A escuridão a cercava
com braços de sombra que a envolviam em carícias. Ela era a amante. Cada elemento
preso naquela escuridão maçante lhe era cativo. Lambiam sua nudez pálida e se
hipnotizavam com sua desenvoltura cálida, pé ante pé, pisando em ilusão.
Eu não conseguiria me
descrever como uma de suas sombras perseguidoras, pois o que me restava era o
silêncio decadente que ela abandonava ao caminhar para distante do coração da
montanha. Eu era um plano de fundo pouco detalhado e distante. Talvez, desnecessário.
Mesmo assim, eu a segui.
E me arrastei, como
tenho feito desde o primeiro fôlego da não-vida.
Eu sempre persegui um
ponto final. Todos inevitavelmente se transformaram em reticências. Foi assim
que me permiti consumir feito uma chama. Mesmo quando podia decidir para onde
caminhava, meus pés perseguiam o casual. Então, fui atrás das pessoas que me
interessavam. Os loucos. Loucos para viver. Loucos para expressar. Loucos pelo
tempo não perdido. Aqueles que querem tudo ao mesmo tempo. Que não se desanimam
esperando o prazo para, enfim, descansar para sempre. Aqueles que não falam
sobre coisas óbvias e que se deixam arder. Arder feito brasa. Feito um incêndio
que se propaga pela noite.
Mas mesmo o maior
incêndio tem prazo para se apagar.
A primeira maldição
olhou para o céu escuro de nuvens carregadas e desejou que a amplidão jorrasse
lágrimas. Os ventos gritaram, os pingos de chuva caíram feito agulhas,
relâmpagos formaram arcos luminescentes que ressoavam escondidos pelas nuvens
escuras. E essas forças da natureza marcharam, como um exército ao comando de
uma rainha.
Presumi que um
dilúvio de morte iria abater os desavisados invasores.
***
Dentro do Apuaña
O
Apuaña era uma caravela de três andares. Definitivamente ela não ostentava o melhor
dos vislumbres, seja devido ao seu pequeno porte, seja pela atual situação
deplorável em que ela se encontrava. Quando adentraram a velha caravela, os
heróis puderam ouvir seu piso ranger no esforço de sustentar um peso que a
embarcação não sofria a muito tempo. Um solavanco e uma nuvem de poeira se
estendia nos pés de seus novos tripulantes.
No
convés principal havia espaço para dois mastros, mas apenas um ainda continuava
intacto, apodrecido pela passagem do tempo. O traseiro possuía apenas os restos
de estilhaços e fendas da madeira que um dia desabou, além de cordas de cânhamo
frágeis que um dia serviram para hastear as velas. O mastro dianteiro ainda
comportava os restos da vela rasgada e despedaçada. O vento trataria de
desfiá-la completamente durante a viagem.
Na
extremidade dianteira havia um timão emperrado e a visão do caminho por onde os
heróis prosseguiam. Ali, Khali permaneceu atento durante quase toda a viagem,
perseguindo o perigo que espreitava a escuridão adiante. Nenhum navegador era
necessário, afirmou Asafe, o guia dos espíritos, assim que os aventureiros
puseram seus pés na caravela. Dizia ele “O Apuanã já havia feito aquela viagem
várias vezes e não precisava de alguém que o conduzisse”, e essa afirmação
apenas aumentou as suspeitas do sobrenatural que a embarcação emanava.
A
parte traseira era mais alta. Tinha-se acesso a ela após subir alguns pares de
escadas. Lá em cima havia um amontoado de caixas lascadas, presas por redes e
cordas, mas, simplesmente não havia nada dentro delas. Havia também o acúmulo
de redes de pescas que os aventureiros julgaram como dispensáveis. O Ceifador
permaneceu a maior parte do tempo na traseira do convés inferior tratando de
seus assuntos silenciosos e dificilmente sendo perseguido ou vigiado pelos demais
membros do grupo. Lá ele tentava racionar o resto de seu fumo e contemplava a
fumaça que saía de seu cachimbo.
Uma entrada simples, quase
identificada como um alçapão vertical, dava acesso ao convés inferior, onde a
desorganização e sujeira tomava conta. O grupo acostumou-se a deixar a entrada
para o convés inferior sempre escancarada, de modo que qualquer barulho no piso
superior pudesse ser ouvido com maior fluidez lá embaixo.
A
primeira vez que viram o convés inferior, os aventureiros notaram que este
precisava de alguma arrumação e, foi isso que fizeram. Estocaram os caixotes,
enrolaram as cordas de cânhamo que haviam em demasia, bateram os finos colchões
impregnados de poeira e estenderam as redes em varais improvisados,
esfregando-as no intuito de livrar-se do mofo. Logo transformaram o lugar em
algo aproveitável.
Descobriram
um forno a lenha com algum estoque de carvão e desemborcaram uma mesa de pernas
frouxas onde podiam realizar seus lanches. Nunca usaram o forno, pois
carregavam a comida da viagem e não havia nada que pudessem fritar – chegaram a
cogitar o ofício da pesca, mas decidiram que qualquer criatura trazida daquele
rio lamacento poderia ser uma ameaça. Além disso a fuligem cobria o convés
inferior com uma nuvem preta e, apesar de haver frestas e até uma condução que
levava a fumaça para fora da caravela, esta não funcionava adequadamente e
deixava o dormitório cheirando à madeira queimada.
Finalmente, localizado na
extremidade inferior da embarcação, havia um baú. O depositório estava cercado
de runas de proteção que Aramyn reconheceu como as mesmas usadas na criação de
um círculo de proteção. Acima do baú havia um esqueleto perfeito, segurando uma
lâmina curvada que não havia sucumbido às ações do tempo, e cercado pelo limo e
a umidade do lugar.
Aramyn não havia detectado qualquer presença
maligna, portanto livrou-se da ossada e permitiu, mesmo sob desconfiança, que o
Ceifador tentasse abrir o depósito que se revelou apenas emperrado no final das
contas. O exorcista analisou cada insígnia três vezes, tateando com a ponta dos
dedos cada curva e baixo relevo. Logo depois revelou à Ragnar o achado,
reforçando sua teoria de que o baú era um tipo de prisão.
-
Então, talvez consigamos algumas respostas com ele. – afirmou Ragnar
afastando-se do baú.
-
Mas, como você pretende arrancar mais informações de um baú?
-
Não do baú. – o anão recolheu o esqueleto e o moldou inteiro em cima do
depósito.
Não era a primeira vez que Ragnar
comunicava-se com os mortos. A habilidade chamou a atenção do Ceifador que,
debaixo de seu capuz, manteve-se atento à negociação necromântica. Foram poucas
as palavras sussurradas para a conjuração da magia. Ragnar tocou a parte
superior do crânio e o apertou enquanto pronunciava as palavras que o
conduziria ao milagre. Todos no recinto escutaram o barulho de ossos estalando
e, enfim, a mandíbula arreganhando-se para dar passagem a um sonoro eco de
respiração profunda.
“Quem
se pronuncia?”
“Sou
Apuanã, o filho dos ventos.”
“O
que faz nessa embarcação?”
“Sou
o veleiro, o timoneiro e o vigilante.”
“Qual
o propósito deste baú?”
“Aprisionar.
”
“
Aprisionar o quê?”
“Qualquer
mal que predominar no espírito da floresta.”
“Quanto
tempo durará essa viagem?”
“Muito
menos do que os mortais possam desconfiar.”
E então abandonou os
questionamentos. O baú foi esquecido. Era muito pesado e grande para ser
carregado. Concordaram que o círculo de proteção poderia ser desenhado pelos
clérigos e que, inclusive, havia um exorcista no grupo habituado a fazer isso.
Não perturbaram mais a alma de Apuaña, mas descobriram que a embarcação, enfim,
era conduzida por algo que estava além da lógica e prosseguiram viagem
acostumando-se com os percalços e desafios na trajetória indicada pelo rio
Aomame.
***
O som do arrastar do casco da
caravela sobre a lama das profundezas do rio Aomame finalmente indicara que a
viagem fluvial havia se encerrado. Os aventureiros se entreolharam confusos de
suas convicções. Estavam viajando a algum tempo sem enfrentar qualquer
percalço, mesmo assim, pareciam exaustos, como se a ansiedade tivesse devorado
suas vontades.
Mesmo
assim pisaram na lama do Pântano das Moscas e sentiram a mistura do alívio da
terra firme e a angústia do ambiente pintado de cinza e a muito não visitado
por heróis. Observaram o céu carregado, as nuvens suportando um peso a dias com
a intenção de, propositalmente, derramar-se sobre eles.
Galhos tortuosos saltavam de poças
salgadas que criavam bacias de líquido sujo e desafiavam os transeuntes a
prosseguir pelo caminho certo ou serem devorados pelo próprio pântano. Enxames
de moscas pousavam no que bem podiam, alimentando-se do ambiente podre e
malcheiroso, de esqueletos sauróides de criaturas que haviam se afogado a muito
na região e seus ossos agora serviam de pontes seguras para atravessar o
ambiente inóspito.
-
Enfim saímos de um ambiente degradante para um insuportável! – exclamou Jack –
Essas malditas moscas são mais irritantes do que a bárbara.
-
Nossa sorte é que elas são tão miúdas e desprezíveis quanto você, Jack –
respondeu Freya enquanto analisava a ossada de vértebras que se estendia pelo
caminho – elas não vão nos fazer mal enquanto nos preocuparmos em cobrir nossos
ferimentos.
-
Freya, seria melhor se você se concentrasse em me ajudar com os rastros e
caminhos certos – resmungou Khali.
-
Desde quando o índio acha que pode dar ordens? – reclamou a bárbara enquanto
olhava atenta para a névoa que agora cobria o grupo inteiro.
-
Não estou dando ordens, estou recomendando. Qualquer distração aqui e o grupo
inteiro morrerá afogado nesse pântano.
-
Engana-se você se acha que não sei disso, Khali. – resmungou a bárbara e chutou
um crânio para uma das poças profundas – mas essa névoa não vai me permitir
fazer muita coisa. Está muito densa.
Mal havia encerrado o assunto e uma
repentina rajada de vento golpeou a fronte do grupo e espalhou a névoa. Os
ventos circundantes soaram rápidos e varreram alguns metros de horizonte após
estapear o rosto dos viajantes.
-
Porra! – gritou Jack indignado – você poderia nos avisar antes de lançar suas
magias, Varuz.
Varuz recompôs-se da posição
realizada para conjurar a lufada de vento e esboçou um sorriso prepotente.
-
Contente-se com o resultado. – afirmou o mago.
-
Isso vai nos ajudar pouco. A névoa consumirá nossa passagem rapidamente. –
observou Khali.
-
Então seria melhor que você fechasse a boca e se concentrasse no caminho,
índio. – desdenhou Freya.
Foi isso que ele fez, cansado de
tentar ser complacente às atitudes de seus aliados.
***
Diálogo entre clérigos
-
Eles sempre foram assim, Ragnar. Você sabe do que estou falando. Esses
insultos. A princípio eu achei que um dia isso iria resultar em nosso
desmanche, mas descobri que estava muito errado em minha desconfiança. Eles
falam porque precisam saber que estão vivos e que estão vivos não somente por
eles mesmos, mas para os outros. Mesmo que eles neguem isso, esse grupo
acostumou-se com a dependência, no estado menos literal dessa palavra. Uma
dependência que nos deixa forte. Eu não sei se suportaria o resto de minha
caminhada não fosse por eles e, é claro que, dentre nós eu seria o único a
admitir isso sem balbuciar. No fundo de suas razões, todos sabem o quão estamos
ligados. Eu os conheço como ninguém. E isso não é prepotência de minha parte.
Reconheço o esforço manipulativo de Jack para se manter incontestavelmente útil
ao tentar engrandecer seus feitos e criticar com sátiras sarcásticas as
habilidades dos outros. Noto no silêncio meditativo de Varuz sua capacidade de
manter-se alheio às disputas e, assim focar-se ao objetivo que ele julga ser o
mais importante. Percebo na selvageria de Freya a missão eterna de mostrar-se
forte, não somente nos requisitos indicados por ela mesma, mas pelos outros e,
venho estudando as atitudes quase mártires de Khali em suas tentativas de ser
aceito no grupo o mais depressa possível. Todos nós somos difíceis de lidar,
mas somos simples em essência. Sabemos que estamos no lugar certo, na hora
certa e que estaremos juntos na luta final.
-
Foi um bom discurso, Aramyn. Não sei para que finalidade, mas, foi um bom
discurso. – Assegurou Ragnar enquanto espantava as moscas de sua barba.
-
Queria impor ênfase no quão acho importante esse assunto para, enfim, tomar coragem
e lhe fazer uma pergunta que deveria ter sido feita a algum tempo, pois
reconheço que dentre meus três novos aliados, considero que você seja o mais
aberto a argumentos. – disse isso e estreitou os olhos em direção à Azanthe e o
Ceifador, um par de caminhantes obscuros, presos em suas próprias memórias.
-
Os humanos dizem que os anões, por viverem muito, tendem a alongar conversas
demasiadamente, pois para nós o tempo consome menos. Mas você, jovem Aramyn,
deve ser uma das exceções da sua raça, assim como eu sou da minha. Faça-me a
pergunta de uma vez e eu tentarei respondê-la da forma mais precisa possível,
se eu for capaz.
-
O que você tem a me dizer sobre seus aliados?
-
Então é isso? – pôs-se em interrogação, procurando as palavras certas – Acho que
devido a minha vida corrida e da quantidade de aliados mortos em combate, os
quais eu nem pude me despedir corretamente, acabei me desinteressando pelo
conceito da empatia. A única verdade é essa, Aramyn. Muitos vieram e foram
embora muito cedo para o reconhecimento de um anão. Vou tentar te formular
alguma desculpa plausível. Eu diria que conheço tão pouco meus aliados que
desconfio deles.
Aramyn não pôde disfarçar o
semblante de surpresa perante essa afirmação. Ragnar reavaliou o rosto de
Azanthe. Um par de olhos descoloridos fitavam o nada. O arqueiro estaria
enxergando através do nevoeiro ou apenas seguia passivo a todos, sem discordar ou
concordar com qualquer coisa? Era difícil saber. Aquele definitivamente não era
o Azanthe de sempre.
-
Eu poderia lhe afirmar que conheço o Azanthe como os fios de minha barba, mas
estaria mentindo. Eu o conheci em sua plena juventude e lealdade à Azran. Sei
que ele enfrentou o surto da loucura algumas vezes na vida. Muito mais do que
qualquer um de nós. Eu não poderia te dizer se o semblante apático de meu amigo
é devido à fortaleza que ele adquiriu ao suportar os empecilhos de sua mente ou
se ele apenas está se deixando finalmente esmaecer perante o infortúnio de seu
destino. Eu me preocupo com ele, é verdade. Tirei-o das trevas na nossa luta
contra a muralha, mas, desde esse momento não consegui extrair nada de suas
confissões. Ele parece ter esquecido boa parte de seu passado. Isso é bom e
ruim. Mas, talvez, ele esteja recuperando os vestígios perdidos de sua memória,
dia após dia, como se o silêncio lhe permitisse revirar o baú que se tornou sua
cabeça. Outra verdade é que temo fazer-lhe determinadas perguntas. Acho que ele
está protegido pela dúvida e se eu lhe der algumas certezas, não sei bem se ele
continuará a ter forças para escolher se manter vivo.
-
Definitivamente, eu também não tenho muito a dizer sobre o Azanthe. Seu
comportamento é intrigante. Seu nome é relativamente conhecido. Eu não poderia
dizer uma só palavra sobre ele, mas já ouvi alguns bardos cantarem sobre sua
personagem. Isso é esquisito....
-
Esquisito? Porque?
-
Ter um alvo das canções bárdicas conosco. Eu fico tentando ligá-lo a aparência
descrita nos versos, mas, nada parece convincente agora.
-
Entendo. Acho que qualquer um ficaria assim depois de ter sua mente dividida em
alguns pedaços.
-
E quanto ao Ceifador?
-
Para falar a verdade, ele não está a tanto tempo conosco. O que sei é que ele
tem um objetivo a ser alcançado aqui e que é exageradamente soturno para
esconder até os mais sutis detalhes. Porque ele faz isso, eu não tenho a mínima
ideia.
-
E isso não te preocupa?
-
Sinceramente? Não, por enquanto. Acho que ele está muito focado no que quer que
ele tenha a fazer aqui. Todos já notaram seus repentinos desaparecimentos.
Parece que ele não é do tipo que faz amizades ou alianças duradouras, mas
conhece seus limites e, enfim, precisa de nós. Isso, talvez, o torne mais leal
que a maioria aqui, até um ponto culminante.
-
Parece que você tem alguma confiança nele.
-
De forma alguma. Sempre tenho a sensação de que o grupo inteiro está sendo
usado e isso aumenta a brecha de desconfiança que tenho para com ele. Ser leal
até alcançar seu objetivo é uma coisa, mas ele pode se tornar um inimigo
futuramente, quando sua lealdade não for mais referente à nós.
Foi
sob o julgamento clerical que as nuvens resolveram desabar suas lágrimas.
Romperam-se acompanhando os relâmpagos e trovões e o que já estava encharcado
pela água salgada, agora havia se tornado uma torrente líquida que chovia feito
agulhas nos heróis.
Ragnar
ficou paralisado. Sua barba ficava pesada devido ao acúmulo da água e sua
armadura começava a tornar-se um incômodo. De repente, a cada passo, ele podia
sentir o resvalar das bordas de cada filete de aço da sua vestimenta e os
imaginava cortando, vagarosamente e incessantemente sua carne. Seu coração já
não batia de forma coordenada como antes. Ele rufava. Como havia feito uma vez
ao enfrentar a nevasca que se estreitava pelos portões do Desfiladeiro de
Bahamut e enquanto empunha o lampejo divino contra a alma maculada de Azanthe.
Não gostava daquela sensação. Significava muito mais do que apenas mal-estar.
Era, de certo, um mau presságio.
-
Ragnar, você está bem? – Preocupou-se Aramyn encarando os olhos turvos do anão.
-
Eu estou. – não estava – Precisamos adiantar nossos passos. Quero resolver isso
logo.
Aramyn assentiu positivamente, deu
passagem ao anão, mas desconfiou de sua marcha exaltante. Percebeu que o que
Ragnar queria resolver não estava inteiramente relacionado ao combate que
teriam no final do dia e, por isso, lamentou, pois descobriu que além de não
reconhecer as atitudes de Azanthe e do Ceifador, também não tinha total
controle sobre sua empatia para com o anão.
***
Não importa quantas horas eles
haviam perambulado por aquele pântano. Não importa o quanto a ansiedade estava
consumindo a paciência de cada um até aquele momento. O primeiro desafio havia
chegado cedo demais.
Os
heróis tiveram o vislumbre do que esperava por eles na porta de entrada.
Primeiro viram os relâmpagos cortarem o céu desorganizadamente, desenhando arcos
elétricos que se uniam e se interligavam às rochas pulsantes incrustadas de
símbolos xamânicos. Os menires eram o plano de fundo da guerra que estava
prestes a ocorrer, eles ecoavam o grito da montanha, e a eletricidade azulada
faiscava, dançando pelo céu cinzento como uma serpente de língua afiada. Em
cada menir havia um orc praguejando pelas forças da natureza e pareciam
controlar a intensidade furiosa da chuva que caía cegando a passagem que se
amontoava de acúmulos de lama e água que escorria por todos os lugares.
A
lama tomava uma dezena de formas que rapidamente eram lavadas pela chuva e
davam o contorno a criaturas gigantes que se desenterravam com a ajuda de seus
braços volumosos e troncos robustos preenchidos pela gordura barrenta. Os ogros
cuspiam a lama e vomitavam a água suja. Eles escancaravam suas bocas de dentes
apodrecidos durante seus urros de violência e pareciam aumentar de tamanho
enquanto arrastavam troncos de árvores, reforçados com espinhos e ossos
pontiagudos atados às extremidades, para serem usados como armas. Às suas
costas os relâmpagos promoveram mais um espetáculo de faíscas voadoras quando
ecoaram seus trovões e foram acompanhados por mais duas dezenas de orcs que
saltaram de seus covis e se enfileiraram. À passos longos, se atropelavam,
tomando passagem entre os gigantes.
A
chuva pesou ainda mais. O vendaval arrastou as gotas de água que salpicaram o
rosto dos aventureiros, e estes fecharam seus olhos, protegendo suas faces do
castigo da tempestade. Podiam escutar o barulho dos pingos a açoitar os escudos
e as armaduras metálicas num tinir discordante, agudo e perturbador. Os heróis
se preparam de algum jeito, esperando a investida que acabou por não ocorrer.
Os orcs e ogros pararam ainda a
muitos metros. Vociferando de forma animalesca. Quatro gigantes carregavam
consigo enormes tambores de guerra e começaram a retumbá-los. Um som tão alto
quanto o trovão ecoou preenchendo os corações dos aventureiros de medo. Os orcs
mordiam o ar, como cachorros desdentados, quebravam pedras e crânios
depositados no chão com seus machados grandes. Colhiam punhados de lama e espalhavam
pelo rosto e corpo desnudo. Eles clamavam pela violência, pelo sacrifício e
guerra e estes eram os domínios do deus Kaz, a qual todos os orcs de
Chattur’gah veneravam. Os heróis mal podiam ver as máculas que corroíam e
feriam a pele cinzenta dos orcs, pragas permanentes, rodeadas de pústulas e
moscas, vermes que se alimentavam da carne morta e ajudavam a secretar o
resíduo podre que se acumulava em cada tumor.
-
Então, quem teve a ideia de vir até aqui mesmo? – perguntou Jack tentando
disfarçar o terror que
sentia ao se deparar com o destino tão próximo.
-
Precisamos nos concentrar. A maioria de nós pode enfrentar até três deles ao
mesmo tempo. – comentou Aramyn tentando confortar seus aliados.
-
Concentrar-se aqui vai ser um desafio. – balbuciou Varuz enquanto tentava
manter-se focado afim de perceber se mais uma dúzia de criaturas iria surgir
das poças de água suja a qualquer momento.
Freya ficou calada, como nunca
ficara antes, diante o desafio. Todos, enfim, esperaram suas ameaças
desnecessárias aos inimigos – aquilo nunca funcionava, mas, por alguma razão,
todos sentiram falta de um “eu vou arrancar suas cabeças! ” praguejado pela
bárbara. Precisaram se acostumar com o barulho dos trovões e da chuva
acompanhados pelos gritos ameaçadores dos orcs que apenas esperavam enquanto o
medo se alastrava nos oponentes.
Aramyn
agarrou-se ao símbolo sagrado e pronunciou, quase sussurrando, suas preces. Ele
se surpreendeu quando a bênção não o alcançou. Khali e Azanthe dispararam suas
flechas e analisaram a dificuldade que a chuva interpunha. Notaram o quão
impossível era fazer um disparo a longa distância, pois suas munições eram
facilmente arrebatadas.
O
Ceifador encarava a morte e disso ele bem sabia, pois calculara as chances,
reconfortara-se com a sombra da ruína e decidiu entrar na luta com a sapiência
de um devoto do perecimento. Varuz sentia sua consciência ser partida em quatro
pedaços e se indignava quando as palavras de sua conjuração se perdiam no nada,
impossibilitando suas magias.
Ragnar manteve-se austero. Notou os
segundos que o grupo ganhava enquanto os inimigos rosnavam e se apresentavam
como os piores pesadelos possíveis. Seus aliados mal puderam impedi-lo quando,
a passos firmes e inundados pela lama, ele se adiantou, escudo e coração em mãos.
-
Acabou! A mácula que vocês e sua rainha despejaram sobre essas terras está
prestes a acabar. Vocês já sabem disso! Reuniram-se com o único propósito de
mudar seus destinos, mas se ajoelharão perante o fado! Alguma coisa muito
grande nos trouxe até aqui e ela avassalará vocês desse resto de mundo! Urrem o
quanto quiser, pois seus últimos ecos serão o da dor da agonia!
E
os trovões pareceram respeitar a difamação de Ragnar. E os orcs pareceram
entender as suas ameaças. Rebelaram-se contra a primeira estratégia e avançaram
famintos pela violência. Todos notaram, naquele momento, que, enfim, a luta
havia começado.
Relato: Ragnar
O
vazio na alma que todos nós temos. Eu já o senti três vezes. Essa é a quarta.
Posso senti-lo como uma pedra entalada em minha garganta. O primeiro orc saltou
e meu machado atingiu-lhe na face, partindo-lhe o crânio. Um.
Os
segundos que antecedem a última dor são estonteantes. Apesar de tudo eles são
os mais esperados. Um segundo orc jogou-se contra mim e eu o arrebatara levantando
seu peso com os ombros. Usei o escudo para arrebentar as fuças de um segundo.
Dois.
Eu
sempre carreguei esse paradoxo. Sinto como se tivesse adiado o último fôlego
algumas vezes. Minha mente as vezes me perturba com o discurso do merecedor.
Escuto os gritos e os passos de meus aliados se aproximando. Sim, mesmo em meio
a tudo isso, consigo reconhecê-los. O machado resvala o peito do orc e ele
grita numa mistura de dor e fúria antes de cabeça saltar para fora do pescoço.
Três.
A
vida dos anões é longa. Ela precisa ser longa. Quantas coisas foram deixadas
para trás? A marca que me fora estampada no rosto à ferro quente. O frio
lancinante dos portões de gelo. O vômito ácido que preenchera minhas costas de
cicatrizes. A sombra que se propagou pelas muralhas. Elas representaram alguma
coisa, até agora? De verdade? Os ogros estão próximos demais. O retumbar
preenche meus ouvidos e eu tenho a impressão de que eles estão sangrando. O
tacape atinge o chão no momento em que consigo girar meu corpo. Ele espalha
mais água e lama por todos os lugares. O sangue e os fluidos de um orc também.
Quatro.
Meus
caminhos não se entrelaçam. Eu estou num monte de lugares ao mesmo tempo,
esperando para presenciar. Esperando para vivenciar e, então, sobreviver. Mas
chega o momento em que a chama se extingue, um momento em que ela precisa de
seu último momento de combustão. A lâmina do machado criou um par de fendas
entre os joelhos do ogro. A criatura fraquejou e ajoelhou-se enquanto eu me
joguei por debaixo de suas pernas e meu esforço bruto fez com que sua coluna se
rompesse fatalmente. Cinco.
Dez
são as instruções descritas na grande rocha. A pedra da lei. O monumento divino
plantado no reino em que fui exilado. As leis me fazem um anão. Eu poderia ter
me esquecido disso, mas me recordo habitualmente, porque ainda preciso me
mostrar um. E, então, o céu rompe e um raio serpenteia criando um caminho
aleatório, como uma fenda no chão. Ele chega tão próximo que sinto minha carne
tremer, derreter-se e pregar-se às placas de metal da minha armadura.
Desvencilhei, mas ainda tive tempo de bloquear o machado orc com meu escudo e
contra-atacá-lo com um golpe súbito em sua jugular. Seis.
Dez
motivos para me manter de pé. Meus pés e braços formigam devido ao peso de
tudo. Metal, lama, sangue e corpos. Um segundo raio estoura à minha direita e,
novamente não consigo evita-lo. Agora posso sentir o cheiro de minha pele
queimada. Meu joelho esquerdo encostou-se no chão, mas, eu sei, ainda posso me
erguer. A lâmina de um machado orc resvala em meu nariz e provoca ardência.
Jogo-me sobre o inimigo a cabeçadas. Ele cai e eu vejo suas tripas jorrarem
quando enterro minha arma em seu estômago. Sete.
A
luta transcorre inconscientemente. Eu sei que meus aliados estão ao meu redor,
mas não consigo vê-los. Eu sei que uma multidão de orcs e ogros está por vir,
mas o ogro a minha frente é a única coisa que interessa agora. Um golpe
certeiro no pulso do gigante e ele se livra da arma, grita de dor e me dá
brechas para afundar novamente meu machado em seu peito. Peço para Hefasto uma
nova chance. Mas será que ele ainda está ouvindo meus pedidos ou somente me usa
como um guerreiro fanático? Oito.
Será
que essas mortes estão sendo apreciadas? Será que elas são o bastante para
representar a minha fé? Um dos ogros caiu de joelhos perante mim e eu não me
recordo se fui eu o responsável por isso. Enfiei meu machado entre as suas
costelas e tive algum trabalho para tirá-lo quando o gigante despencou. Um dos
orcs me empurrou e o chão enlameado finalmente foi o suficiente para permitir
que eu tombasse. O orc deixou cair seu machado sobre mim e eu senti o peso da
violência quando meu escudo interrompeu seu ataque. Então, novamente, o chão
tremeu. Um par de relâmpagos percorria um trajeto em espiral e fez do orc à
minha frente, um estouro de carnificina. Mas o vórtice de eletricidade não
encerrou seu dano, atingiu-me e arrancou-me o escudo das mãos. Meu corpo
elevou-se alguns metros e uma fumaça, exalada de mim mesmo, preencheu-me as
narinas. Caí novamente, provavelmente a alguns metros de onde o raio me
atingira. Um orc atingira meu peito com seu machado. Chutei suas canelas,
atraquei-me a ele e segurei seu pescoço, apertando-o com mãos de urso até ele
engasgar-se pela falta de fôlego. E um novo raio despencou atingindo-me nas
costas e fazendo meu corpo ficar paralisado. Nove.
Alguém
gritou meu nome. Talvez tenha sido a morte. Uma nova rajada de raios me
atingiu. Os orcs xamãs praguejavam escondidos em seus menires. Eles comemoravam
gloriosamente sua vitória sobre um inimigo. Alguém se interpôs em meu caminho,
derrubando um dos ogros que pretendia me esmagar. Eu não podia enxergar mais
nada direito, minha visão estava turva, minhas mãos apertavam alguma coisa no
chão. Poderia ser lama. Poderia ser minhas tripas. Meu corpo cedeu. Destravei
alguns pinos de minha armadura e a senti rasgar meu corpo enquanto tentava se
separar de minha carne queimada. Dez.
O
céu vociferou. Era a voz de alguma coisa imensa. Poderia ser o desdém de um
fracasso. Poderia ser a piedade de meu deus. Poderia ser a minha alma vazia.
Senti a voz desabando, laçando-me como um raio. Ela elevou meu corpo novamente
e me sustentou alguns segundos. Horas. Minha pele rasgou-se, o metal
desprendeu-se de meu corpo e levitou vagarosamente ao meu redor. Em cima, dos
lados e embaixo. Eu estava voando. Caindo. Fechei meus olhos.
(...)Abri-os
novamente. Era uma escadaria de mármore. A minha frente, um portão de pedra
cravejado de runas anãs e o alto relevo perfeccionista das Hostes Eternas. O
purgatório de minha fé.
***
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