***
-
Ei, garota, eu sei que você ainda pode se controlar, vamos lá, pelo menos tenta
– Aldebaran gritava em meio à cidade de carne.
Ivny
agora era a carne. Sua existência incrustada em uma coluna de pele, músculos e
ossos sangrentos.
-
Vamos, vampirinha, não me faz usar minhas preciosas contra você.
As
lâminas irromperam em chamas ardentes.
-
Incrível! Que poder magnífico! – comentou Hidro, a cabeça falante – tão
poderoso é aquele que possui o Necronomicon que ele criou toda essa... coisa! –
o rosto voltado para o cárcere mutilado, emoldurando todos os alicerces.
O
gnomo estava mais focado na própria cobiça do que no perigo de se afogar em
sangue e morte. À sua disposição estava Arafat, segurando-o com a indelicadeza
de guerreiro bruto.
-
Sua cabeça estúpida! Como pode invejar esse inferno? – interrompeu o guerreiro
de fogo.
-
Conhecimento é lei, meu caro Aldebaran. Mesmo para uma cabeça sem corpo.
-
Eu vou destruir essa coisa, depois rachar o seu crânio, Hidro, nem que para isso
eu tenha que deter Arafat e morra tentando fazê-lo! Estou lhe avisando!
-
Não será preciso, idiota. Nós iremos deter essa coisa juntos. Eu não virei uma
cabeça falante para se transformar no servo de um deus-lich.
Arafat
assentiu e se esforçou para esboçar um sorriso entre as cicatrizes de seu rosto
esfacelado.
Aldebaran
deu um passo a frente e resvalou as lâminas de fogo uma na outra, provocando
faíscas mais ardentes do que a do metal comum, puxou o fôlego e soprou como um
dragão faria ao enxamear a arena com fogo arrasador.
A
língua flamejante transformou-se em um véu de chamas e lambeu o pilar de carne.
Ivny
estremeceu. Era dor. Olhou para os responsáveis. Um painel cinzento de vítimas.
-
Não tem mais jeito, não é, garota? Mas, não se preocupe, Aldebaran dará um fim
ao seu sofrimento! – o guerreiro de fogo ergueu uma das lâminas, feito uma
tocha.
Ivny
entregou-se ao frenesi. A montanha de corpos respondeu aos seus anseios. O
pilar de carne se desfez e um braço gigante, cheio de dentes e ossos
pontiagudos, varreu sua fronte.
Aldebaran
saltou a tempo de esquivar-se, mas Arafat foi surpreendido pelo encontrão, ainda
sem a espada empunhada. Aldebaran cravou uma das espadas flamejantes no gigante
de carne e abriu o ferimento com a segunda. O sangue ferveu e a carne
cauterizou, fazendo subir um cheiro de morte apodrecido. Arafat usava as
manoplas da sua armadura de adamante para rachar crânios ou arrancá-los dos
meio-corpos que estavam enterrados no rio de cadáveres.
O
ar, então, se tornou repentinamente mais frio e lascas de gelo protuberantes se
erguerem do chão e do pilar de carne. Arafat abraçou o braço gigante e o
arrancou com demasiado esforço. O sangue congelado parecia pedaços de vidro
vermelho quando o guerreiro de cicatrizes o jogou contra o pátio e este se
estilhaçou.
Montado
em uma dezena de cadáveres famintos, Aldebaran encontrava o caminho pelas
vísceras do segundo braço gigante. Fumaça seguida de cinzas flutuaram do
ferimento causado pelas lâminas flamejantes. Os mortos-vivos incrustados na
massa de carne derreteram e ficaram encharcados de chamas e bolhas até que
finalmente explodiram numa borbulha só.
-
Vamos, vampirinha, eu sei que isso não é nem metade do que você pode fazer.
Faça eu me arrepender de estar gostando dessa peleja.
Então,
as aberrações mais delirantes sorveram pela cidade de carne. Corpos partidos,
com intestinos arrancados, mandíbulas abertas como quelíceras, salivando fios
de sangue derramados feito teias de aranha. Ossos e músculos atrofiados as
faziam andar trôpegas. Famintas. O terror se alastrou no combate, mas Aldebaran
e Arafat eram guerreiros experientes e, apesar de não terem visto coisa mais
bizarra do que aquilo, sustentaram seus espíritos enclausurados no corpo. Os
andantes gritaram um som estridente de agonia, como o de mil vítimas de pescoço
quebrado e lançaram-se numa investida suicida. Costa a costa, eles giraram suas
espadas num dueto de corpos que somente combatentes que haviam lutando muitas
guerras juntos poderiam realizar com tal perfeição a ponto de ambos tornarem-se
um só vórtice que fazia chover naquele mundo os resíduos da morte.
E
mais mortos saíam do chão, desta vez com a pele derretida, lodosa como limo,
com superfícies inteiras varridas pelas pústulas. Os braços eram tentáculos de
carne que estrangulavam e chicoteavam como armas mortais. Puxava-os ao encontro
da boca carcomida de dentes afiados e salivavam doença. Naquele dia, Aldebaran
e Arafat não conseguiram contar suas vítimas. Arafat nunca havia feito essa
matemática. Aldebaran, no entanto, parou no cento e doze e, foi nessa hora que
ele desacreditou na vitória, pois cravou-se na montanha de cadáveres já
vencidos, ossos pontiagudos de coloração negra e vítrea. Eles cresceram feito veias
pulsantes e saltaram para a fora dos corpos mutilados na forma de milhares de
presas. Os cadáveres passaram a morder tudo que encontravam pela frente,
principalmente, a eles mesmos. Um devorando o outro até se transformarem em uma
única criatura feita de cabeças, torsos e membros trespassados por lanças
negras.
Os
heróis, encharcados de sangue a ponto de serem irreconhecíveis, eram apenas feitos
de espada e órbitas oculares ainda brilhando vívidas, porém tênues. Eles se
entreolharam como se fosse aquela a última vez e a cena tornou-se lamentosa
para qualquer um que ainda acreditasse na vitória deles. A massa única de
mortos apenas se arrastava, fechando o círculo enquanto tinham a carne partida
pelos golpes dos guerreiros.
As
lanças negras eram tão fortes e inquebráveis que romperam a armadura de
adamante de Arafat. Três destas trespassaram o corpo do herói de muitas
cicatrizes e o delírio vagou por sua consciência ao ponto de quase
desacordá-lo, mas Arafat entregou-se a uma fúria incontrolável de combate.
Gritou, como nunca tinha gritado antes, era como o rugido de um leão. A boca
tanto se escancarou que a pele que a cobria se rasgou, como uma costura
forçada. As cicatrizes romperam-se em explosões de sangue. Durante a segunda
saraivada de lanças negras, seu único olho bom foi sulcado até o interior do
crânio.
Os
tentáculos seguraram os braços e o torso de Aldebaran. Por dezenas de vezes ele
os cortou e transformou em pele derretida, mas, enfim, o guerreiro das lâminas
de fogo foi vencido. Os tentáculos tanto forçaram o corpo de Aldebaran que, em
meio aos gemidos trêmulos de fome da mortalha de cadáveres, pôde-se ouvir o som
de seu braço direito se deslocando. A massa de mortos-vivos o ergueu e forçou sua
coluna até que o herói gritasse guiado pela dor lancinante de ter o corpo
dobrado no ângulo de um arco longo.
Mas
nenhum morreu. A mortalha ainda não queria isso.
Ivny,
rainha daquele reino de horror permaneceu austera, incrustada numa parede de
carne que se abria como as pétalas de uma rosa demoníaca. Ela mantinha os olhos
vermelhos de frenesi. Sugou o ar em sua volta e um frio cortante como o de
Nevaska surgiu no lugar. Os poros se dilataram e muitos tornaram-se furúnculos
enquanto eram preenchidos pelo sangue que circulava em seus hóspedes para,
finalmente, explodirem e o líquido vermelho evaporar sendo guiado até a boca
faminta da vampira.
-
IVNY!
Alguém
interrompeu a alimentação.
Era
Hildegram, o aleijado.
-
Se é isto que você se tornou! Quero ser sua parte! – o cocheiro abriu os braços
e caiu de joelhos, lamentando enquanto envolto de sangue e lágrimas – Você me
tirou a vida a muito tempo. Sou parte sua, mestra! Faça-me sentir dor se for
preciso, mas deixe-me perto de você!
Os
olhos da mortalha se encheram de piedade. Ela caminhou até Hildegrim. As
pétalas de carne se tornaram asas feitas de pele, flutuando envolta do ar frio.
As lanças negras criaram um caminho para ela e, pelo minuto seguinte, o desfile
de uma rainha trajando o vestido traçado pela morte debruçou-se sobre a arena
até alcançar o aleijado. Foi como um abraço doloroso. Hildegrim não pôde evitar
gritar. A boca de Ivny escancarou-se, partindo a mandíbula, abrindo do pescoço
até os seios, como uma única boca cravada de presas vampíricas, preparada para
devorá-lo vivo.
Koku
saiu de seu esconderijo e lançou as sementes.
Eram
sementes envoltas de fogo, catadas do templo dos Quatro que agora estava
destruído e envolto de carne, assim como todo o resto. O garoto macaco soprou
as sementes e os deuses elementais concederam o milagre. Elas se desmanchavam
em chamas e pareciam prontas para explodir. Foi isso que elas fizeram, assim
que foram arremessadas certeiramente na boca bizarra da mortalha.
Quando
Ivny as sentiu, derretendo seu interior, largou Hildegrim. Ele foi arremessado
como uma bola de sangue até os confins do terror. As sementes explodiram. Eram
seis. Lanças de fogo trespassavam as vísceras da mortalha e encontravam uma fuga
pelos poros, em cada estouro. A aberração gritou dolorosamente e toda a cidade
de carne estremeceu.
Isso
aconteceu por apenas meio minuto, mas foi o suficiente para Aldebaran e Arafat
se livrarem, mesmo mutilados.
-
O coração dela é um cristal verde! – alertou Koku – vocês vão encontrá-lo no
estômago! Eu o vi enquanto as sementes criavam buracos no corpo dela!
Aldebaran
armou-se com uma única espada flamejante, já que seu braço direito estava
quebrado, e investiu contra a mortalha sôfrega, numa linha oscilante, pois
estava tão trôpego quanto os mortos que ele havia eliminado. A lâmina ígnea foi
cravada no peito da criatura que, logo, descobriu qual era a intenção do herói.
Ao
invés de impedi-lo, cravou as presas no pescoço de Aldebaran, num abraço de
morte que deixava o corpo do guerreiro cada segundo mais pálido.
Aldebaran
fraquejou até ajoelhar-se, sem forças. Desmaiou enfraquecido. A lâmina não
havia terminado o serviço.
Arafat
agarrou o corpo de Aldebaran e o arrancou daquele lugar. A espada larga do
guerreiro de cicatrizes cravou no mesmo ferimento que o aliado havia começado.
Rompeu a carne até enxergar o brilho esverdeado contido no estômago da
criatura, então, percebeu que seu braço se enterrava na carne da mortalha, como
se estivesse sendo engolido vivo. Arafat sentiu as presas internas de Ivny morderem
o braço que ele empunhava a espada, desprezando sua armadura de adamante. O
guerreiro não tinha forças para se livrar daquilo e também não podia evitar que
o corpo da vampira se regenerasse a ponto de enclausurar novamente o coração e pôr
um fim ao fracassável combate.
Já
prestes a ceder à mortalha sanguessuga, Arafat usou seu único braço livre para
se armar com a cabeça de Hidro.
-
O gelo não funciona contra essa criatura, idiota! Nós vamos morrer! – ralhou a
cabeça.
Sem
aviso prévio, Arafat enterrou a cabeça de Hidro nas vísceras da mortalha. As
fuças se afogando em sangue que se misturava à saliva do gnomo.
Hidro
sentiu a gema espinhosa lhe cortar os lábios. Abocanhou. Arafat o tirou das
vísceras da criatura para, enfim, desmaiar sem forças.
A
cabeça do gnomo bochechou o coração de Ivny na boca. Ajeitou-o entre os dentes
e mordeu até estilhaçá-lo!
Ivny
sentiu a monstruosidade devorar sua existência a ponto mordiscar a si mesma.
Como uma serpente que devora o próprio rabo.
Hidro
cuspiu os restos da gema espinhosa e riu sadicamente.
A
mortalha, aos poucos, abandonava os alicerces de Zarast.
***