-
Ragnar, acorde! – aconselhou Aramyn, agora de joelhos perante um corpo de
olhos abertos e íris acinzentada como se parte da alma estivesse se esvaído do
corpo. O clérigo de Splendor enraizou as próprias mãos no corpo do anão e
recitou as preces mais poderosas de cura enquanto os malditos relâmpagos não
paravam de mandar seus urros do céu. A magia divina era insuficiente. Aquele
lugar tragava a fé de qualquer um e Aramyn manteve os olhos fechados e, em
silêncio, lamentou o inevitável.
Freya agora decidira gritar, a raiva
rompera seu receio e agora sua missão era descer a lâmina de seu pesado machado
nos orcs e ogros que a terra lamacenta vomitava. – Fique de pé, clérigo! A luta
não acabou! – repetiu pelo menos três vezes como se aquele fosse um ritual que
permitia que sua força de vontade continuasse viva e agressiva o suficiente
para suspender a cabeça dos inimigos.
-
Que grande merda! Eles são muitos, a gente tá se fodendo aqui! – reclamou Jack,
o halfling enquanto saltava acrobaticamente entre os inimigos e deslizava o fio
de seu manto em seus pescoços.
- Solta logo uma daquelas magias explosivas,
mago inútil! Você se esqueceu de como fazer isso justamente agora!?
-
Por mais que meu treinamento tenha sido extremamente rígido em relação à
concentração de minhas magias, esse ambiente é completamente voltado a
silenciar minhas capacidades. – concluiu Varuz enquanto sentia o formigamento
na ponta de seus dedos. Deveria ser um calor que se romperia de suas mãos, mas
a soma de todo o rugido tempestuoso impedia a realização da magia - Não
conseguem ver? Essa tempestade não é algo natural! É como um imenso ser criado
para interferir nas nossas habilidades. Uma luta aqui é impossível de se vencer!
Eu poderia dizer que sairemos derrotados daqui se não pensarmos em uma
estratégia definitiva ou fugirmos.
-
Que conversa é essa? Ainda somos os heróis aqui! Os inimigos não têm chance!
Diga-me alguma coisa, índio desgraçado! – bravejou o halfling pelejando entre
esquivas e ataques. A bárbara estava a poucos metros dele, sendo esmagada por
uma clava enorme de ogro e se esforçando para erguer-se e contra-atacá-lo nas
virilhas.
Khali disparou uma de suas flechas
na direção dos menires. A seta foi facilmente raptada pela ventania, como o
indígena havia presumido. Ainda menos que o Azanthe, Khali não conseguia
disparar suas flechas com eficiência graças à tempestade. Ele observou as
flechas afiadas do arqueiro aliado descreverem caminhos aleatórios e, vez ou
outra, atingir a perna ou o braço de um dos gigantes.
-
Os xamãs nos menires! Aquelas pedras pontiagudas estão potencializando os
raios. Minhas flechas nunca alcançarão lá. Nem mesmo Azanthe poderia fazê-lo.
-
O inimigo reconhece cada uma de nossas habilidades – indagou Aramyn tornando a
ficar de pé e lutando contra a morte aliada – Nos trouxe exatamente o desafio
que impossibilita o uso de nossas magias e ataques. É uma luta impossível para
os poucos fervorosos.
-
Então, aqueles xamãs são o grande problema? Vou derrotá-los punho a punho e
esse choro da derrota de todos vocês vai cessar! – difamou Jack e saltou sobre
um amontoado de corpos mutilados.
-
Jack espere! – gritou Aramyn, mas, entre um pé e outro, o halfling já se
distanciava ignorando o alerta.
Eis que os relâmpagos desabaram
sobre o pequenino e cortaram o ar velozmente. Jack era ágil e, por pouco,
esquivara-se da tempestade, mas, por fim, sentiu-se esganado por um ogro que se
aproveitou do barulho ensurdecedor e atordoante do arco voltaico para surpreender
o halfling. A mão gigante e enlameada cobria toda a cabeça de Jack e o espremia
sem muitas dificuldades, sufocando-o e lançando-o contra o chão para então
pisoteá-lo. Tarefa que não conseguiu graças ao atrevimento de Freya ao
interferir com seu machado no meio dos dois.
-
O que foi, Aramyn? – Jack perguntou meio atrapalhado enquanto se desenterrava
da lama.
-
Faça o que tem de ser feito, então, herói. – respondeu o austero clérigo, agora
com a responsabilidade de guiar dois grupos.
Jack retribuiu o pedido com um
sorriso desajeitado e de confiança. Assentiu afirmativamente com a cabeça e
continuou a investida contra os orcs xamãs.
Agora
o resto do grupo era um plano de fundo que ficava cada vez mais distante para
Jack. Mais orcs brotaram das águas sujas. Eles esperavam não tão pacientemente
a primeira leva de sua raça sucumbir aos heróis e agora chegara a vez deles.
Tinham um único alvo.
O primeiro aproximou-se afundando
seus pés pesados e tentando realizar um encontrão com o ombro. Jack saltou sobre
ele usando uma de suas mãos como apoio nas costas do orc e iniciando uma
acrobacia que terminaria por deslizar até o meio das pernas de um segundo. Eles
estavam ficando para trás, mas, que se dane! O objetivo eram os xamãs que ele
iria derrubar no final de sua corrida e estes ainda pareciam distantes.
Quatro
orcs se avolumaram interceptando o caminho do halfling. Então, uma sombra se
desmanchou no meio de tudo e saltou com sua lâmina finíssima sobre as gargantas
das vítimas. O manto de escuridão corria ágil, ignorando o peso da chuva em
suas vestimentas encharcadas. Saltava com presteza e tornava-se um borrão que
aparecia e se apagava repentinamente. Apenas uma vez olhou para Jack e tinha a
face de um demônio, pois esta era a máscara que o Ceifador usava.
Jack
aproveitou-se do caminho livre provocado pelo seu aliado e encarou o objetivo
com um riso que qualquer um poderia discernir como prepotente. A sombra aliada
parou e seu manto manteve-se caído sobre os ombros enquanto a máscara
deslumbrava algo que nascia das sombras projetadas pelos menires.
O halfling focou a imagem e a viu
transformar-se num par de asas coriáceas que se abriam e esticavam com o
respaldar da ventania, moldando um corpo dracônico preenchido de escamas negras
que trilhavam o caminho até uma língua bifurcada encharcada de ácido e um par
de olhos vermelhos que, mesmo na escuridão e chuva, eram vivos como o sangue
que acabara de brotar de uma vítima.
-
Vocês estão brincando comigo!? A droga de um dragão agora não, né? – reclamou
Jack para o nada e foi respondido pelo regurgitar da imensa criatura que usava
os menires como apoio de suas grotescas e afiadas garras.
Juntos, halfling e Ceifador rolaram
para os limites da baforada ácida do dragão e notaram o líquido esverdeado
misturar-se ao pântano que era as poças de água e lama no meio do caminho.
-
Mudança de planos... – falou para o Ceifador – você mata os orcs xamãs. Eu
encaro o dragão.
...
e esse foi o combinado.
***
Relato:
Jack
Estava claro que o mundo precisava
de heróis quando eu nasci. Também estava claro que o grupo precisava de um
herói naquele exato momento. Foi por isso que eu corri para o confronto e
terminei encarando mais um dos filhos da rainha dos dragões negros. Então, sabe
qual é a diferença de um simples aventureiro para um herói? Vou te dizer qual
é: a audácia. E isso eu tenho muito!
Sabe...
eu não tinha dúvidas de como tudo aquilo ia terminar, principalmente quando eu
tomei as rédeas. Afinal, quantas vezes eu salvei esse grupo? Por isso chamei a
atenção do bicho enquanto o Ceifador percorria sorrateiro o caminho até aqueles
malditos xamãs apelões e seus raios. O dragão veio até mim, com garras e
presas, então eu saltei acrobaticamente e me deixei levar, inteligentemente,
pelo vento – já havia passado algum tempo de treinamento estudando essas
rajadas de ar e não foi assim tão difícil notar qual era a hora certa de pular –
quando me vi, estava exatamente onde eu queria estar: preso à asa direita do
dragão, a cimitarra cravada na pele que brotava um sangue fervilhante.
A
minha montaria rodopiou no ar e eu me assegurei que não cairia naquele show de
rodeio. As asas abanaram muito vento, mas a chuva ainda persistia em cair e
molhava a mim e à criatura – suas escamas ficando cada vez mais escorregadias.
Observei o campo de batalha nas alturas, de lá eu vi meus fiéis súditos
golpearem os orcs e ogros formando uma montanha de cadáveres ao redor deles
mesmos. Bem, tenho que elogiá-los: estavam fazendo muito bem seus serviços.
Especialmente para a imbecil da bárbara que, só o que sabe fazer é bater. O
mago e o clérigo tinham dificuldades para lançar suas magias, mas, era de se
esperar: a magia sempre falha nas horas mais preciosas. Os arqueiros pareciam
kobolds tentando acertar seus inimigos, um mais falho e patético do que o
outro. Já o Ceifador estava com dificuldades para atravessar o campo de
eletricidade que cercava os xamãs. Faltava a ele o que sobra em mim: audácia...
eu já disse!
O
dragão girou o corpo e minhas mãos já escorregadias soltaram a cimitarra e eu
me vi deslizando pelas costas do bicho até conseguir segurar firmemente em sua
cauda. Ali era um péssimo lugar, a cauda ziguezagueava no ar na tentativa de
livrar-se de mim e até o dragão tentou me abocanhar num jogo patético de “morder
o próprio rabo”. Não conseguiu.
As escamas escorregadias me
impossibilitavam de alcançar um lugar mais seguro nas costas da minha montaria
quando, de repente: Zum! – uma flecha cravou ali, a poucos metros de mim. “Droga,
os desgraçados querem me acertar?” foi o que pensei à primeira vista quando
Azanthe disparou aquela flecha certeira. “Não... ele não pode ter feito isso em
plena consciência.” E segurei a flecha tomando impulso até a parte inferior do
torso dracônico. Foi aí que outro “zum” me soprou os ouvidos e outra flecha
cravejou um pouco abaixo do ombro do bicho. Dessa vez foi o precipitado erê.
E
aí me veio a ocorrência: Definitivamente eles não estão fazendo isso com plena
convicção. Eu já havia ouvido e lido sobre isso. Sabe? Sobre como as coisas
curiosamente acontecem afim de trilhar o caminho de sucesso para um herói e era
claro que isso estava acontecendo naquela hora! Esperei o momento certo e
apenas deixei-me deslizar a cambalhotas até a segunda flecha. Já estava bem
perto de minha cimitarra novamente.
Um raio irrompeu a poucos metros de
mim. O dragão teve de se esquivar. Bem, pelo menos daquelas descargas elétricas
eu estava seguro e, logo, o grupo inteiro estaria livre daquelas coisas. O
Ceifador havia saltado em rodopios para dentro do círculo de eletricidade que
cercava os xamãs e, para ele, ficou fácil degolar gargantas e livrar-se dos
inimigos. Depois, feito uma sombra, sem brilho heroico nenhum, ele veio com
algumas acrobacias baratas e tentou agarrar-se ao dragão. Como se fosse uma
coisa simples. Tudo que conseguiu foi resvalar o sabre nas escamas e cair na
escuridão.
Lá,
do outro lado, o acúmulo de inimigos finalmente parecia ter cessado. Eu vi o
índio acertar a garganta de um ogro quase a queima roupa. Depois, Aramyn estava
declamando mais um de seus “blablablás” inspiradores quando o arqueiro doente e
a imbecil correram em direção ao dragão que me servia de montaria. O mago
estava tentando contornar sua inutilidade e, ao erguer as mãos contra o céu
tempestuoso, uma concentração elétrica preencheu a ponta de seus dedos e a rajada
foi lançada na direção da criatura voadora. “Que se foda o pequeno halfling,
afinal, ele não está segurando no dragão, não é?” – embora eu deva confessar
que o raio sequer encostou em mim e ainda atordoou a criatura, o que me
permitiu saltar e alcançar minha cimitarra novamente.
Minha lâmina havia cravado profundamente
na criatura e dificilmente sairia, mesmo com meus esforços. Bem, eu não podia
perder minha arma, não é? O que fiz foi puxá-la com tanta força que, por um
momento, pensei que ela estava fincada numa pedra. A cimitarra não saiu, em
compensação meus esforços latejaram no dragão e ele despencou durante alguns
segundos, perdendo altura de voo e me fazendo ser levado pelo vendaval. Tal foi
minha surpresa quando caí sobre o bicho novamente, me segurando numa terceira
flecha que havia se cravado à ele em algum momento que não percebi.
Era
o terceiro golpe que Freya havia dado no menir. Cortava-o como se fosse uma
árvore – me lembrei que seu machado era apropriado para isso. Foi nesse
terceiro ataque que a imensa pedra cheia de runas despencou. Ela chutou a rocha
na direção que queria e ela desabou sobre o dragão que, por pouco, se esquivou,
mas não se livrou do baque totalmente. Tive que ficar de pé nas costas da
criatura e saltar na hora certa afim de me esquivar do peso do menir. Vi três
escamas serem arrancadas.
Aramyn conjurou mais uma de suas
magias pouco efetivas, mas de algum jeito conseguiu instigar Azanthe a acertar
o dragão negro na boca do estômago. Khali ainda estava chafurdando os orcs e
ogros, embora para mim, todos já estivessem mortos. Acho que ele estava
saqueando. Sei lá... não confio em índios.
Seja
como for, aquele combo de ataques e danos foi demais para o dragão e o coitado
decidiu fugir. Ele rodopiou no ar, livrando-se de mais ataques ao alcançar uma
altura impossível para flechas e mergulhando numa escuridão densa e chuvosa que
impossibilitava Varuz conjurar a magia certa.
As
asas engolfavam uma quantidade imensa de ar e isso propulsionava ainda mais o
voo do dragão. Ele fugiria se pudesse. Mas, meus caros amigos: Eu estava lá!
A
luta era entre mim e minha vítima. A velocidade apenas me atrapalhava a
conseguir se deslocar e mesmo manter-me agarrado às escamas do dragão. Você não
pode imaginar como as rajadas de vento eram fortes! Qualquer um teria sido
arrebatado, mas, como eu já disse, eu tinha mais do que horas ou dias de
treinamento enfrentando fortes rajadas de ar e aquilo não iria me desesperar.
O dragão alcançou as nuvens negras da
tempestade e eu senti o frio me cortar a pele. Lá em cima é definitivamente
muito frio, mas, pelo menos as fortes rajadas de ar não são tão constantes e eu
me aproveitei para escalar escama por escama. O bicho pareceu perceber minha
estratégia e, logo, desceu rompendo as nuvens e rodopiando. Eu estava longe de
minha cimitarra e o meu manto laminado não seria tão efetivo àquela disposição.
Me assegurei que ficaria agarrado ao dragão até que me ocorresse outra ideia.
Então, ele rodopiou novamente e eu
deslizei de seu pescoço, conseguindo segurar em uma escama. Mas não qualquer
escama! A escama que me agarrei estava bem próximo de uma parte desprotegida de
seu corpo: o lugar onde três escamas haviam se soltado anteriormente. Mais um
toque do destino, mas este não seria o último.
“Se,
pelo menos, estivesse com a cimitarra em mãos” – eu pensei e automaticamente
desviei meus olhos até onde ela estava. Presa na asa direita do dragão. Também
notei outra coisa: a forte pressão das rajadas de ar começava a, vagarosamente,
desenterrá-la da carne da criatura. Tive uma ideia.
-
É só isso que você pode fazer, filhote de dragão? – incitei destemidamente meu
inimigo e a resposta me veio rápida. Ele rodopiou pela terceira vez e eu me
certifiquei que continuaria agarrado às escamas.
Eu estaria mentindo se dissesse que estava
esperando exatamente por aquilo, mas, bem, eu havia pensado na possibilidade. A
cimitarra soltou-se da asa direita do dragão e cortou o ar, girando em espirais
lacerantes e vindo parar na minha mão! Como as grandes histórias bárdicas
contam e a plateia desconfia da veracidade, eu estava lá, presenciando aquele
momento. O meu momento. Infelizmente não tinha plateia. Ou talvez tivesse! –
Noroi! Agora você vai saber com quem está se metendo.
Enterrei
a cimitarra na brecha das três escamas e o sangue fervilhante brotou
acompanhando um urro dracônico que se misturava a tempestade. A criatura não
rodopiava, nem conseguia arrebatar o vento ascendente que golpeava suas asas e,
por isso, caía velozmente.
Posso
dizer que me desgrudei da criatura despencada algumas vezes, mas acabei
alcançando suas asas, cauda e chifres afim de sustentar o dano da queda. O
dragão se debruçava tentando evitar minhas constantes tentativas de usá-lo como
apoio – como se quisesse que eu e ele tivéssemos o mesmo destino. Então,
escutei o estrondo do pescoço da criatura varrer o chão lamacento, criando
ondas pantanosas enquanto se arrastava pelos muitos metros que se passaram
quando finalmente havia alcançado o chão e, mesmo naquele instante, o dragão se
esforçava para me ver esmagado. Ele não conseguir, claro. Resfolegou, as asas
partidas pararam de se debater, pulmão e coração pararam de exercer suas
funções e o sexto filho da rainha dos dragões morreu comigo em cima dele!
Precisei esperar um longo tempo até
que meu grupo me alcançasse. Quando me viram, eu era um herói imponente e
indestrutível, pisando na cabeça do dragão, com a cimitarra fincada em sua
garganta. Nem mesmo o céu cinzento e apático daquele momento diminuiu meu
brilho!
-
Porque vocês demoraram tanto? – eu falei.
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