quinta-feira, 11 de maio de 2017

O príncipe dos desalmados

Príncipe Aisenn, condenado
Olhos oclusos e doloridos eram os do príncipe. Uma leve pincelada de sangue escorria pelo seu rosto pálido, e de seu nariz, e de seus ouvidos, e serpenteando no lado direito da sua boca. Ali permaneceu o príncipe durante muito tempo. Tal tempo incalculável, pois a masmorra de carne não permitia a passagem de luz e a luz que incendiava acolá era a dos vesúvios que nasciam no chão de carne, como cistos de sangue que expeliam o fogo fétido e as estranhas criaturas insetóides com rostos humanos e línguas bifurcadas que enchiam suas caudas de vísceras ao devorarem a paisagem formada de corpos nus, às vezes mesmo de pele, que emolduravam, complementando a arte bizarra, as paredes, o teto e o térreo da cidade de carne.

E sentado estava o príncipe em seu trono de sofrimento. Crânios revestidos de músculos expostos, secretando o sangue grosso feito piche, ornamentado também por olhos tristes de sofrimento, pois estes não tinham pálpebras e, sem pálpebras, não tinham a escolha de fechar-se como o príncipe bem fazia e, assim, se protegia da loucura impregnada nesse inferno de carne.

Nas colunas que sustentavam o teto feito de pele estirada e desfiada que, para os maus observadores, pareceriam teias, pingando as gotas de sangue de sua produtora e senhora caçadora, cravados e expostos, nus e ocultados pela escuridão, as pessoas, à vezes sem braços, às vezes sem pernas, sem fiapos de cabelo na fina e frágil carne que cobria seus crânios, estes perfurados pelas lacraias de presas afiadas que passeavam pelo interior cavernoso e sangrento dos corpos , vez por outra, visitando o ar intragável daquele poço de lamentações.

Havia também o som. Murmúrios silenciosos envolta do príncipe e gritos de incontrolável agonia advindos das cavernosas e sangrentas entradas e saídas que faziam desde o arrastar de correntes às agulhas enfiadas sob as unhas de escravos, ecoarem como o retumbar de tambores que acompanhavam uma marcha fúnebre dotada de desesperança. 

O tártaro. Assim o príncipe chamou seu pedaço de reino e assim seus súditos passaram a chamar. A tez daquele senhor das hordas estava fria e imunda de maldade, mas de suas narinas saíam o ar quente da teimosa vida do que fora, ele mesmo diria, sua rara linhagem. O príncipe estava vivo, o resto estava morto e, por vezes contemplando a solidão catastrófica, eis que aquele sentado ao trono poderia reconhecer, sem dificuldades, a presença de outro ser vivo em seu reino.

- Abra os olhos, ó, ostentoso príncipe, que os teus pecados, juram os demônios, dissipados serão após sua refletida redenção.

Indagou o invasor e o príncipe acatou o pedido como um líder escuta deveras sabiamente um aliado por saber que, sozinho, miserável seria a sua vitória.

- É você Alastor.

Observou o príncipe de olhos ainda míopes, com a voz soturna, estranhamente similar à original, a mesma que lhe saía pela garganta aveludada em sua época de império entre os vivos.

O visitante achegou-se e ajoelhado mostrou excessivo respeito, curvando as costas aduncas enquanto apoiava-se em seu cajado de órbita vermelha e seu manto vermelho adequava-se aos ombros servis como se banhasse suas costas de fogo tênue. Seu rosto mostrava-se austero, como podia ser enquanto emoldurado pelas intrínsecas tatuagens que minuciosamente desenhavam os contornos de uma figura dracônica. Dracônica no sentido mais literal da origem da palavra, demônio e diabo, terror e escárnio.

- Me agrada a sua submissão, senhor da cátedra de carne e bispo da má religião, mas me ofende a oferta de sua crendice, pois de seu senhor, um vez eu o disse e tantas vezes mais haverei de dizer, não recorro a sequer mais uma única ajuda e se, por ventura, o pé do maculado voltar à pisar sobre esse mundo, que me ponham a culpa, mas que lembrem-se quem tornou concreta a vingança de minha linhagem. E que, sem temer o seu desagrado, venho a ser capaz de repetir: sejam abençoados os heróis que porem um fim a mim, a ti e ao senhor das hordas trôpegas.

- Abençoado já é, você, príncipe das lamentações e senhor da eterna vingança, pois, mesmo de olhos cerrados e pulsos abertos, outros que aqui tentaram resistir aos efeitos de pleno tormento da cidade de carne, caíram em loucura incurável após simples vislumbre enquanto tu revidas cada amarga lembrança com egolatria.

- Pobres as almas que bebem da fonte de suas eloquentes palavras, Alastor, porque a mim, tua língua-de-prata não me sujeita ao narcisismo e, já que aqui estás perante a mim, que não uses desses artifícios e que fales adiante, antes que lhe arranque a responsável pelo seu dom de víbora tentadora.

- Santa e sábia é sua impaciência, príncipe, mas se aqui estou, nada tem a ver com sua referida eloquência e lábia. Se aqui estou, apenas pratico o meu dever de servo e representante do maculado, pois enquanto barganhaste com as rainhas mortalha, exigiste os melhores súditos, em perspicácia e guerra, em lamento e concórdia. Aqui vos trago, encolhidos nas sombras dos patamares da cidade de carne, silenciosos até então, enquanto desejares.

Deu-se início a marcha fúnebre das sombras que se erguiam do, então nomeado tártaro, revestindo-se vagarosamente de cores lúgubres estavam as  quatro silhuetas que, distintas, aproximaram-se e mostraram-se pujantes. 


- Estas são as derradeiras sombras que, por capricho e demasiado tempo ansiei afogar no antro de toda carnificina. Antes heróis, agora testemunho pleno da vitória do maculado sobre a fé terrena, campeões de um passado de ilusória vitória humana, agora arsenal inesperado na luta que antevem o fim da era, dignos cavaleiros da morte prontos a serem liderados por vossa senhoria.

Eis que as quatro figuras ajoelham-se agora diante o príncipe e seu trono de carne, condicionadas, rostos voltados ao chão de vermes, olhos fechados em submissão.

- Ragnar, alvo do exílio e da descrença anã. Uma vez bebeu do sangue de um príncipe de sua raça e, como se não bastasse, mastigou-lhe a alma, tornando-se errôneo portador da chama divina. Agora a extinta habilidade foi compensada pela incinerante magia do fogo fátuo, negro como a morte, rápido como um glutão esfomeado.

Ergueu-se o anão ruivo de armadura negra feita de cravos, forjados como uma dezena de presas a saltar do aço, olho direito esbranquiçado pelo ferimento que um dia partiu-lhe a carne e rachou-lhe o crânio. A barba ancorada em seu rosto quadrangular, fiapos atrozes de uma criatura selvagem, duros pelo sangue ressequido, rústico molde de guerreiro abençoado pela invulnerabilidade. Seu machado reagindo à escuridão profana, envolvido por uma garra de névoa voraz.

- Aeranir, alvo do exílio e da vergonha élfica. Suas mãos afundaram-se nas tripas de sua amante, arrancou-lhe a vida, o pecado e a honra, profanando a existência dos elfos reais. Suas lâminas acertam como o vento e sua sombra se move como uma pantera a saltar sem rodeios para a garganta inimiga.

Ergueu-se agora o lépido e esguio elfo de sorriso torto e dentes afiados, olhos aguçados para a maldade, vermelho-gotejante. Sua vestimenta de pantera deslocadora atada ao torso, como se costurada à pele e uma sombra inquieta a rosnar caçadora obedecendo sua presença. Girou o corpo e pescoço de forma descomunal enquanto seus membros flexíveis, como os de um contorcionista, giravam a mortal espada de duas lâminas num vórtice de ofensiva infalível.

- Azanthe, alvo do exílio e da desonra beligerante. Suas flechas cravaram certeiras e fulminantes nas cabeças de seus soldados, devoraram o coração de seus aliados e quantas centenas e mais centenas mil vidas foram tiradas, encerrou a mágoa de seu pai carregando-o para a negligência. Seu arco, imerso em sangue, vísceras, lágrimas e suor dos nove infernos, convocam os pecados de suas vítimas.

Adiante levantava-se ostentoso o arqueiro que, em face pálida, mantinha o desânimo emoldurando arroxeado seus olhos opacos, tomados vítimas de espectro, assim, sem mais nem menos, moldado como porcelana aparente frágil, contornado pelas fugidias placas de mithral maculado pelo toque de demônios espavoridos. Fiel, agarrado em suas manoplas, o arco de teixo negro e runas ígneas, enodoado pela mancha conspurcada de infinitas vítimas.

- Millo, hipócrita sombra dos traidores. Caçador de acólitos e senhor das fraudes, sacrílego dos aspectos divinos. Possuiu, somente para si, uma cidade, cravada na garganta de uma montanha onde pusera as cabeças de suas vítimas incontáveis por mero ato de perversidade. Por esta e tais atrocidades encantou inúmeras presenças deíficas e, uma a uma, arrancou-lhes o âmago para satisfazer o narcisismo doentio.

Por fim, apresentou-se, como uma escuridão que se desenterra de outra, os olhos amarelos tingidos de maldade, o rosto monstruoso de um rato, dentes incisivos afiados, pelagem de denso negrume, tão esguio e minucioso que pouco se viu de suas lâminas curtas famintas por gargantas.

- Crassos pecadores, tão dignos de morte como eu e tu somos, Alastor, e assim serão, mortos como deveriam ter sido, porém, presumo que de morte arrefecida suas almas não poderiam morrer, pois quietos jamais estariam em suas tréguas. A perfeita morte para estes é a servidão que estão dispostos à me conceder e eu lhes adianto, trarei a vocês o mais pleno descanso no final de tudo.

- Foram os meus melhores hóspedes pelo tempo em que os podia anunciar, agora são teus. 

- Não esperava menor atitude em me agradar, escravo do maculado, bem sabeis que são de minhas gêmeas lâminas que as escamas dos reis cairão.

E os novos hóspedes da terra de carne se aproximaram do príncipe e receberam suas bênçãos, como um súdito recebe do rei, como um padre recebe do clero, como um filho recebe do pai.

- Com vossa licença, agora recordo-me do ofício no qual estou destinado. Infinitos poços de alma sejam arquitetados, pois grandes e meros campeões estão prestes a cair nas próximas horas. Retorno para o Ninho de Bahamut com minhas tarefas quase concluídas. Ele voltará em breve.

O tal Alastor desmanchou-se em sombra e o príncipe esperou pela marcha da cidade de carne.


   

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