“Na verdade, eu
demorei. Demorei para me descobrir assim: dono de uma história de pessoas
solitárias, de perdas e ausências e que, por tal motivo, abracei-a com afinco
até compreender o porquê de tanta empatia. Sou como quem escapa pelas páginas
de um romance, ainda confuso e sem me importunar com o tempo. Aqueles que
preciso amar são sombras residentes da alma de estranhos”.
Pensamentos eram o mantra do
príncipe. Sem a motivação dos demais, ele seria como um vento brando mudando de
direção. Débil e imprudente. A incerteza perfurou sua alma quando o peso da
responsabilidade o alcançou tão cedo, carregando entre adagas afiadas o fardo
que era manter-se vivo mesmo afetado pelas lembranças de morte.
“O
sangue que pulsa lento e frio do corpo dela. A carne arranhada pela vontade de
um destino cruel. O final trágico que inspira vingança. Alguém escreveu isso
para você, jovem príncipe. E assim deveria acontecer. ” – estas foram as
últimas palavras de Cyril, pronunciadas ainda afogadas em sangue. Sangue que
lhe subia a garganta, fugindo da dor que era ter a lâmina do príncipe enterrada
no estômago. Poucas vezes o príncipe lutara como naquele dia. Vingança é uma
palavra pesarosa para quem se atreve a blasfemá-la, mas a sina do príncipe,
dali em diante, seria aquela.
E permitiu-se continuar assim:
consumido pela dependência que eram as dores que ecoavam em seu peito. E
desembainhou a lâmina do príncipe outras várias vezes, assim como agora
desembainhava contra o inimigo.
“O
destino de uma inúmera quantidade de vítimas é recorrência de sua dor, príncipe
dos Anjos de Pedra. Quantas cabeças precisaram ser cortadas até que o sangue
dos inocentes escorresse e, enfim alcançasse as torres do seu Palácio da
Vingança? ” – praguejou Balberich e sua lâmina fria implorou por sangue.
A
lâmina do príncipe farejou a ameaça e sua gêmea foi desembainhada. Um vórtice
de energia criado da soma das vontades do príncipe e das lâminas crepitou e
suas faíscas encontraram uma escuridão densa e agora acovardada pela emanação
luminosa.
“Quero
que o seu fim seja um alento às minhas memórias, Balberich. Não haverá golpes
de misericórdia. Se você acha que a agonia do seu sofrimento fará de mim alguém
menor, terá o prazer de me ver tornando-se um monstro enquanto minha espada faz
seu ofício. ” – respondeu o príncipe e havia uma mistura confusa de austeridade
e escárnio desenhados em seu rosto.
“Você
fala como um de nós, príncipe da vingança. Se lhe resta um pouco de alma, saiba
que ela está irremediavelmente incompleta. Um futuro manipulado pelo frágil
toque de um mutilado não é a inspiração que um povo precisa. Você os fará temer
e seu reino devorará a sombra que há de chegar em breve. ”
Os disparates trouxeram incertezas
ao coração do príncipe. Seus punhos vacilaram e durante alguns momentos as
lâminas gêmeas sentiram o fraquejar da consciência de seu portador e
deixaram-se inundar pelas sombras projetadas pela espada fria do inimigo. O
príncipe encaixava suas ideias na mente, mas não conseguia formular qualquer
defesa psicológica até que a voz experiente de um rei soou em seus ouvidos,
como se estivesse sendo sussurrada ali, tão próxima. A voz lembrara ao príncipe
uma das principais estratégias dos vilões com língua de prata: desmoralização.
Incutir a dúvida era uma das espertezas inimigas e ele não podia se deixar
abater por aquilo.
Mas,
porque era tão difícil se desenganar daquelas palavras ilusórias?
A fria espada inimiga dançou no ar
espalhando uma chuva de pó cortante, como minúsculas partículas de vidro afiado
sendo projetados junto à sua arremetida. O príncipe teve pouco tempo para
reagir e descreveu um giro rápido com a lâmina gêmea sentindo o peso agudo da
arma inimiga quase resvalar seu rosto e arrancar sua orelha. Balberich continuou
a rodopiar a espada e a ponta aguçada tracejou um corte letal subindo pelo
ventre do alvo. O príncipe afastou-se, mas ainda assim a espada feita de frio
deslizou sobre a armadura de couro, se aprofundando e rasgando o que podia.
Com a mão apalpando a boca do
estômago, o príncipe analisou o estrago do ataque inimigo e percebeu que o
corte não havia sido profundo. Estendeu as lâminas gêmeas e preparou sua rodada.
Antes que pudesse pensar em como agir, sentiu o sangue subir-lhe a garganta e
jorrar por sua boca e narinas. Atordoado, o príncipe vomitou o líquido vermelho
enquanto a vertigem preenchia seus olhos.
“Está
confuso, príncipe? ” – desdenhou Balberich com um curto sorriso desenhado no
rosto. “É impossível sair imune de um ataque desferido por Naz’beth, a de
hálito afiado. O que está sentindo foi provocado pelo seu próprio sistema
respiratório. Algo involuntário e letal quando enfrenta o poder de minha espada.
”
O príncipe tirou o excesso de sangue
da boca com as costas da mão e esperou que seus olhos focassem alguma coisa
novamente. “Vidro.” – assentiu enquanto analisava suas mãos e notava finas
partículas cortantes, tão leves quanto o ar, se moverem como nuvens de vapor.
“Não
se trata de simples vidro. Naz’beth foi forjada no Vale dos Ventos da Luxúria,
o segundo inferno, onde uma ventania constante rasga a alma das vítimas. Sua
lâmina foi forjada a partir da crisálida de demônios-mariposa, criaturas que passam
a eternidade devorando o peito dos pecadores que tiveram suas almas desfeitas
pelo amor. ” – Balberich riu de sua própria explicação. “Um tanto dramática sua
sina, não é mesmo, príncipe? Mas, eu tenho certeza que os escritores da geração
arruinada que nos espera, se esforçarão para descrever essa luta abusando de
todo teor histórico. Ah! A morte de um príncipe, não poderia ser mais romântica!
”.
“Porque
você está cantando vitória, Balberich? ” – indagou o príncipe se recompondo do
momento de surpresa. “Você acha que o portador das lâminas de Citadel irá
sucumbir numa luta contra um mísero servo do lado perdedor? ” – esboçou um
sorriso vermelho, manchado pelo próprio sangue.
“Bela
maldição é a sua língua, príncipe dos supostos vitoriosos. Talvez essa luta de
egos seja mais impressionante que a justa prestes a ocorrer. ” – Balberich
girou a espada fria e uma nuvem de poeira vítrea circundou seu corpo
inofensivamente.
Era
um embate, o príncipe precisava responder em combate da melhor forma possível.
Prendeu o fôlego e saltou sobre o inimigo, as duas lâminas descrevendo a mesma
linha de ação e encontrando-se com a espada fria do inimigo. O príncipe escutou
o barulho de vidro sendo quebrado quando Balberich bloqueou e girou o corpo
desviando-se da parte principal do impacto. A nuvem de poeira vítrea saltou
contra o rosto do príncipe, enquanto Balberich apertava o punho de Naz’beth e a
crisálida sobrenatural reconstruía a lâmina afiada novamente.
O
príncipe tossiu e cuspiu mais sangue, pois prender a respiração não impedia que
a nuvem vítrea penetrasse em suas narinas e, enfim, se misturasse ao próprio
fôlego. Afastou-se usando uma das lâminas como defesa para, então, perceber que
a arena se tingira de vermelho. O vidro havia lacerado acima das sobrancelhas e
agora o sangue escorria sem controle diante sua visão. Por pouco, o poder do
hálito cortante não cegara o príncipe e agora ele sabia que teria poucas
chances nessa luta.
“Você
ainda consegue enxergar, príncipe? Que sorte a sua! ” – debochou Balberich.
O príncipe pensara em se armar com o
arco, mas refletiu pouco antes de perceber que aquela não seria uma boa ideia:
o inimigo não era imóvel, podia trazer consigo a nuvem vítrea e acertar um alvo
a curto alcance com um arco era perigoso, principalmente se o agressor
estivesse armado.
Balberich
aproveitou-se do impasse e saltou ofensivamente contra o príncipe. A espada
fria rastreando o caminho para o peito inimigo e, por pouco, bloqueada pela lâmina
da mão hábil. Era notável a lentidão da defesa inimiga, pois, o príncipe, além
de ter uma cortina de sangue sobre os olhos, protegia os pontos vitais e
tentava impedir que a nuvem de vidro mutilasse definitivamente seus olhos. Foi
por isso que Balberich conseguiu realizar um segundo ataque contra o rosto de sua
vítima e, satisfeito, sentiu a espada fria açoitar a face inimiga, rasgando
como papel a pele abaixo do olho direito, tão profundamente que o príncipe pôde
sentir o gosto de sangue descer-lhe pela garganta.
Ofegante, o príncipe ganhou
distância. Atordoado, o príncipe perdeu o equilíbrio e tombou, caindo de
joelhos. Mutilado, o príncipe regurgitou mais sangue e sentiu seus pulmões
latejarem de tanto arder.
“Você
já deve ter notado que as chances de vencer um combate contra mim e Naz’beth é
nula. Dizem que quando alguém está prestes a morrer, a consciência cria uma
série de imagens importantes na mente, é como se você as tivesse encarando
diante um espelho. São lembranças da ruína. Eu acredito que você esteja
enxergando-as agora. Suas ruínas houveram de ser muitas, mas, acabou. Pode
sossegar, príncipe dos mutilados. Você não precisa mais se importar com nada.
Não irá se importar sequer com a dor, daqui a alguns segundos. ”
A
nuvem de vidro ainda rasgava a pele do príncipe. Rodopiava em espirais
cortantes, mutilando mãos, braços, pernas e torso. Ainda teimavam em inundar
suas narinas e perfurar seus olhos. Fatigado, ele levantou o rosto e encarou as
minúsculas partículas vítreas dançando no ar e formando a imagem de seu
passado. O príncipe ficou boquiaberto diante as lembranças perturbadoras. O
hálito cortante era agora um espelho revelando sua derrota e tinha Balberich
como plano de fundo.
Enraivecido
pela gana de seu inimigo, o príncipe atacou a imagem de vidro a sua frente
resultando num estilhaçar cortante que lacerou ainda mais seu corpo. Sua lâmina
fiel emanou uma descarga elétrica furiosa, afastando cada partícula vítrea de
sua frente. Ele observou aquilo com curiosidade.
“Não
adianta, meu nobre inimigo. Você já absorveu o veneno mental que Naz’beth exala
e tem poucos minutos antes que seu corpo e consciência se esvaiam
completamente. ”
“Não
acho que vou precisar de minutos para dar um fim a esta luta, Balberich. ” –
afirmou decididamente o príncipe, levantando-se entre a exaustão e o jorro de
seu próprio sangue com as lâminas gêmeas firmemente presas aos seus punhos.
“Eu
confesso que estou te menosprezando, príncipe. Qualquer um já teria sucumbido
aos efeitos da minha espada. Parece que eu terei de lhe mostrar um ponto final
definitivo. ” – Balberich avançou contra o príncipe como uma seta aguçada, adornada
pelo fio da navalha que era o vapor vítreo.
O príncipe titubeou visivelmente
desequilibrado e ajoelhou-se perante a imagem oferecida pelo reflexo de Naz’beth.
Enfiou as lâminas gêmeas no chão afim de apoiar o corpo para que este não
tombasse inteiramente. Esperou a aproximação do inimigo e impôs uma descarga
elétrica quase inofensiva ao seu redor enquanto se esforçava para desviar-se do
golpe letal, afastando-se até uma área segura.
“É
essa sua estratégia? Essa estática criada pela sua lâmina serve apenas para
assanhar meus cabelos! ” – debochou Balberich.
“Para
que Citadel fosse erguida, nós, a primeira linhagem, enfrentamos inúmeros
desafios. Exércitos infindáveis que arrastavam seu terror nesse e em outros
mundos. Quando o aspecto do primeiro deus profano emergiu de sua prisão divina,
derrotar-nos foi sua primeira intenção. Ele marchou com suas criaturas de
trevas até nosso antigo lar e inundou nossas terras de sangue e ruína. O
primeiro de minha linhagem subiu até Angraheim, o palácio dos reis, cujo o topo
alcança as nuvens e lá recebeu a benção do primeiro deus. O céu inteiro
respondeu ao seu chamado de vingança e os arcos voltaicos formados de relâmpago
deram forma às espadas gêmeas que agora você vê, Balberich. ” – o príncipe
erguia-se, renovado de confiança e inspiração. Sua veracidade apunhalou
Balberich desprevenido e este ouviu cada palavra do discurso a espera de um
resultado. – “Em suma, as lâminas gêmeas são a voz da primeira existência divina.
Elas são o Trovão de deus e seu poder não pode ser equiparado a qualquer arma
forjada na boca do inferno. ”
O
silêncio assolou o campo de batalha enquanto os céus relampejavam assentindo às
palavras heroicas do jovem príncipe. Portando as lâminas gêmeas, ele andou a
passos curtos em direção ao inimigo. O rosto estampando certeza.
E Balberich não se afastou. Encarou
aquele rosto austero que a princípio não lhe parecia um desafio e agora
paralisava cada músculo de seu corpo.
O
príncipe alcançou a distância planejada e fez com que o Trovão de Deus ecoasse
uma centelha elétrica e divina que fez as partículas vítreas ao redor de
Balberich se afastarem, como os lados opostos de um imã. O portador de Naz’beth
agora estava totalmente desprotegido.
Nem
mesmo a língua de Balberich, afiada em palavras, conseguia se mover agora e o
príncipe não lhe deu um golpe de misericórdia. Fez suas lâminas dançarem. Elas
cortaram o ar e desfiaram o peitoral de aço do inimigo, se enterraram nas
entranhas, deceparam um braço, devoraram as vísceras e se alimentaram de sangue
e vingança.
Quando
o inimigo se engasgava com sangue, o príncipe apenas o observou.
Quando
os olhos do inimigo começaram a ficar cinzentos e inertes, o príncipe cravou
uma de suas espadas na perna dele e reavivou sua dor.
Quando
a língua do inimigo deu sinal de implorar, o príncipe a cortou.
Quando
a consciência do inimigo começou a desaparecer, o príncipe tornou-se um
monstro.
Quando
o inimigo morreu, o príncipe se levantou e esperou que a chuva lavasse sua dor.
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