sábado, 28 de novembro de 2015

Três Escamas e o último voo



- Ragnar, acorde! – aconselhou Aramyn, agora de joelhos perante um corpo de olhos abertos e íris acinzentada como se parte da alma estivesse se esvaído do corpo. O clérigo de Splendor enraizou as próprias mãos no corpo do anão e recitou as preces mais poderosas de cura enquanto os malditos relâmpagos não paravam de mandar seus urros do céu. A magia divina era insuficiente. Aquele lugar tragava a fé de qualquer um e Aramyn manteve os olhos fechados e, em silêncio, lamentou o inevitável.

            Freya agora decidira gritar, a raiva rompera seu receio e agora sua missão era descer a lâmina de seu pesado machado nos orcs e ogros que a terra lamacenta vomitava. – Fique de pé, clérigo! A luta não acabou! – repetiu pelo menos três vezes como se aquele fosse um ritual que permitia que sua força de vontade continuasse viva e agressiva o suficiente para suspender a cabeça dos inimigos.

- Que grande merda! Eles são muitos, a gente tá se fodendo aqui! – reclamou Jack, o halfling enquanto saltava acrobaticamente entre os inimigos e deslizava o fio de seu manto em seus pescoços.
 - Solta logo uma daquelas magias explosivas, mago inútil! Você se esqueceu de como fazer isso justamente agora!?

- Por mais que meu treinamento tenha sido extremamente rígido em relação à concentração de minhas magias, esse ambiente é completamente voltado a silenciar minhas capacidades. – concluiu Varuz enquanto sentia o formigamento na ponta de seus dedos. Deveria ser um calor que se romperia de suas mãos, mas a soma de todo o rugido tempestuoso impedia a realização da magia - Não conseguem ver? Essa tempestade não é algo natural! É como um imenso ser criado para interferir nas nossas habilidades. Uma luta aqui é impossível de se vencer! Eu poderia dizer que sairemos derrotados daqui se não pensarmos em uma estratégia definitiva ou fugirmos.

- Que conversa é essa? Ainda somos os heróis aqui! Os inimigos não têm chance! Diga-me alguma coisa, índio desgraçado! – bravejou o halfling pelejando entre esquivas e ataques. A bárbara estava a poucos metros dele, sendo esmagada por uma clava enorme de ogro e se esforçando para erguer-se e contra-atacá-lo nas virilhas.

            Khali disparou uma de suas flechas na direção dos menires. A seta foi facilmente raptada pela ventania, como o indígena havia presumido. Ainda menos que o Azanthe, Khali não conseguia disparar suas flechas com eficiência graças à tempestade. Ele observou as flechas afiadas do arqueiro aliado descreverem caminhos aleatórios e, vez ou outra, atingir a perna ou o braço de um dos gigantes.

- Os xamãs nos menires! Aquelas pedras pontiagudas estão potencializando os raios. Minhas flechas nunca alcançarão lá. Nem mesmo Azanthe poderia fazê-lo.

- O inimigo reconhece cada uma de nossas habilidades – indagou Aramyn tornando a ficar de pé e lutando contra a morte aliada – Nos trouxe exatamente o desafio que impossibilita o uso de nossas magias e ataques. É uma luta impossível para os poucos fervorosos.

- Então, aqueles xamãs são o grande problema? Vou derrotá-los punho a punho e esse choro da derrota de todos vocês vai cessar! – difamou Jack e saltou sobre um amontoado de corpos mutilados.

- Jack espere! – gritou Aramyn, mas, entre um pé e outro, o halfling já se distanciava ignorando o alerta.

            Eis que os relâmpagos desabaram sobre o pequenino e cortaram o ar velozmente. Jack era ágil e, por pouco, esquivara-se da tempestade, mas, por fim, sentiu-se esganado por um ogro que se aproveitou do barulho ensurdecedor e atordoante do arco voltaico para surpreender o halfling. A mão gigante e enlameada cobria toda a cabeça de Jack e o espremia sem muitas dificuldades, sufocando-o e lançando-o contra o chão para então pisoteá-lo. Tarefa que não conseguiu graças ao atrevimento de Freya ao interferir com seu machado no meio dos dois.

- O que foi, Aramyn? – Jack perguntou meio atrapalhado enquanto se desenterrava da lama.

- Faça o que tem de ser feito, então, herói. – respondeu o austero clérigo, agora com a responsabilidade de guiar dois grupos.

            Jack retribuiu o pedido com um sorriso desajeitado e de confiança. Assentiu afirmativamente com a cabeça e continuou a investida contra os orcs xamãs.
Agora o resto do grupo era um plano de fundo que ficava cada vez mais distante para Jack. Mais orcs brotaram das águas sujas. Eles esperavam não tão pacientemente a primeira leva de sua raça sucumbir aos heróis e agora chegara a vez deles. Tinham um único alvo.

            O primeiro aproximou-se afundando seus pés pesados e tentando realizar um encontrão com o ombro. Jack saltou sobre ele usando uma de suas mãos como apoio nas costas do orc e iniciando uma acrobacia que terminaria por deslizar até o meio das pernas de um segundo. Eles estavam ficando para trás, mas, que se dane! O objetivo eram os xamãs que ele iria derrubar no final de sua corrida e estes ainda pareciam distantes.

Quatro orcs se avolumaram interceptando o caminho do halfling. Então, uma sombra se desmanchou no meio de tudo e saltou com sua lâmina finíssima sobre as gargantas das vítimas. O manto de escuridão corria ágil, ignorando o peso da chuva em suas vestimentas encharcadas. Saltava com presteza e tornava-se um borrão que aparecia e se apagava repentinamente. Apenas uma vez olhou para Jack e tinha a face de um demônio, pois esta era a máscara que o Ceifador usava.
Jack aproveitou-se do caminho livre provocado pelo seu aliado e encarou o objetivo com um riso que qualquer um poderia discernir como prepotente. A sombra aliada parou e seu manto manteve-se caído sobre os ombros enquanto a máscara deslumbrava algo que nascia das sombras projetadas pelos menires.

            O halfling focou a imagem e a viu transformar-se num par de asas coriáceas que se abriam e esticavam com o respaldar da ventania, moldando um corpo dracônico preenchido de escamas negras que trilhavam o caminho até uma língua bifurcada encharcada de ácido e um par de olhos vermelhos que, mesmo na escuridão e chuva, eram vivos como o sangue que acabara de brotar de uma vítima.
- Vocês estão brincando comigo!? A droga de um dragão agora não, né? – reclamou Jack para o nada e foi respondido pelo regurgitar da imensa criatura que usava os menires como apoio de suas grotescas e afiadas garras.

            Juntos, halfling e Ceifador rolaram para os limites da baforada ácida do dragão e notaram o líquido esverdeado misturar-se ao pântano que era as poças de água e lama no meio do caminho.
- Mudança de planos... – falou para o Ceifador – você mata os orcs xamãs. Eu encaro o dragão.
... e esse foi o combinado.

***

Relato: Jack  




            Estava claro que o mundo precisava de heróis quando eu nasci. Também estava claro que o grupo precisava de um herói naquele exato momento. Foi por isso que eu corri para o confronto e terminei encarando mais um dos filhos da rainha dos dragões negros. Então, sabe qual é a diferença de um simples aventureiro para um herói? Vou te dizer qual é: a audácia. E isso eu tenho muito!

Sabe... eu não tinha dúvidas de como tudo aquilo ia terminar, principalmente quando eu tomei as rédeas. Afinal, quantas vezes eu salvei esse grupo? Por isso chamei a atenção do bicho enquanto o Ceifador percorria sorrateiro o caminho até aqueles malditos xamãs apelões e seus raios. O dragão veio até mim, com garras e presas, então eu saltei acrobaticamente e me deixei levar, inteligentemente, pelo vento – já havia passado algum tempo de treinamento estudando essas rajadas de ar e não foi assim tão difícil notar qual era a hora certa de pular – quando me vi, estava exatamente onde eu queria estar: preso à asa direita do dragão, a cimitarra cravada na pele que brotava um sangue fervilhante.

            A minha montaria rodopiou no ar e eu me assegurei que não cairia naquele show de rodeio. As asas abanaram muito vento, mas a chuva ainda persistia em cair e molhava a mim e à criatura – suas escamas ficando cada vez mais escorregadias. Observei o campo de batalha nas alturas, de lá eu vi meus fiéis súditos golpearem os orcs e ogros formando uma montanha de cadáveres ao redor deles mesmos. Bem, tenho que elogiá-los: estavam fazendo muito bem seus serviços. Especialmente para a imbecil da bárbara que, só o que sabe fazer é bater. O mago e o clérigo tinham dificuldades para lançar suas magias, mas, era de se esperar: a magia sempre falha nas horas mais preciosas. Os arqueiros pareciam kobolds tentando acertar seus inimigos, um mais falho e patético do que o outro. Já o Ceifador estava com dificuldades para atravessar o campo de eletricidade que cercava os xamãs. Faltava a ele o que sobra em mim: audácia... eu já disse!

O dragão girou o corpo e minhas mãos já escorregadias soltaram a cimitarra e eu me vi deslizando pelas costas do bicho até conseguir segurar firmemente em sua cauda. Ali era um péssimo lugar, a cauda ziguezagueava no ar na tentativa de livrar-se de mim e até o dragão tentou me abocanhar num jogo patético de “morder o próprio rabo”. Não conseguiu.

            As escamas escorregadias me impossibilitavam de alcançar um lugar mais seguro nas costas da minha montaria quando, de repente: Zum! – uma flecha cravou ali, a poucos metros de mim. “Droga, os desgraçados querem me acertar?” foi o que pensei à primeira vista quando Azanthe disparou aquela flecha certeira. “Não... ele não pode ter feito isso em plena consciência.” E segurei a flecha tomando impulso até a parte inferior do torso dracônico. Foi aí que outro “zum” me soprou os ouvidos e outra flecha cravejou um pouco abaixo do ombro do bicho. Dessa vez foi o precipitado erê.
E aí me veio a ocorrência: Definitivamente eles não estão fazendo isso com plena convicção. Eu já havia ouvido e lido sobre isso. Sabe? Sobre como as coisas curiosamente acontecem afim de trilhar o caminho de sucesso para um herói e era claro que isso estava acontecendo naquela hora! Esperei o momento certo e apenas deixei-me deslizar a cambalhotas até a segunda flecha. Já estava bem perto de minha cimitarra novamente.

            Um raio irrompeu a poucos metros de mim. O dragão teve de se esquivar. Bem, pelo menos daquelas descargas elétricas eu estava seguro e, logo, o grupo inteiro estaria livre daquelas coisas. O Ceifador havia saltado em rodopios para dentro do círculo de eletricidade que cercava os xamãs e, para ele, ficou fácil degolar gargantas e livrar-se dos inimigos. Depois, feito uma sombra, sem brilho heroico nenhum, ele veio com algumas acrobacias baratas e tentou agarrar-se ao dragão. Como se fosse uma coisa simples. Tudo que conseguiu foi resvalar o sabre nas escamas e cair na escuridão.
Lá, do outro lado, o acúmulo de inimigos finalmente parecia ter cessado. Eu vi o índio acertar a garganta de um ogro quase a queima roupa. Depois, Aramyn estava declamando mais um de seus “blablablás” inspiradores quando o arqueiro doente e a imbecil correram em direção ao dragão que me servia de montaria. O mago estava tentando contornar sua inutilidade e, ao erguer as mãos contra o céu tempestuoso, uma concentração elétrica preencheu a ponta de seus dedos e a rajada foi lançada na direção da criatura voadora. “Que se foda o pequeno halfling, afinal, ele não está segurando no dragão, não é?” – embora eu deva confessar que o raio sequer encostou em mim e ainda atordoou a criatura, o que me permitiu saltar e alcançar minha cimitarra novamente.

            Minha lâmina havia cravado profundamente na criatura e dificilmente sairia, mesmo com meus esforços. Bem, eu não podia perder minha arma, não é? O que fiz foi puxá-la com tanta força que, por um momento, pensei que ela estava fincada numa pedra. A cimitarra não saiu, em compensação meus esforços latejaram no dragão e ele despencou durante alguns segundos, perdendo altura de voo e me fazendo ser levado pelo vendaval. Tal foi minha surpresa quando caí sobre o bicho novamente, me segurando numa terceira flecha que havia se cravado à ele em algum momento que não percebi.

Era o terceiro golpe que Freya havia dado no menir. Cortava-o como se fosse uma árvore – me lembrei que seu machado era apropriado para isso. Foi nesse terceiro ataque que a imensa pedra cheia de runas despencou. Ela chutou a rocha na direção que queria e ela desabou sobre o dragão que, por pouco, se esquivou, mas não se livrou do baque totalmente. Tive que ficar de pé nas costas da criatura e saltar na hora certa afim de me esquivar do peso do menir. Vi três escamas serem arrancadas.

            Aramyn conjurou mais uma de suas magias pouco efetivas, mas de algum jeito conseguiu instigar Azanthe a acertar o dragão negro na boca do estômago. Khali ainda estava chafurdando os orcs e ogros, embora para mim, todos já estivessem mortos. Acho que ele estava saqueando. Sei lá... não confio em índios.

Seja como for, aquele combo de ataques e danos foi demais para o dragão e o coitado decidiu fugir. Ele rodopiou no ar, livrando-se de mais ataques ao alcançar uma altura impossível para flechas e mergulhando numa escuridão densa e chuvosa que impossibilitava Varuz conjurar a magia certa.

            As asas engolfavam uma quantidade imensa de ar e isso propulsionava ainda mais o voo do dragão. Ele fugiria se pudesse. Mas, meus caros amigos: Eu estava lá!
A luta era entre mim e minha vítima. A velocidade apenas me atrapalhava a conseguir se deslocar e mesmo manter-me agarrado às escamas do dragão. Você não pode imaginar como as rajadas de vento eram fortes! Qualquer um teria sido arrebatado, mas, como eu já disse, eu tinha mais do que horas ou dias de treinamento enfrentando fortes rajadas de ar e aquilo não iria me desesperar.

 O dragão alcançou as nuvens negras da tempestade e eu senti o frio me cortar a pele. Lá em cima é definitivamente muito frio, mas, pelo menos as fortes rajadas de ar não são tão constantes e eu me aproveitei para escalar escama por escama. O bicho pareceu perceber minha estratégia e, logo, desceu rompendo as nuvens e rodopiando. Eu estava longe de minha cimitarra e o meu manto laminado não seria tão efetivo àquela disposição. Me assegurei que ficaria agarrado ao dragão até que me ocorresse outra ideia.

            Então, ele rodopiou novamente e eu deslizei de seu pescoço, conseguindo segurar em uma escama. Mas não qualquer escama! A escama que me agarrei estava bem próximo de uma parte desprotegida de seu corpo: o lugar onde três escamas haviam se soltado anteriormente. Mais um toque do destino, mas este não seria o último.

“Se, pelo menos, estivesse com a cimitarra em mãos” – eu pensei e automaticamente desviei meus olhos até onde ela estava. Presa na asa direita do dragão. Também notei outra coisa: a forte pressão das rajadas de ar começava a, vagarosamente, desenterrá-la da carne da criatura. Tive uma ideia.

- É só isso que você pode fazer, filhote de dragão? – incitei destemidamente meu inimigo e a resposta me veio rápida. Ele rodopiou pela terceira vez e eu me certifiquei que continuaria agarrado às escamas.

            Eu estaria mentindo se dissesse que estava esperando exatamente por aquilo, mas, bem, eu havia pensado na possibilidade. A cimitarra soltou-se da asa direita do dragão e cortou o ar, girando em espirais lacerantes e vindo parar na minha mão! Como as grandes histórias bárdicas contam e a plateia desconfia da veracidade, eu estava lá, presenciando aquele momento. O meu momento. Infelizmente não tinha plateia. Ou talvez tivesse! – Noroi! Agora você vai saber com quem está se metendo.

Enterrei a cimitarra na brecha das três escamas e o sangue fervilhante brotou acompanhando um urro dracônico que se misturava a tempestade. A criatura não rodopiava, nem conseguia arrebatar o vento ascendente que golpeava suas asas e, por isso, caía velozmente.

            Posso dizer que me desgrudei da criatura despencada algumas vezes, mas acabei alcançando suas asas, cauda e chifres afim de sustentar o dano da queda. O dragão se debruçava tentando evitar minhas constantes tentativas de usá-lo como apoio – como se quisesse que eu e ele tivéssemos o mesmo destino. Então, escutei o estrondo do pescoço da criatura varrer o chão lamacento, criando ondas pantanosas enquanto se arrastava pelos muitos metros que se passaram quando finalmente havia alcançado o chão e, mesmo naquele instante, o dragão se esforçava para me ver esmagado. Ele não conseguir, claro. Resfolegou, as asas partidas pararam de se debater, pulmão e coração pararam de exercer suas funções e o sexto filho da rainha dos dragões morreu comigo em cima dele!

            Precisei esperar um longo tempo até que meu grupo me alcançasse. Quando me viram, eu era um herói imponente e indestrutível, pisando na cabeça do dragão, com a cimitarra fincada em sua garganta. Nem mesmo o céu cinzento e apático daquele momento diminuiu meu brilho!

- Porque vocês demoraram tanto? – eu falei.


            

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