sexta-feira, 19 de maio de 2017

Verum Fabulae: Saulot



Capítulo 1
Nascido na lua rubra

            Não mais que uma lua rubra surge no céu a cada centena de ano, mas nessa história, ela se obrigará a aparecer três vezes. Um olho que sangra maus presságios de guerra é temido nas terras altas, onde os reinos se protegem entre montanhas, muralhas e fortalezas, mas, para o povo que venera a matança e que admira o sangue que brota da pele, a lua rubra é o indício de que algo prestigiado irá nascer. Era isso o que os bárbaros das terras amargas e inférteis de Ankhashadalûr acreditavam: a lua que sangra trará um poderoso guerreiro que será batizado com o licor carmesim do cadáver de sua mãe.

            Naquelas terras, a barba ensopada de sangue ocultava dentes oblíquos de uma arcada serrilhada, como abocanhes de tubarão. Filetes escarlates borbotavam das gengivas do bárbaro e sangue jorrava do ferimento que atravessara o ventre de uma mulher que se contorcia de dor lancinante, deitada na lama, em gritos e esperneios que romperiam a frieza de qualquer homem. Mas, os bárbaros das terras amargas não eram homens. Eram monstros. E havia o prazer de provocar a dor física naquela futura e falecida mãe.

            Independente do prazer que aquele bárbaro sentia ao provocar sofrimento, aquele sacrifício era, acima de tudo, um elemento ritualístico. A mulher, suja, abraçou o alívio da morte quando sua vista se esbranquiçou e ao fitar os olhos de seu algoz ainda conseguiu expressar o prazer de ter executado sua tarefa de forma correta. Morreu com dentes amarelos à mostra, mas seus ouvidos ainda escutaram o choro abafado do bebê tirado à força de seu ventre.

“Um menino!”

            Comemorou o bárbaro bêbado de sangue, salivando líquido vermelho por entre dentes. Com uma única mão era capaz de cercar o bebê e levantá-lo friamente em direção ao olho da noite. A lua rubra. A lua dos maus presságios.

“É garoto de sangue frio!”

            Os demais bárbaros se arrastaram da escuridão que cercava a cena de abandono. Enxergaram o bebê que, como soubesse que seu destino era o trono e que todos ali lhe deviam respeito, cessou o pranto. O silêncio do episódio foi interrompido pelo acúmulo de brados violentos. Os bárbaros regurgitavam suas comemorações, afinal, nas terras amargas nascia o filho da lua rubra.

Mo'bagh, líder dos synkar

 
Capítulo 2
Etimologia

            Por causa da crença, banharam o bebê apenas três dias após seu nascimento. Até lá, o sangue encarquilhou-se em sua pele e lhe deu um ar de filho do demônio. O lavatório foi um rio de águas rápidas, um dos braços de Aomame. Aomame (na língua synkar: ao, serpente, mame, leito), nas terras amargas, foi a serpente mitológica que gerou seus filhos synkar, homens de pele parda e dentes serrilhados, vomitando vida e desabando morta na selva de Chattur’gah. Do sangue de seu corpo a apodrecer vazou a água pantanosa que criou o rio Aomame, a passagem fluvial que agora limpava o sangue coagulado do filho da lua rubra.

            Por mais de sete noites, apenas pela alcunha de filho da lua rubra o bebê havia sido chamado. Mo’bagh, o líder das regiões inférteis e suposto pai do mau presságio, resolveu procurar o anacoreta. Embrenhou-se nas terras mais altas e esquecidas a procura daquele que diziam saber sussurrar com os espíritos. Seu povo deu-lhe o nome de Asafamana, mas as tribos de homens que os bárbaros de dentes serrilhados cortavam a cabeça chamavam-no de Asafe, como se fossem mais íntimos e pudessem falar apenas metade de sua identidade.

            Asafe escolhera, então, o nome para o filho da lua rubra. Dizia Mo’bagh, pai invejado, que, pela primeira vez, vira o anacoreta admirar-se com a presença de uma prole e, assombrado, mal pôde lhe prever uma nomeação. O guia dos espíritos chamou-o de Asaulochte e isto significava, em synkar, asaul, sombra ou mortalha (a vestimenta que cobre o corpo de um cadáver antes de ser sepultado), loch, que antecedia qualquer adjetivo sinônimo de último ou derradeiro e o sufixo kithe, que significa “aquele que gera”.
“Aquele que gera a sombra da morte” era um título mais do que agradável para os ouvidos de Mo’bagh,

            Por corrupção de língua e o desvio entrecortado da langue dos bárbaros das terras amargas, o nome se estreitou com os anos. Parte do sufixo chte passara a não ser pronunciado e o prefixo a- foi abandonado, pois os bárbaros de Ankhashadalûr valorizam o som sibilante do fonema s-. Passaram a sibilar, então, o nome Saulot, o filho da lua rubra.

Capítulo 3
A filha da loba

            Saulot não era guerreiro. Os bárbaros de dentes serrilhados passaram a sussurrar com cuidado o bastante para que as fofocas não chegassem aos ouvidos de Mo’bagh, seu líder, mas esses sussurros nunca precisaram aguçar a mente do pai da lua rubra, pois, desde infante os bárbaros das terras amargas mostravam-se robustos, frios e furiosos, como a prole de um demônio deveria ser e este não era o caso de Saulot.

Pálido e franzino, sempre com a carne lhe faltando nos arredores, Saulot era fraco e doente. Contavam-lhe as pequenas e frágeis costelas, o cabelo fino como o de um ancião e uma tosse seca que importunava Mo’bagh todas as noites. Mal lhe sobrava forças para erguer o machado e nem mesmo um galho lhe parecia um brinquedo de agressão nas mãos. Perdia o fôlego com facilidade e logo mostrou-se inapto caçador.

            Inegável, entretanto, era a sua perspicácia. Compreendia tudo apenas por mera observação e tinha imaginação fértil. Ele teorizava – cientificamente, embora não soubesse de fato o que essa palavra significava – a razão do porquê o vento soprava de certa direção, porque as cavernas profundas repetiam exatamente o que lhes era pronunciado à boca, porque a saraivada de pássaros sempre voava na mesma direção quando o inverno chegava, porque o rio Aomame tinha tantos braços e suas terras eram pantanosas e também porque a maioria das terras amargas eram inférteis e as vísceras das vítimas inimigas ajudavam no plantio – não por métodos ritualísticos, mas por pura naturalidade das coisas.

Esses assuntos incomodavam seu pai, embora alguns guerreiros da tribo invejassem essa perspicácia e relacionavam à essa habilidade o fato de o pequeno garoto ter a sina de ser deus, criador de vida e morte e, já tão cedo, tentasse entender seu destino divino. Mo’bagh, entretanto, queria um filho guerreiro, que lutasse junto a ele em suas caças e que tivesse talento, principalmente em trazer o terror para as tribos inimigas dos bárbaros de dentes serrilhados.

Certo dia, os bárbaros de dentes serrilhados obtiveram vitória sob a tribo do lobo e, nessas terras afastadas mutilaram homens, estupraram mulheres e profanaram as crenças na mãe-lobo, mijando em seus totens e queimando seus rústicos templos. Fizeram, depois, o que faziam quando saíam vitoriosos de uma luta contra uma tribo inimiga: selecionaram os guerreiros mais fortes e as mulheres mais belas, os amarraram em longos troncos de árvores pesadas e os fizeram marchar para as terras amargas para sacrificá-los de forma medonha e injusta, lhes cortando a cabeça e as fazendo rolar pelos degraus da magnífica pirâmide erguida para o deus Kaz, senhor das matanças.

            Trouxeram de lá o que eles chamavam de “a filha da loba”, uma garota que, como Saulot, havia nascido destinada a guiar seu povo – para a tribo do lobo, através de sabedoria e compreensão – e a mantiveram numa jaula, maltratada como um lobo seria naquelas terras amargas. Eles a assistiram definhar aos poucos e invocavam a presença da mãe da garota – a loba da tribo – para ser desafiada e derrotada em solo amaldiçoado pelo inimigo. 

Não demorou para que Saulot e sua curiosidade optassem por se encontrar com a filha da loba às escondidas, nas noites de mais densa escuridão, quando a lua não passava de uma fina foice tortuosa no céu. Ela lhe contava sobre outros costumes e ele lhe dava de comer os restos de carne que sobrava dos banquetes.

Entre um assunto e outro, a filha da loba contou a Saulot sobre as terras distantes e seus guerreiros. Saulot impressionou-se. Ele desconfiava que existia algo além da vastidão selvagem, mas imaginava que aquelas terras pertenciam aos pássaros e aos deuses. Ouviu falar sobre os feitos de grandes heróis, sobre um produto forjado em chamas e pedras mais resistentes que os cavernosos lares esculpidos nas montanhas e também sobre magia! A isto, o filho da lua rubra deu bastante atenção e sua pretensão passou a ser, a partir daí, conhecer mais desses segredos milagrosos.

            Os assuntos com a filha da loba encerraram-se quando Mo’bagh descobriu a aproximação de seu filho com a escolhida de outra religião. O pai foi ter com o filho e Saulot, empolgado com a possibilidade de mencionar à Mo’bagh a existência de tais arsenais, contou-lhe tudo sobre o aço e a magia. Recebeu, como resposta, a cabeça da filha da loba, gritos e surras violentos.

- Você deveria ser o filho da lua rubra! – o pai urrava – a única conversa que você deveria ter era com a boceta da inimiga e o sangue que você a faria jorrar! Você, Saulot, não é meu filho, nem filho da lua rubra, você é maldição do nosso povo!

            Saulot já havia derramado lágrimas de dor física antes, mas aquelas eram diferentes, vinham do peito e o angustiavam, procuravam passagem pela garganta, mas acabavam por jorrar pelos olhos, como se estes fossem, naturalmente, o único caminho. Descobriu o sentido literal da palavra obrigação e decidiu, ali, nunca mais decepcionar seu pai, nem a lua rubra – seja ela quem fosse.

Capítulo 4
O avatar da mãe loba

            Saulot encontrou um jeito perspicaz de ser um bom caçador. Guiava-se pela perspicácia. Enxergava o mundo de forma diferente. Não seguia os rastros das corças, mas sabia a hora e o lugar que estas iriam saciar a sede. Não sabia pescar com o arpão, mas sabia guiar os peixes para sua armadilha. Não tinha robustez para enfrentar um lobo, mas superava a inteligência de caça do animal e, assim, ganhava vantagem ao confrontá-lo.  

Saulot, jovem 

No inverno tropical de Chattur’gah, no ano em que Saulot alcançara a adolescência, os bárbaros de dentes serrilhados passaram a temer a lenda da mãe loba como uma maldição. O aspecto selvagem e divino que era o totem da tribo do lobo – antes ferida e quase aniquilada pela tribo de Mo’bagh – mandara para a selva seu avatar: um lobo atroz gigantesco e de hálito tão frio que era capaz de congelar carne e sangue e, com sua presença, carregou uma frente fria que prejudicava ainda mais o crescimento de qualquer semente plantada naquele terreno infértil. Ankhashadalûr experimentava, pela primeira vez, um inverno feito de neve e branquidão.

            Os synkar tentariam suportar aquela provação pelo tempo que pudessem, mas Mo’bagh visitara novamente o sábio Asafe e, ao líder da tribo de bárbaros de dentes serrilhados, o anacoreta revelou que de nada adiantariam centenas de sacrifícios humanos, nem as preces e o fanatismo de sua tribo para com Kaz, a sina dos synkar era morrer congelados pela vingança divina. Como resposta à lamentação desesperada de Mo’bagh, Asafe lhe revelou que a única forma de deter essa sina seria caçando e matando o avatar da mãe loba e foi isso que o líder dos synkar decidiu fazer.

Reuniram-se os bárbaros mais fortes, com suas armas profanadas pelo sangue de centenas de vítimas e, enfrentando a neve e forte ventania que destruía a selva de Chattur’gah, abandonaram o lar prometendo fazer todo o possível, inclusive morrer, tentando eliminar o avatar da mãe loba. Neste grupo, Mo’bagh estava e também Saulot, não por escolha própria, mas porque o líder dos synkar desejou que se o destino o desafiava, desafiaria também a sua linhagem e, se ele próprio morresse, que seu filho também tivesse a mesma sina ou triunfasse para que se tornasse digno.

            E assim os perigos desconhecidos de uma nevasca foram enfrentados pela tribo que fundara Ankhashadalûr. Muitos morreram, outros por resistência física sobrenatural sobreviveram e, juntos a estes, o franzino Saulot permaneceu, contra todas as possibilidades, vivo. Os campeões synkar diziam que o filho da lua rubra nasceu do frio, seu sangue era gélido como o vento que se propagava e sua pele era álgida como a neve, por isso, o garoto não precisava do calor que os outros bárbaros tanto necessitavam para a sobrevivência.

Passaram-se semanas até que os bárbaros conseguissem usar suas técnicas de rastreio na neve e nas pedras geladas das montanhas ao redor de Ankhashadalûr e, finalmente, reconheceram uma pegada lupina sobrenaturalmente maior que a de um lobo comum. O avatar da mãe lobo não demoraria a ser encontrado e aquilo preencheu os corações furiosos dos synkar de esperança, deleitando-se com a possibilidade de vingança diante tanta morte e maldição. Pouco mais de uma dezena de bárbaros havia sobrevivido às andanças e estes chegaram à fresta cavernosa da montanha, tão larga e tão malcheirosa de cadáveres e ossos que os alertou de que seria ali o lugar do confronto.

            Eles se banharam de carniça, afiaram seus machados e mantiveram-se quietos durante horas até que o lobo atroz viesse ao encontro da caverna e torna-se vítima de tão demorada caça. Foi exatamente isso que aconteceu naquela noite, quando a lua se tornou sangrenta novamente – embora os bárbaros ali ocultados na caverna jamais tiveram a oportunidade de ver o olho carmesim assistir o embate naquele céu noturno.

A luta começou e as presas da loba atroz fatiaram a carne dos bárbaros como foice e lança. Os machados dos synkar pouco lhe faziam ferimentos, pois o pêlo era espesso e sua carne tão dura quanto pedra. Os bárbaros mantiveram a furiosa batalha de qualquer jeito e, pressentindo a derrota, Mo’bagh mergulhou num ódio mortal e furioso, um frenesi incansável de batalha que fez jorrar da cabeça e do torso da enorme criatura tanto sangue que os bárbaros foram obrigados a lutar debaixo da chuva rubra.

Mesmo diante um guerreiro de robustez descomunal, o avatar da mãe loba mostrou-se superior, abocanhando-o e o trespassando com presas afiadas que fizeram os ossos do líder synkar estalar de esmagamento. A criatura rosnou ainda com a carne de Mo’bagh entre os dentes e o jogou contra a parede num baque ecoante e mortal. O lobo atroz já podia sentir os machados teimosos mutilarem sua pele, mas seu faro ainda encontrava vida em Mo’bagh, a criatura pretendia devorá-lo por inteiro não fosse a interrupção de Saulot.

            O jovem franzino manteve-se diante do corpo do pai mutilado. O coração empurrando as lágrimas de dor e lamentação para a garganta e elas, teimosamente, jorrando pelos olhos como cascata. Saulot preparou-se para a morte e fitou os olhos amarelos da criatura enquanto o medo o consumia, então, ele percebeu algo: o avatar da mãe loba confrontava um repentino terror ao retribuir o olhar com ele. Era um medo que se tornava cada segundo maior até converter-se em um pânico trêmulo e, finalmente, a uma dor sobrenaturalmente física que fez a criatura sangrar pelos olhos e pelas gengivas ainda preenchidas pela carne dos bárbaros devorados. O lobo atroz inquieto não revidava a morte e foi o campeão Horax quem, por último, deu-lhe um golpe no pescoço, com seu poderoso machado largo, e fez a cabeça do avatar rolar no chão.

            Saulot debruçara-se sobre o pai após a luta – pelo menos o que restara dele – e Mo’bagh sequer conseguiu abrir os olhos para ver o final vitorioso ou a influência de seu filho nesta. Apenas metade da meia dúzia de bárbaros sobreviventes pôde sentir a presença de Saulot na luta – Horax a sentiu – e, por isso, de imediato não declararam o filho da lua rubra como o responsável pela derrota da criatura.

Partiram a carne da loba atroz, lhe cortaram os tendões, esperaram avançar a noite e, no outro dia, após a hora do sol à pino, marcharam para Ankhashadalûr novamente.

Capítulo 5

A vitória da inveja

            E enquanto voltavam, os sete bárbaros de vinte, puderam notar o ar se aquecer no ambiente. No oitavo dia de viagem notaram a relva colorir de verde o território que antes era branquidão maldita, no nono as árvores já tinham folhas e gavinhas e trepadeiras já se enrolavam a tudo. No décimo dia o sol quente já não era um castigo e as trilhas já podiam ser vistas. Os campeões bárbaros voltaram à Ankhashadalûr vitoriosos e já os esperavam com um banquete de sangue e carne.

Foi de Radrath, o xamã dos synkar, a ideia de a tribo se preparar para recebê-los. “Os novos dias são abençoados! Nossas terras, regadas de tanto sangue, agora permitem que as sementes germinem. Eu sabia que vocês haviam sido vitoriosos assim que pude notar a mudança repentina no ar”. Os bárbaros de dentes serrilhados festejaram naquela o resto do dia e após o avançar da noite e em uma pira imensa os escravos dos synkar foram jogados e seus gritos de sofrimento tornaram-se o cântico à Kaz.

            Ao redor dos vestígios da maldade noturna, Horax contava triunfante a vitória sobre o avatar da mãe loba, narrando, com detalhes, a forma como seu machado arrancara a cabeça da criatura com uma força impulsionada pela vingança de esta ter eliminado Mo’bagh, o líder da tribo. Horax era o centro das atenções até que um dos campeões revelou o episódio sobrenatural que ocorrera entre Saulot e o lobo atroz. O título de filho da lua rubra, nessa noite, foi repetido diversas vezes e tanto era o peso dessa designação que os bárbaros citaram o nome de Saulot como o próximo líder dos synkar.

Horax achou a possível nomeação de Saulot injusta, pois acreditava que era ele próprio quem merecia a tal, após ter sido o responsável pelo arrebatamento do lobo. Não fosse ele, afinal, a criatura havia de ter readquirido forças para atacar de forma fulminante outra vez. Contra a decisão de toda a tribo, porém, ele nada poderia fazer. Entretanto, uma forte aliança com o xamã Radrath lhe foi oferecida.

Horax, campeão de Ankhashadalûr


            Radrath que, no amanhecer do dia posterior, chamou Horax para sua cabana e explicou seu plano:

-  Kaz revelou-me, em sonho, que é você, Horax, quem deve liderar os synkar e Saulot será o responsável por isso.

- Eu sabia que merecia o título, velho Radrath, mas minha opinião de nada vale contra a reunião de todos os votos da tribo. Eles ainda acreditam nas profecias da lua rubra, embora, por tantas vezes, Saulot se mostrou o mais inapto dos synkar.

- Por isso, o próximo líder será você, Horax, e resolveremos isso através da violência, como nossa tribo sempre o fez. É símbolo para Kaz que tudo seja resolvido pela lei do mais forte e é contra o próprio Saulot que você guerreará!

Horax confiava em sua própria perícia de combate. Ele era um campeão da tribo e sabia que poderia derrotar Saulot facilmente, mas algo o fez duvidar disso e Radrath pôde ver o medo estampado na cara do bárbaro.

- Meu senhor, Radrath, meus pais ensinaram-me a aceitar suas previsões, mas temo a morte pois sei que meu machado não será o suficiente. Eu o vi. Vi sua presença contaminar o lobo atroz de medo e receio que eu tenha uma morte muito mais rápida que a do avatar.

- Não tema, Horax, pois em meus sonhos, Kaz também me proporcionou conhecimento deste unguento – Radrath mostrou à Horax uma cuia com um creme pastoso e esverdeado, tão fétido quanto vísceras gordurosas – passarás este unguento nos olhos e o olhar da morte de Saulot de nada adiantará.

E assim, ficou combinado.

Radrath, xamã dos synkar

            Radrath, entretanto, nunca sonhara com Kaz e o preparo do unguento lhe foi ensinado por uma velha bruxa cega e desforme da tribo da serpente e tinha, mesmo, magia contida nele. O velho xamã, na verdade, temeu perder seu posto de líder religioso para Saulot. Sendo, o próprio Radrath, o único indivíduo da tribo que tinha a capacidade de receber o chamado dos espíritos e sonhar com previsões, além de ser o responsável pela prática da bruxaria de sangue que lhe era a garantia de ser o representante de deus, ele receava ser dispensado pela tribo de seu ofício xamânico, pois estava claro que Saulot herdara do próprio Kaz um poder muito maior.

A única forma de impedir isso era matando o filho da lua rubra.

            Naquela noite, na alta superfície da pirâmide de onde rolavam as cabeças das vítimas dos synkar, Radrath revelara para sua tribo que Horax deveria ser o líder legítimo e que aquele lugar, tão alto quanto o céu, seria o palco da luta que provaria essa premonição. Saulot e Horax iriam combater até a morte.

Os synkar, acostumados com a vida em fúria, violência e sangue, sequer questionaram essa decisão. Kaz concederia poder para aquele que deveria triunfar. Três noites após estavam o filho da lua rubra e o campeão dos synkar em cima da pirâmide, preparados para o combate.

         Dias antes da luta, Saulot temia o confronto com o campeão, mas logo tornara-se omisso à decisão de Radrath, assim como era com as decisões de seu pai. Que ele morresse, então, se fosse essa a resposta para a sua vida inútil ou que Kaz lhe desse a chance de vitória, caso ele representasse algo para o deus da matança.

Saulot armou-se com machado e escudo de madeira, mas, como defesa, este último nada lhe adiantou pois, na primeira investida de Horax, seu machado grande rompeu a proteção. Horax havia, como o combinado, enlameado o rosto com o unguento de Radrath e agora olhava agressivo e destemido para sua vítima tentando se defender debilmente com um machado vezes menor que sua poderosa arma. A vitória seria alcançada facilmente.

Saulot deixou o machado de guerra cair de suas mãos quando Horax varreu suas pernas com um chute. Agora, o filho da lua rubra era uma caça dominada pelo caçador, pisoteado no peito para se manter imóvel ao golpe de misericórdia do campeão synkar. Naquele último momento, Horax vislumbrava a vitória nos olhos de Saulot quando foi surpreendido pelos olhos maléficos que ofendiam sua existência.

            Horax tremeu. O unguento em seu rosto de nada adiantara. Saulot mantinha-se perplexo, ainda ofegante, mal acreditando que não estava definitivamente morto, percebeu a reação de seu inimigo: igual à do lobo atroz. Ele iria morrer e Saulot seria o líder dos synkar. Passo a passo Horax afastava-se cuidadoso, buscando brechas para correr e o faria se não estivesse rodeado pelo círculo de bárbaros que, agora, pareciam todos inimigos. Saulot erguera-se e aproximava-se de Horax ainda débil, assistindo os olhos do campeão sangrarem.

- Golpei-o Horax! AGORA! – gritou Radrath, como se lançasse uma terrível maldição xamânica.

            Horax segurou seu machado grande e pesado com pouca firmeza, ergueu-o e atacou. A lâmina atingiu o pescoço de Saulot e o sangue frio jorrou fácil. Toda a plateia arregalou os olhos em espanto. Débil, Saulot estava e, agora, com a surpresa do tal golpe, titubeava atordoado. Afastou-se alguns metros, tonto, e caiu de joelhos se afogando no próprio sangue. Observou sua tribo, os bárbaros de dentes serrilhados, assistindo sua derrota. Deixou-se cair no chão da pirâmide e olhou para o céu noturno. A lua não era rubra.

Capítulo 6

A coroação dos mortos

            Horax sentava-se no trono em cima da pirâmide. Dezenas de degraus de escadaria abaixo, os synkar proclamavam seu novo líder e Radrath o coroava com uma coroa feita de dentes, a partir dali, a representação da autoridade da tribo. Acima de tudo, para a surpresa de todos, estava a lua rubra, assistindo vigilante e abençoando o reinado do campeão de Ankhashadalûr. Os bárbaros urravam em histeria gloriosa, pois aquela era a prova que todos desejavam: o legítimo líder dos bárbaros de dentes serrilhados.

            Mas, enganavam-se. A lua rubra não assistia a eles.

- Levante-se, Saulot – primeiro foi uma única voz a sussurrar, depois foi acompanhada por uma dezena de outras, logo transformaram-se em centenas e, finalmente milhares. Saulot acordou. Nu e jogado em cima de incontáveis corpos e cabeças apodrecidas. O lugar no qual os synkar jogavam as vítimas de seus sacrifícios. Era uma inúmera muralha de corpos cinzentos e inquietos – levante-se, Saulot – eles continuavam a sussurrar.

            Saulot sentiu a ferida em seu pescoço. Estava vivo! Imaginara que o golpe não havia sido mortal o suficiente e que os bárbaros de sua tribo não se responsabilizaram em analisar o corpo. Nunca faziam, afinal, suas cabeças eram cortadas. Talvez, pura sorte, o filho da lua rubra pensou, mas não era: os bárbaros que arrastaram o corpo de Saulot até aquelas instâncias temeram perturbá-lo após terem presenciado o terrível olhar de morte que este propagava. Temeram que o corpo voltasse à vida e os matasse. Eles estavam certos, Saulot, de uma forma subjetiva, voltava, agora, à vida.

Saulot olhou os arredores. Um exército de presenças exigindo que ele sobrevivesse. “Provavelmente estou muito febril, por isso, vejo e escuto alucinações” pensou ele enquanto escutava os sussurros daqueles incontáveis corpos e, vez por outra, os via mexer como se nadando uns por cima dos outros. Levantou-se, finalmente, e tomou um fôlego de vivência. O céu estava escuro, porém manchado de outra cor. Procurou a lua. Ela estava rubra.


            O filho amaldiçoado andou, trôpego, em cima da horda de cadáveres. Ele sabia do sentimento que tinha em seu coração agora, mais do que tudo: vingança. Vingança para com o seu povo. Ele não devia nada a ele, não devia nada à Kaz, o deus que o viu sucumbir em combate. Ele decidiu, ali, seguir divindade nenhuma. Guiado pela luz vermelha da lua, ele soube que sua vingança viria com o tempo. O tempo que pouco lhe sobrava. “Ah! Quem dera ser imortal!” refletiu. Quanto a isso, nada podia fazer, e, enquanto caminhava a esmo, decidira algo: deveria dominar os segredos da magia.

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