quarta-feira, 18 de novembro de 2015

A Teoria do Acaso


            Sigmund não se importava em dormir como os outros. Não se preocupava com as noites em claro. Ele nem sequer se incomodava com a solidão que sua biblioteca lhe proporcionava. Era o terceiro dia que ele permanecia em seu refúgio e sua única companhia era Sphynx, um gato preto, presente ofertado por djinni.

            A pilha de livros localizada no canto da sala repleta de estantes já não mais lhe servia. Tinha uma memória excepcional, conseguia absorver todas as informações de livros já lidos sem a necessidade de inspecioná-los uma segunda vez. Sigmund estudava presságios em cálculos que misturavam a aritmética, a geometria e intrínsecas operações matemáticas na tentativa de desenvolver a erudição de algo que ele denominara “teoria do acaso”.

            A teoria do acaso era um estudo raro e complicado e foi devido à excentricidade do assunto que Sigmund decidira doar parte de sua vida na tentativa de aprimorá-lo. É claro que ele não sabia no que estava se metendo: estudar o destino era algo que somente os tolos fariam, mas já estava obcecado demais com o conhecimento obtido que resolvera ignorar essa afirmação, principalmente depois que a teoria o ajudou a prever acontecimentos desastrosos.

Jogou o mínimo pedaço de giz num dos cantos da biblioteca – um lugar cujo já havia um amontoado destes – e friccionou os olhos com as costas das mãos tentando relevar o cansaço. Não adiantara. Despejou um pouco de chá numa porcelana e sentou-se frente a uma mesa invadida por livros, pergaminhos e anotações. Relaxou cada músculo e sentiu a cabeça latejar.

“ Encontrou algo, meu mestre? ” perguntou Sphynx se materializando feito fumaça cinzenta em cima da mesa onde Sigmund se apoiava.

“ Não, ainda. ” respondeu Sigmund bebericando um pouco do chá que já estava bem frio.

“ Então, finalmente alcançou o seu limite? ”

“ Eu alcancei somente um intervalo do meu limite. Só isso. Apenas preciso de um rápido descanso e pensar um pouco mais sobre a teoria. ”

            Sphynx ronronou e depois saltou para o topo de uma torre de livros em cima da mesa. A biblioteca estava trancada e não permitia sequer a passagem de uma fresta de luz – embora do lado de fora um lindo dia raiasse – apenas a luz de um candelabro de quatro velas proporcionava uma fraca iluminação ao aposento.

“ Você nunca cogitou que a teoria pudesse estar errada, não é, Sigmund? ” perguntou Sphynx com sua voz felina dotada de eloquência e sagacidade.

“ A teoria do acaso não está errada, nem certa. Ela pode mudar totalmente amanhã, basta que algo ou alguém resolva contorná-la. ”

“ Bem-vindo à inutilidade do assunto, senhor. ”

            Sigmund já não insistia em tentar convencer Sphynx sobre a veracidade de seus estudos, sabia que o desinteresse do djinni era típico dos seres astrais: aéreos e despreocupados. Não! A teoria do acaso não poderia ser desenvolvida por qualquer acadêmico. Sigmund era capaz de provar isso matematicamente.

            Sphynx encontrou uma posição confortável e pôs-se num descanso recorrente enquanto Sigmund provava mais um pouco do chá frio e lembrava-se de sua terra natal, a agora arruinada Azran. Sua mente era capaz de projetar as lembranças da primeira audiência na qual ele havia participado com o intuito de provar a genuinidade de sua teoria.

            Eram lembranças de vinte anos atrás, dos corredores iluminados da capital Brastav, das fontes que jorravam água límpida e se espalhavam em aquedutos que cercavam estátuas, fontes e imagens sólidas de representações heroicas. Das pontes de mármore construídas na forma de arco, abóbadas e jardins banhados de luz e serenidade.

Tannabullus era o senhor da magia naquela velha Azran. Um senhor de idade que havia juntado seus esforços enquanto jovem para desenterrar os segredos contidos em monólitos encontrados nas gigantescas ruínas de Chattur’gah. Foi inspirador para Sigmund palestrar uma de suas teses para alguém que ele considerava tão importante – boa parte da teoria do acaso advém de anotações encontradas nas ruínas de Chattur’gah e foi graças a esse achado que Sigmund pôde prever os principais acontecimentos que, mais tarde, lhe dariam o cargo de sênior da Ordem Arcana de Azran.

“ Não vim aqui no intuito de convencê-los que a fé é algo que se possa deixar de lado. Ao contrário, ela é uma variável de meus estudos, assim como a vingança, o heroísmo, o amor e o ódio o são. ” explicava Sigmund enquanto rabiscava a giz um quadro negro disposto na sala de audiências. Eram símbolos estranhos, pouco reconhecíveis para a maioria dos presentes. Estes se entrelaçavam em formas geométricas e gráficos espalhados pela tela escura.

“ Isto é o que costumo chamar de Espiral do Destino...” então, desenhou uma forma helicoidal no centro do quadro negro e destacou os encontros das linhas espiraladas com símbolos que representavam essas variáveis. “ Eu poderia preencher toda essa superfície com uma quantidade inimaginável de variáveis, poderia multiplica-las ou dividi-las entre si para alcançar praticamente qualquer tipo de resultado. A minha intenção, é claro, seria estabilizar esses resultados. O que quero dizer é que, através desses cálculos matemáticos poderíamos construir um equilíbrio de decisões que afetariam o destino. ”

            A prepotência do assunto instigou desconfiança nos docentes. Alguns rostos se contorceram de indignação, outros estreitaram os olhos afim de entender a que ponto aquilo iria chegar.

“ Uma manipulação do destino. É isso que você anda estudando, Sigmund. ” adiantou-se um dos membros docentes, esboçando claramente seu desprezo à teoria explicada. “ Um estudo eterno de acontecimentos. Você menospreza o conhecimento dos membros da área de clarividência de nossa ordem. Mesmo os iniciados na arte da vidência sabem que o destino é algo mutável. Não existe um futuro perfeitamente tracejado. ”

“ Eu estou certo que não existe mesmo, meu caro mentor Halias. E, é por isso que a teoria do acaso se encaixa tão bem. O destino é mutável, por isso estas variáveis influenciam os resultados e é sabendo disso que, através desses cálculos, poderíamos distinguir qual a melhor e menos arriscada variável que deveríamos utilizar e, não somente isso! Eu estou falando de um conjunto de expressões e coordenadas que nos levariam a dividir o peso dessas decisões entre essas variáveis afim de alcançar o resultado desejado. ” Sigmund rabiscava o quadro negro enquanto dirigia suas palavras à plateia sem necessariamente dá-lhes total atenção. “ Quero que vocês prestem atenção nesse cálculo, mais precisamente nestas incógnitas e a forma com as quais elas se eliminam até sobrar somente alguns símbolos manipuláveis. A expressão inteira nos indica um fator negativo que se acumula distanciando-se bastante de um resultado estabilizado. Se encaixássemos esses valores numa curva trigonométrica, veríamos que os resultados não são oscilatórios. Ou eles despencam em determinado momento ou se elevam a picos naturalmente inalcançáveis. ” desenhou um trio de curvas especificadas pelo seu estudo e percebeu que precisava de mais giz para continuar sua explicação.

“ Os exemplos parecem condizer com suas expectativas, Sigmund, porém, eles não nos prova nada. São apenas padrões criados e idealizados por você. Sua teoria pode ter alguma significância, é verdade, mas, com certeza é cedo demais para apresentá-la a esta audiência. ” concluiu um segundo docente.

“ É respeitável sua observação, meu caro Ciril, mas estes padrões não foram criados por mim ” Sigmund agora buscava um segundo giz enquanto um grupo de novatos acadêmicos distribuía ao corpo docente um punhado de pergaminhos “Se puderem analisar os meus cálculos mais detalhadamente, poderão notar que as variáveis se encaixam perfeitamente com os acontecimentos históricos que descrevem perfeitamente épocas longínquas, mesmo as que antecedem a evolução humana”.

            Os mestres arcanos agora se sentiam instigados pelo assunto, mesmo aqueles que menosprezaram a teoria do acaso poucos minutos antes, agora abriam os pergaminhos e passavam seus olhos ansiosos rapidamente pela inúmera quantidade de páginas da tese escrita. O conteúdo não se diferenciava do descrito na lousa, mais era mais amplo e detalhado. Iniciava-se com uma simples equação que logo se desmontava em um cálculo matemático abrangente. Incógnitas substituídas pelas variáveis da Espiral do Destino descreviam respostas e, cada resposta tinha uma explicação relacionada a algum acontecimento, apontados de forma genial pelo próprio Sigmund.

Os desconfiados mestres arcanos demoraram algum tempo analisando as anotações. Em seus rostos eles esboçaram as mais variadas reações, da surpresa incontida à dúvida, todos eles pareciam estar tendo alguma dificuldade para acertar o caminho certo, mas não levaria mais tempo até que eles soubessem exatamente até onde Sigmund queria chegar.

“As Guerras da Era! ” exclamou um dos docentes “Toda essa teoria foi capaz de calcular não somente seus resultados, mas também todo o caminho ocorrido até elas! ” Sigmund ficou satisfeito com a surpresa da declaração, “Todos os cálculos parecem plausíveis e convincentes! ” revelou um segundo docente que acabara de retornar à página inicial afim de analisá-las novamente. “Você está tentando provar que uma Guerra da Era está prestes a acontecer, é isso? ” indagou um dos mestres arcanos.

“Estou tentando provar que uma Guerra da Era já começou e que somos o primeiro alvo” respondeu Sigmund e seu rosto demonstrou severidade de tal forma que todos os presentes dirigiram suas atenções a ele.

            Pelos salões da capital de Azran ecoou o som da balbúrdia e das discussões sobre a veracidade dessa afirmação e, para variar, a maioria não acreditava nela. Sigmund já havia previsto isso.

“Se o que você está falando é verdade e se essa teoria do acaso estiver realmente certa, você tem a resposta para impedir a quarta Guerra da Era.”

“Sim, eu tenho.” e a afirmação soou tão austera e prepotente que o corpo docente esboçou a silhueta mais indignada possível.

            Alguns xingaram, outros debocharam, mas a resposta para essa desconfiança veio dois anos depois, com a visita das Hordas Trôpegas e a queda da capital de Azran. Disso Sigmund também se recorda com detalhes. É uma das lembranças que ele deseja apagar de sua mente, mas todas as noites as imagens de morte e destruição se projetam em seus sonhos.

“Talvez seja essa recordação o principal motivo de minha insistência.” pensou Sigmund e sua xícara de porcelana já estava vazia.

            Permaneceu mais alguns minutos em silêncio, de olhos fechados, permitindo-se inundar de más lembranças. Sphynx dormiu sobre a pilha de livro. Sigmund resolveu continuar seus estudos imediatamente.



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