resolvido pela lei do mais forte e é contra o próprio Saulot que você
guerreará!
Horax
confiava em sua própria perícia de combate. Ele era um campeão da tribo e sabia
que poderia derrotar Saulot facilmente, mas algo o fez duvidar disso e Radrath
pôde ver o medo estampado na cara do bárbaro.
-
Meu senhor, Radrath, meus pais ensinaram-me a aceitar suas previsões, mas temo
a morte pois sei que meu machado não será o suficiente. Eu o vi. Vi sua
presença contaminar o lobo atroz de medo e receio que eu tenha uma morte muito
mais rápida que a do avatar.
-
Não tema, Horax, pois em meus sonhos, Kaz também me proporcionou conhecimento
deste unguento – Radrath mostrou à Horax uma cuia com um creme pastoso e
esverdeado, tão fétido quanto vísceras gordurosas – passarás este unguento nos
olhos e o olhar da morte de Saulot de nada adiantará.
E
assim, ficou combinado.
Radrath, xamã dos synkar |
Radrath,
entretanto, nunca sonhara com Kaz e o preparo do unguento lhe foi ensinado por
uma velha bruxa cega e desforme da tribo da serpente e tinha, mesmo, magia
contida nele. O velho xamã, na verdade, temeu perder seu posto de líder
religioso para Saulot. Sendo, o próprio Radrath, o único indivíduo da tribo que
tinha a capacidade de receber o chamado dos espíritos e sonhar com previsões,
além de ser o responsável pela prática da bruxaria de sangue que lhe era a
garantia de ser o representante de deus, ele receava ser dispensado pela tribo
de seu ofício xamânico, pois estava claro que Saulot herdara do próprio Kaz um
poder muito maior.
A
única forma de impedir isso era matando o filho da lua rubra.
Naquela noite, na alta superfície da
pirâmide de onde rolavam as cabeças das vítimas dos synkar, Radrath revelara
para sua tribo que Horax deveria ser o líder legítimo e que aquele lugar, tão
alto quanto o céu, seria o palco da luta que provaria essa premonição. Saulot e
Horax iriam combater até a morte.
Os
synkar, acostumados com a vida em fúria, violência e sangue, sequer
questionaram essa decisão. Kaz concederia poder para aquele que deveria
triunfar. Três noites após estavam o filho da lua rubra e o campeão dos synkar
em cima da pirâmide, preparados para o combate.
Dias antes da luta, Saulot temia o
confronto com o campeão, mas logo tornara-se omisso à decisão de Radrath, assim
como era com as decisões de seu pai. Que ele morresse, então, se fosse essa a
resposta para a sua vida inútil ou que Kaz lhe desse a chance de vitória, caso
ele representasse algo para o deus da matança.
Saulot
armou-se com machado e escudo de madeira, mas, como defesa, este último nada
lhe adiantou pois, na primeira investida de Horax, seu machado grande rompeu a
proteção. Horax havia, como o combinado, enlameado o rosto com o unguento de
Radrath e agora olhava agressivo e destemido para sua vítima tentando se
defender debilmente com um machado vezes menor que sua poderosa arma. A vitória
seria alcançada facilmente.
Saulot
deixou o machado de guerra cair de suas mãos quando Horax varreu suas pernas
com um chute. Agora, o filho da lua rubra era uma caça dominada pelo caçador,
pisoteado no peito para se manter imóvel ao golpe de misericórdia do campeão
synkar. Naquele último momento, Horax vislumbrava a vitória nos olhos de Saulot
quando foi surpreendido pelos olhos maléficos que ofendiam sua existência.
Horax tremeu. O unguento em seu
rosto de nada adiantara. Saulot mantinha-se perplexo, ainda ofegante, mal
acreditando que não estava definitivamente morto, percebeu a reação de seu
inimigo: igual à do lobo atroz. Ele iria morrer e Saulot seria o líder dos
synkar. Passo a passo Horax afastava-se cuidadoso, buscando brechas para correr
e o faria se não estivesse rodeado pelo círculo de bárbaros que, agora,
pareciam todos inimigos. Saulot erguera-se e aproximava-se de Horax ainda
débil, assistindo os olhos do campeão sangrarem.
-
Golpei-o Horax! AGORA! – gritou Radrath, como se lançasse uma terrível maldição
xamânica.
Horax segurou seu machado grande e
pesado com pouca firmeza, ergueu-o e atacou. A lâmina atingiu o pescoço de
Saulot e o sangue frio jorrou fácil. Toda a plateia arregalou os olhos em
espanto. Débil, Saulot estava e, agora, com a surpresa do tal golpe, titubeava
atordoado. Afastou-se alguns metros, tonto, e caiu de joelhos se afogando no
próprio sangue. Observou sua tribo, os bárbaros de dentes serrilhados,
assistindo sua derrota. Deixou-se cair no chão da pirâmide e olhou para o céu
noturno. A lua não era rubra.
Capítulo 6
A coroação dos mortos
Horax sentava-se no trono em cima da
pirâmide. Dezenas de degraus de escadaria abaixo, os synkar proclamavam seu
novo líder e Radrath o coroava com uma coroa feita de dentes, a partir dali, a
representação da autoridade da tribo. Acima de tudo, para a surpresa de todos,
estava a lua rubra, assistindo vigilante e abençoando o reinado do campeão de
Ankhashadalûr. Os bárbaros urravam em histeria gloriosa, pois aquela era a
prova que todos desejavam: o legítimo líder dos bárbaros de dentes serrilhados.
Mas, enganavam-se. A lua rubra não
assistia a eles.
-
Levante-se, Saulot – primeiro foi uma única voz a sussurrar, depois foi
acompanhada por uma dezena de outras, logo transformaram-se em centenas e,
finalmente milhares. Saulot acordou. Nu e jogado em cima de incontáveis corpos
e cabeças apodrecidas. O lugar no qual os synkar jogavam as vítimas de seus
sacrifícios. Era uma inúmera muralha de corpos cinzentos e inquietos – levante-se,
Saulot – eles continuavam a sussurrar.
Saulot sentiu a ferida em seu
pescoço. Estava vivo! Imaginara que o golpe não havia sido mortal o suficiente
e que os bárbaros de sua tribo não se responsabilizaram em analisar o corpo.
Nunca faziam, afinal, suas cabeças eram cortadas. Talvez, pura sorte, o filho
da lua rubra pensou, mas não era: os bárbaros que arrastaram o corpo de Saulot até
aquelas instâncias temeram perturbá-lo após terem presenciado o terrível olhar
de morte que este propagava. Temeram que o corpo voltasse à vida e os matasse.
Eles estavam certos, Saulot, de uma forma subjetiva, voltava, agora, à vida.
Saulot
olhou os arredores. Um exército de presenças exigindo que ele sobrevivesse. “Provavelmente
estou muito febril, por isso, vejo e escuto alucinações” pensou ele enquanto
escutava os sussurros daqueles incontáveis corpos e, vez por outra, os via
mexer como se nadando uns por cima dos outros. Levantou-se, finalmente, e tomou
um fôlego de vivência. O céu estava escuro, porém manchado de outra cor.
Procurou a lua. Ela estava rubra.
O filho amaldiçoado andou, trôpego, em cima da horda de cadáveres. Ele sabia do
sentimento que tinha em seu coração agora, mais do que tudo: vingança. Vingança
para com o seu povo. Ele não devia nada a ele, não devia nada à Kaz, o deus que
o viu sucumbir em combate. Ele decidiu, ali, seguir divindade nenhuma. Guiado
pela luz vermelha da lua, ele soube que sua vingança viria com o tempo. O tempo
que pouco lhe sobrava. “Ah! Quem dera ser imortal!” refletiu. Quanto a isso, nada
podia fazer, e, enquanto caminhava a esmo, decidira algo: deveria dominar os
segredos da magia.
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