sábado, 29 de julho de 2017

Aventuras Anônimas III

A carcaça de um wyvern jaz no chão da planície. O cheiro podre de carne mal assada preenche o ar. Dezenas de fagulhas chamuscam a pele da criatura. Restos do corpo de alguém estão em suas presas. As faíscas responsáveis pelo estrondo sônico se espalham pelo ar e as cinzas do incêndio sofrem os efeitos da estática. O homem de olhos azuis está ajoelhado no chão. Sua expressão é de tolerância à dor. Vê-se em sua testa um símbolo que brilha azulado e, aos poucos, torna-se uma cicatriz em carne viva. As veias de seu rosto se expandem como uma centena de raios vermelhos. Ele teve mais sorte que dois de seus companheiros. Estes foram mortos no surpreendido encontro noturno. Ivny conhecia o homem. Não era Aensell.

"Antoine", concluiu ela.

Antoine, escravo draculean
Ele estava diferente sem o barrete ou a armadura metálica dos escravos draculean. Era filho de Razorax, Ivny sabia, e Razorax era rei dos dragões azuis cujo relâmpago era o símbolo. 

Na época que o conheceu, Ivny e Aensell ainda moravam em Draganoth. Ivny ainda respirava, Aensell pouco sabia de magia. Ambos foram adotados por Barghamann e Mabel, o casal dono da taverna do Dragão Uivante. Duas coisas Ivny bem conhecia no velho taverneiro: a primeira é que ele fora um grande guerreiro no passado e que, desde que fundara a taverna, não pretendia mais viver sua vida para a guerra; a segunda era que Barghamann condenava a tirania imposta pela dragocracia, embora vivesse na torre.

Certo dia, as portas da taverna foram escancaradas na base de um forte relâmpago. As noites na Dragão Uivante eram calorosas, por isso, a freguesia era constante. Sir Antoine d'Razorax ainda tinha a luva da sua mão direita envolta pela energia elétrica, quando todos o observavam, amedrontados. "Você não pode invadir meu estabelecimento dessa forma!", ralhou Barghamann. Sir Antoine pareceu não preocupar-se com a ameaça. Assim eram os escravos da dragocracia, e Antoine era um. Marcados pela insígnia dracônica que lhe tingia o rosto com a tatuagem que guardava, além de seu voto de guardião, os poderes da linhagem a quem ele servia. Os servos da dragocracia eram conhecidos e poderosos. Mantinham grande influência em toda torre e, por isso, mostravam-se superiores e pouco diplomáticos. 

Ivny lembrava-se pouco daquela noite. Recorda que Sir Antoine, junto a dois outros escravos draculean, invadiram a Dragão Uivante e arrastaram de lá um bêbado. Um velho conhecido de Barghamann. O bêbado, praguejando contra a dragocracia e xingando o que sua consciência ainda permitia, foi executado em praça pública, alvo de uma lâmina elétrica carregada pelos poderes de Antoine. Ivny não chegou a assistir a tragédia. Aensell, sim. Desde aquele dia, o ódio do garoto para com a dragocracia aumentou, igualando-se ao de Barghamann. Ele dedicou-se ainda mais aos estudos dos livros de magia. 

Sir Antoine havia provocado a atitude de Aensell. A atitude do irmão de Ivny de abandonar a torre e sua família a fim de tentar a sorte num discurso pouco ensaiado que seria compartilhado com alguém em Zarast. Sem a capacidade natural de se acalmar, o sangue de Ivny ferveu. Ela tinha raiva daquele futuro e queria descontar em alguém. Sir Antoine seria seu alvo. Segurou firme as lâminas curvas em suas mãos sombrias e instigada por um frenesi selvagem, aproximou-se com sons abafados da sua vítima até notar a presença de mais alguém.

- Como eu disse, meu caro Sir: "são goblins, mas são goblins corajosos demais para estarem nas terras da dragocracia". Eu sabia que eles tinham mais do que espadas enferrujadas e más atitudes.

A voz era conhecida. 

Surgia, das costas do wyvern, pisoteando as chamas e tateando o cadáver, um halfling de grandes olhos verdes e um sorriso sempre presente no rosto. Ele abaixou-se, recolheu duas ou três escamas do wyvern e as guardou.

- Você deveria confiar mais nos dizeres de Javert - comentou o halfling, falando de si mesmo em terceira pessoa.

Javert
Antoine nada dizia.

- Vais ficar mergulhado em drama por muito tempo ou podemos retornar para a torre amanhã cedo?

- NUNCA! - gritou Antoine, possesso.

- Hum... - Javert impressionou-se com a reação do escravo draculean - o que sugeres, então?

- A missão não acabou. Não retornarei para o meu mestre de mãos vazias. Tenho mais do que o necessário para derrotar essas criaturas, em meu sangue.

- Confias muito em seus poderes, mas tens pouca sorte. Já Javert limpa as mãos, pois sabe que nem toda sorte do mundo o ajudará nessa jornada. 

- Disse que me seguiria até o fim da missão! - Antoine exigiu.

- A missão envolvia aliados. Agora não se trata de uma missão. Para Javert, isso está mais para suicídio.

Ivny conhecia o halfling. O personagem bobo que divertia as noites na Dragão Uivante. Grande amigo de Barghamann. Ardiloso charlatão que sabia das coisas. Javert era conhecido na torre. Um bardo que sabia mais do que simples histórias aleatórias e canções de momento. Contava a ela e Aensell as histórias da criação de Draganathor e sempre fazia soar como um mito ou nada mais que história fantástica. Aensell ouvia tudo boquiaberto.

- É um covarde e sempre foi - ralhou Sir Antoine.

- Julga-me quanto quiseres, contanto que sempre me veja vivo - respondeu Javert com um sorriso irônico no rosto.

A dupla foi surpreendida por um barulho sutil. Ivny abaixou-se, abrigando-se na escuridão. Vacilou. Não podia ser notada agora. E não foi. Antoine e Javert haviam ouvido outra coisa. 

Javert saiu de cima do wyvern e Antoine se ergueu. O escravo levantou uma das asas do wyvern e descobriu que havia um robgoblin embaixo do corpanzil da criatura. Este havia se ferido gravemente, esmagado na queda. Sir Antoine, com facilidade, arrancou a asa do bicho e teve com o goblinóide o mínimo de zelo possível.

- Não deves matá-lo Sir. Não agora. Um robgoblin aleijado e gravemente ferido é vitrola de todas as músicas. Deves conseguir informações.

- Muito bem... - Antoine ergueu o corpo esmagado do robgoblin que, mesmo débil, ganiu como um cão de rua açoitado - Conte-me onde fica o covil de vocês! - exigiu o escravo draculean.

O robgoblin não cooperou até notar as faíscas dançantes rodopiarem o punho de Antoine:

- Nos escondemos na Pouca-floresta. Nas margens do monte feito de pedra - respondeu o robgoblin, regurgitando sangue da cor de vinho.

- O que vocês fazem lá?

- Sacrilégios aos seus senhores - riu desdenhosamente o goblinóide quase sem dentes - Temos Wyverns. Wyverns das planícies de Asaron.

- Isso é mal - intrometeu-se Javert - os wyverns de Asaron vieram da antiga ilha de Maldûn. O veneno em seus ferrões é mais potente que o dos comuns.

- Em minhas veias corre o sangue de rei dragão- avisou Sir Antoine, apertando o pescoço do robgoblin com força descomunal - acha que o veneno de um dragão falso irá me impedir?

O robgoblin gorgolejou, revirando os olhos até escutar o som do estalo de seu pescoço.

- Mataste o goblinóide cedo demais...

- Vítima frágil. Outras serão. Devo continuar!

- Deves estar louco! Por maior que sejam as peripécias que Javert tenha feito em sua vida, ele não se intimida ao falar que essa missão é imprópria. Volte à torre, informe aos outros. Retorne com eles.

- Já disse: não retornarei de mãos abanando para o meu mestre. Escravos draculean não fracassam.

- Esplêndido! Chorarei em seu funeral e, tenhas certeza, contarei suas últimas palavras dirigidas à mim, na cerimônia - Javert alcança sua mochila de carga e, sem aparências de negociação, veste-a e põe-se a prosseguir viagem em direção à torre - Dê-me licença que pretendo descansar meus pés numa taverna na torre, logo mais cedo...

- Criatura infiel! Porque veio conosco, então? Poderíamos ter contratado outro guia.

- Ah! Bem que poderiam. Nenhum melhor do que eu, essa é a verdade.

- Não receberá pelo serviço!

- Javert não está aqui pelo dinheiro, mas devido ao pedido de um amigo. Prometi que faria o que pudesse, desde que não arriscasse minha própria vida. Bem, essa é uma situação aparente. Gosto demais do garoto, mas gosto mais de mim mesmo.

- Você fala de Aensell? - a voz era de Ivny. Ela resolveu mostrar-se para o espanto da dupla. A vampira ouviu o sussurro quase melancólico de Javert pronunciando seu nome, mas ignorou - Procuro meu irmão. O que ele tem a ver com a jornada de vocês? Falem-me!

Silêncio de espanto.

- Falem-me, já! É noite... já devem saber que ambos não têm chance contra mim depois da luta contra essa coisa.

- Experimente confiar-se tanto assim, garota - esbravejou Sir Antoine, envolto de descargas elétricas - e queime até a morte!

Javert ergueu a mão num sinal de paz.

- Agora temos interesses em comum - Javert voltou a sorrir, tinha tido a melhor das ideias.

***

Aventuras anônimas II

Koku tateava a terra com presteza. Seu nariz não lhe deu norte e agora ele apelava para o pouco que havia aprendido na Floresta dos Mil Sussurros, com os fantasmas.

- Uma carruagem de grande porte passou aqui - pensava ele, consigo mesmo, em voz alta - Quem quer que a estivesse manobrando, parou neste ponto. Alguém saiu. Desistiu da carona e prosseguiu a pé.

- Aensell - a voz de Ivny ecoou do interior da carruagem de Hildegrim.

- Não tenho certeza. São passos. Podem ser de qualquer um. Bem... o sujeito está calçado. Botas, talvez - concluiu Koku, satisfeito.

- Tenho certeza de que é ele. Aensell não se misturaria aos escravos da dragocracia por muito tempo.

- Fez mal... - a voz firme de Golias intrometeu-se.

- Do que está falando? - preocupou-se Ivny.

- Desertar um escravo draculean, não é uma opção sábia.

Ivny tinha de concordar. Vivera com o irmão durante muito tempo em Draganathor, lar da dragocracia. Ela sabia como a influência daqueles indivíduos funcionava. Era hora de encarar a estrada novamente e o mais rápido possível.
Koku (shifter macaco)

***

Era noite.

- Senhora? - perguntou Hildegrim em seu trono na carruagem. 

- Sim, Hildregrim...

Ivny passava muito tempo dentro daquele veículo. Agora estava em cima dele. Koku também estava, envolto de um cobertor, fingindo dormir ou desinteressar-se pela noite.A vampira queria sair dali, aproveitar a escuridão, a lua crescente e o céu estrelado, dar asas ao seu instinto de caçadora, mas não podia. Estavam numa parte distante da planície de Draganathor. Poucos visitavam ali desde que o príncipe Aisenn prometeu guerrear a dragocracia. Era um ambiente perigoso para ambos os lados.

Naquela noite, especificamente, Ivny estava ainda mais perdida em pensamentos.

- O que aconteceu? - perguntou Hildegrim. 

Ivny não necessitava mais usar o olhar dominador. O cocheiro havia aceitado a sina de escravo. Não foi difícil fazer isso. Era um homem descontente com a vida, antes disso. Viajar pelas rotas seguras carregando barris e caixotes era monótono. Seu avô, certo dia, contou-lhe sobre a família, os Hild. As últimas três gerações foram comerciantes. Todos os Hild aprenderam a lidar com os sacos de ouro. O próprio Hildegrim foi ensinado pelo pai, o senhor Heirich, um velho diplomata, seguro de si, nascido para aquele mundo de compra e venda. Hildegrim aprendera com facilidade, mas a história de seu avô o havia tocado profundamente. Dizia o progenitor que, antes da família tornar-se comerciante, urbana e protegida pela lei, seus antepassados haviam sido mascates. "Isso não é a mesma coisa?", Hildegrim perguntara ao avô. "Não, filho. É muito diferente. Comerciantes são protegidos pela lei da oferta e compra. Somos pomposos diplomatas. protegidos dos perigos do mundo! ...ah! Mas os mascates, não. Eles praticavam seu ofício como um vício. Arrastavam-se em profundas masmorras e tiravam de lá artefatos cobiçados. Viajavam das terras calmas de Rivergate ao deserto escaldante de Quéops. Era uma vida de aventuras". Quem dera Hildegrim ter acesso a aquela vida. Era quase patético largar sua vida de bonança, numa época que diziam que os mortos andavam por aí, a devorar os vivos. Então veio Ivny e o obrigou. Não era mais tão patético. O título de escravo não o chateava, afinal, havia vivido por muito tempo em Draganathor.

Hildegrim

- O que aconteceu com quem? - perguntou Ivny, mais interessada nas estrelas. 

Hildegrim conversava com ela, de costas. O cocheiro observava Golias empilhar a lenha que havia arranjado logo mais cedo e torná-la uma fogueira eficiente. Aquilo afastaria os lobos... e os mosquitos, de quebra.

- O que aconteceu entre você e seu irmão? - mal sabia como tinha tanta coragem, o audacioso Hildegrim. Gostava do título. Esperava até não receber resposta. Todos esperavam que ela não respondesse, mas, então, Ivny disse:

- Ele tentou salvar-me da minha condição. Eu recusei. Não aceitei que ele não visse nela uma vantagem. Sou como uma sombra. Tudo o que eu sempre quis. Se essa bênção me tivesse sido concedida mais cedo, quando eu e ele morríamos de fome pelos becos da torre, teríamos tido uma infância melhor.

Lá embaixo, Golias sentava-se muito perto da fogueira. As mãos quase apalpando a chama. Mais uma vez Ivny o via contemplar as brasas dançantes.

- Os fantasmas da Mil Sussurros condenam sua maldição - intrometeu-se Koku.

- Então você está acordado! - sorriu Hildegrim. Koku assentiu desconcertado.

- Seus irmãos, garoto, estão presos naquela floresta, para sempre. A mim pertence o mundo - respondeu Ivny, decidida.

- E você está presa nesta forma, para sempre.

Silêncio.

- Há maldade nisso, não acha? - continuou Koku - você vive a vida de milhares. É egoísmo!

- A filosofia de seus irmãos é ingênua...

- Drena a vida e a vive. Alimenta uma fera continuamente. Nem sabe para onde vão estas vidas.

Silêncio.

- Para onde vão? - Ivny cedeu à curiosidade.

- Para você.

Último silêncio e sono.

***

- Onde você vivia, antes de tudo isso? - perguntou Koku para Golias.

- Na montanha - o meio gigante respondeu sem animação.

- Qual delas?

- Na montanha de meu povo.

- Ouvi falar que os meio gigantes têm uma terra natal, ao oeste da Coluna do mundo. Em Chattur'gah - intrometeu-se Hildegrim. Como qualquer cocheiro, gostava de prosear. O tempo passava mais rápido.

- Verdade? - perguntou o curioso Koku para Golias, olhando-o dos pés a cabeça, farejando.

Golias apenas assentiu com a cabeça.

- E porque saiu de lá? 

O meio gigante meneou a cabeça e ficou por muito tempo olhando a estrada consumida pela carruagem. Koku percebeu que aquele assunto deveria esperar mais um pouco.

***
Um estardalhaço rompeu a noite. O som trovejante de um raio partindo a escuridão sem céu nublado.

- Estranho... - Hildegrim pensou alto.

- Não foi um raio natural. É magia - explicou Koku - meus irmãos me explicaram sobre essa coisa, me ensinaram também a olhar para o tempo. O céu não está furioso.

A sombra esguia de Ivny andou pela escuridão em contraste com seu par de lâminas curvas.

- Vamos, Golias - comandou ela.

O meio gigante obedeceu.

***
Ainda era noite e o véu de escuridão abraçava Ivny de forma sobrenatural. Seus passos abafados não emitiam ruído. Ela pediu à Golias que a esperasse a uma certa distância enquanto buscava respostas no acampamento de fogueira fraca onde a magia trovejante havia sido conjurada. "Aensell", pensou ela lembrando a infância. Era uma noite tão escura quanto esta, Ivny e Aensell tremiam de frio. O irmão demorava a pegar no sono. Tinha medo da escuridão.

Viajantes que a quilômetros se aproximassem de Draganathor, veriam um vespeiro de luzes incandescentes e eternas a guiar, como um farol, os visitantes à torre da dragocracia. Esse esplendor era reservado somente aos viajantes. Os becos que os órfãos e mendigos usavam para descansar, sem serem perturbados pelos escravos draculean, eram escuros, frios e fétidos. Ratos praticavam a vigília noturna. Milhares deles. Suas pequenas e praguejadoras garras desafiando a podridão. Um barulho no escuro e Aensell acordava. Não precisava de pesadelo pois vivia um. 

Ivny sabia que na escuridão existia muito mais do que ratos. Existia ruína. A ruína de uma civilização muito antiga esmagada pela liderança dracônica. Era o antigo reino dos homens. Massacrado. Ela aguçava seus ouvidos, praticando sua vigilância e podia ouvir os sussurros distantes de um milhão de espíritos de vingança. A torre da dragocracia havia sido plantada sobre outro reino. No subsolo havia inúmeras masmorras, lares abandonados, arsenais enferrujados e vidas desperdiçadas. Havia também as guildas. Ladrões e especialistas que não tinham medo dos milhões de espíritos vingativos e montavam suas sedes no estômago da antiga terra. Ivny desejava tornar-se membro de um desses grupos, mas não podia deixar seu irmão sozinho.

"Fique aqui. Eu voltarei em breve", sussurrou Ivny para Aensell no dia que conseguiram restos de uma vela e assistiam a pequena chama iluminar o refúgio onde moravam. Sob os protestos do irmão, Ivny se ausentou. Tinha planos. 

"Aensell é pouco esperto, mas é inteligente", pensou ela, consigo mesma "Sim, existe uma diferença ente as duas coisas. Eu sou esperta, Aensell é inteligente", fazia isso enquanto espreitava as sombras, fugindo dos olhares dos escravos draculean que patrulhavam a torre durante a noite, "Aprendi a me virar sozinha. Aproveitei-me dos outros. Furtei quando precisávamos. Não me arrependo. Nasci para essa vida, mas, o Aensell... não". Aquela era a primeira vez que a garota de rua havia juntado coragem para se atrever a ir tão distante de seu refúgio. "Aensell não saberia como fazer isso. Não nasceu para isso. Nasceu para viver entre os grandes. Nasceu para luz, assim como eu nasci para a escuridão", Ivny lembrou-se da facilidade que o irmão teve ao aprender a soletrar. A felicidade do menino era tão grande, por tão pouca coisa, que a deslumbrou. Primeiro começou lendo as placas das tavernas: letreiros, menus cravados em paredes de madeira e, finalmente, papéis de 'procura-se', depois passou a catar antigos jornais. Os mesmos que eles usavam para cobrir-se e se proteger da noite.

"Ivny!", exclamou ele, certo dia, bastante eufórico, "Qualquer um pode usar magia", ela não havia entendido, "Os mestres draculean são feiticeiros. Eles têm sangue de dragão, por isso usam magia", disso Ivny já sabia, "mas existem os magos!", afinal, não era tudo igual?, "Os magos estudam livros e aprendem a magia", terminou o assunto com um largo sorriso no rosto. Ivny demorou para absorver o sentido daquilo, mas enfim, sabia o que fazer. Havia algum tempo que ela perseguia certo estudioso. Dizia ele chamar-se Drammar, um 'curioso estudante de dragões', Ivny o ouviu prosear, certa vez, numa taverna: a única taverna que lhe permitiam a entrada.

"O que há de interessante em dragões? Não é preciso estudá-los para conhecer suas tiranias", ralhou o dono da taverna. "Você não entende. Existiam centenas de dragões, não somente a dragocracia. Talvez, até ainda existam outros", "Besteira", ".. e existiam os dragões metálicos, eram dragões bondosos, porém levaram um fim", o dono da taverna, único ouvinte da história, olhava Drammar com desconfiança, "Como tiveram um fim?", ele perguntou embravecido. Ivny a muito havia notado que o velho dono da taverna Dragão Uivante praticava a antipatia contra as criaturas de sangue dracônico. "Ah! Chamam de Chuva de dragões, o dia em que centenas deles se sacrificaram para proteger a vida dos homens!", "Besteira! Mil asneiras! Está me dizendo que uma multidão de dragões saíram de suas privadas douradas para morrer por nós?", Drammar assentiu com a cabeça, mas pareceu um pouco patético. O velho dono da Dragão Uivante riu-se. "É aqui, em Draganathor, o maior acervo da história dracônica! Por isso estou aqui", "De onde você é, estrangeiro?", "De Mordae, o reino dos magos", "Nunca ouvi falar", "Bem, existe uma certa rixa de poder entre os feticeiros de cá e os magos de lá, por isso, vocês não têm conhecimento, mas somos tão grande quanto a torre da dragocracia. Diria até que mais!". Ivny interessou-se. Viu na mochila de Drammar meia dúzia de livros grossos. "Ali deve ter magia!", pensou ela, consigo mesma, e nos dias posteriores perseguiu, passo a passo, Drammar e suas constantes visitas à biblioteca.

"Dê-me seu livro de magia e vai viver", ameaçou Ivny quando encurralou Drammar certa noite. Ela surpreendeu-se com a facilidade da missão. "Por favor, não faça nada comigo!", "Então quieto. Se os escravos draculean nos notarem, garanto que corto sua garganta antes de fugir". Drammar não resistiu, derrubou todos os livros que tinha em mãos. Eram sete. Ivny passou a vista por aquele redemoinho de desconhecimento. Escolheu o de capa mais bonita, pegou-o e fugiu. O livro que ela tanto queria estava em suas mãos, a felicidade a contagiou, não simplesmente porque havia conquistado o objeto, mas porque ela havia sido bem sucedida em sua primeira missão. Talvez aquilo contasse... para as guildas.

"Aqui está!", tirou as mãos dos olhos de Aensell e o fez uma surpresa. Inteligente, o garoto entendeu: "Magia!", ele sorriu, como nunca tinha sorrido antes.

Ivny se arrependeu momentaneamente de ter presenteado o irmão com aquilo. Duas semanas haviam se passado e Aensell mal comia. Também não participava das diárias tentativas de ganhar esmolas. Vivia para aquilo. Parecia doentio. Certa noite, Ivny tentou surpreendê-lo acendendo o resto de uma vela que havia conseguido mais cedo. Ele tinha ficado muito contente a primeira vez que ela havia conseguido tal feito. Aquela vez, porém, conseguiu nada mais que um 'obrigado' seguido de um irritante folhear do livro. Ivny não reclamou. Tentou dormir. Suas pálpebras ficavam mais pesadas a medida que a pequena chama de vela ruía. Tudo ficou escuro. Como sempre. Então, uma luz branco azulada rompeu a escuridão. Ivny acordou de sopetão, com uma adaga enferrujada em mãos. "Consegui, Ivy!", tão branco quanto a luz que agora levitava entre as mãos de Aensell, era o sorriso do garoto. Ele controlava a pequena luz dançante, como uma marionete. Um mínimo orbe elétrico piando, como um pássaro, diante deles. Dali em diante, Ivny e Aensell tiveram noites mais iluminadas.

Por isso, quando Ivny viu o relâmpago arratar o céu, naquela noite de jornada, ela pensou em Aensell. Sabia que o mago havia desenvolvido magias elétricas. Estavam no meio do nada: quem mais teria acesso a tal poder? Aensell estava muito perto. 

Ivny apressou-se.

***

sexta-feira, 28 de julho de 2017

Aventuras Anônimas I

Ainda era passado e a torre da dragocracia não tinha sua paisagem ameaçada pelo plano de fundo em carne viva. Charlotte acordou cedo aquele dia. Permaneceu livre dos cobertores e esperou a primeira fresta de sol iluminar o assoalho de seu quarto. Ficou ali, a abraçar as próprias pernas, pois não desejava levantar suspeitas. Como de costume, levantou-se, molhou o rosto atônito e abriu as janelas. Era um dia como qualquer outro. Pouco nublado. Desceu até a cozinha da estalagem, pegou baldes e caminhou até o poço. Agora tinha água para se lavar e cozinhar. O trabalho do resto de sua vida.

Poucos minutos depois de sua chegada, Barghamann acordou. Ele também tinha um ritual diário. Lavava-se com a água que a filha a pouco havia trazido do poço, armava-se com um machado e descia até o depósito de lenha, onde ele trabalhava arduamente durante meia hora. Foi nesse intervalo que Charlotte aprontou-se e saiu, como quem fosse fazer compras.

Nas ruas movimentadas de Draganathor, Charlotte evitou olhares. Movimentou-se esguia e de cabeça baixa. Ansiosa. Chegou até a casa abandonada. Ela já havia passado por perigos ali, lembrava-se bem, mas a escuridão cinzenta daquele armazém era propensa a encontros secretos. Observou seus arredores com desconfiança e, enfim, aproximou-se da porta de madeira quebradiça. Já não era preciso girar a maçaneta, mas sim erguer o peso desta para, então, arrastá-la, num barulho que assustou os ratos escondidos entre as caixas velhas do depósito. Pouca luz entrava lá, mas a parca iluminação ainda permitia enxergar o véu de poeira que dançava no ar.


Charlotte

- Você está aí? – sussurrou Charlotte percorrendo os olhos pela sala de caixas de madeira retorcida alguém que a respondesse.

- Estou – respondeu a voz soturna, vinda da escuridão empoeirada.

A silhueta da criatura de olhos vermelhos agora era visível à Charlotte. Tão à frente que a garota invasora se surpreendeu por não ter a notado antes. Charlotte se amedrontou quando a presença pálida e trôpega se arrastou por entre os caixotes para encará-la. A coisa feminina estava fraca. Debilitada. O medo da invasora transformou-se em pena.

- Ivny... – sussurrou Charlotte, caridosa, um passo à frente, no intuito de tocar a criatura no ombro.

Os olhos da criatura, agora fracamente vermelhos, notaram a aproximação e seu corpo reagiu, afastando-se, como se o toque fosse capaz de feri-la.

- O que aconteceu com você? – perguntou Charlotte, aos sussurros, ameaçando encher os olhos de lágrimas.

Ivny, a coisa vampiresca, não conseguia mais a encarar olho no olho. Manteve-se cabisbaixa durante a conversa.

- Ele... – Ivny engoliu as palavras e encerrou o assunto.

- Saiu da Dragão Uivante, mesmo sob os protestos de Barghamann, como você havia previsto.

- Para onde? – cada palavra pronunciada por Ivny vinha das sombras. Isso a envergonhava.

- Falar com o príncipe de Zast...

- Zarast – corrigiu Ivny.

- Isso...

- Você...?

- Estou bem, Ivny.

- Que caminho ele tomou?

- Marco do percurso, dos Vistani. Presumo. Era o único que ele conhecia.

- Não é um caminho seguro para se andar sozinho.

- Ele não foi sozinho.

- Quem?

- Um meio gigante. Eu o vi com um.

- O nome...?

- Não sei. Usava um arco. Um arco muito grande.

- Hum...

- Como você está, Ivny?

- Não se preocupe comigo. Sou um cadáver.

- Vai atrás dele?

- Sim...

- Acha que ele não sabe se cuidar?

- Não é isso.

- Então...?

- É meu dever. Desde sempre.

- Porque você não visita um templo de Amaryllis? As sacerdotisas poderiam tentar livrá-la dessa maldição. São mais eficientes que os senhores draculean.

- Eu não quero me livrar disso.

- Ivny...

- Estou bem, Charlotte. Sei do meu papel.

Ivny ergueu o rosto e tomou coragem para olhar Charlotte e sua pele rósea, alva, quente e preciosa. Com medo do que era capaz, a vampira afastou-se.

- Espera, irmã! – suplicou Charlotte.

- Não posso ficar muito tempo. Você também não.

Charlotte assentiu.

- Volte. Não deixe que Barghamann saiba da minha existência.

Charlotte concordou e observou Ivny se misturar à parte densa da escuridão, depois, suspirou profundamente, arrastou a porta do velho armazém. Agora para saída. Havia passado mais tempo do que ela previra. Voltou para a Dragão Uivante. Tinha muito trabalho a fazer.

***

- Está surda, filha? Estou a mais de cinco minutos lhe gritando o nome – ralhou Barghamann, rabugento.

Charlotte se recompôs. Seu pai havia acabado de subir os poucos degraus do depósito. Tinha um pano vermelho e sujo lhe enxugando o suor do ofício. Por pouco não havia se deparado com ela chegando na taverna.

- Porque esta cara? – Barghamann pouco desconfiou da situação, mas preocupou-se em perguntar isto a garota.

- Eu... acordei um pouco tonta. Deitei-me mais um pouco, depois de recolher a água.

- Está enjoada? – agora Barghamann pareceu mais preocupado – O que isso quer dizer?

- Não se preocupe, pai – Charlotte disfarçou um sorriso nervoso – eu estou bem. Eu falei para o senhor que a carne de porco parecia um pouco estragada...

- Hum... – resmungou Barghamann - ...não sinto nada e comi até me empanzinar!

- Isso porque tens um estômago de guerreiro, senhor Barghamann! – Charlotte suspirou aliviada, o blefe havia funcionado – estou bem melhor. Pronta para mais um dia.

- Sobre isso – Barghamann lançou o pano vermelho encharcado num balde – eu tratarei de contratar alguém para te ajudar.

- Posso segurar as pontas, por enquanto, pai.

- Sei disso, minha filha. Você é uma adulta. Aprendeu com a vida. Sabe o que deve fazer...
Charlotte ficou nervosa, mas não deixou que isso aparentasse.

- ... mas quatro mãos trabalham melhor do que duas.

- Está correto pai – aproximou-se de Barghamann e o abraçou, sem nojo do suor – agora, deixa-me cuidar de meus afazeres. Tenha um bom dia – beijou a face do velho e foi à cozinha.

Aquele dia passou muito rápido. Pelo menos para Charlotte.

***
Ivny


Uma carruagem de janelas fechadas trafegava pelo Marco do Percurso. Solitária. Sentado a comandar os cavalos estava o cocheiro. Olhos vidrados no céu alvo de outrora. Mal piscava. Estava daquele jeito desde que ousou recusar as ordens de Ivny.

- Ninguém mais toma aquele caminho, jovem – explicou o cocheiro, ainda em Draganathor – só quem sabe lidar com a maldição dos Vistani – continuou a explicar-se, mas não parecia convencer a garota decidida – nenhum cocheiro se arriscaria. Pergunte a qualquer um.

- Você se arriscará – comandou a austera Ivny, fitando com seus olhos vermelhos os olhos apagados do cocheiro. Ele aceitou a proposta, tomou as rédeas, esperou que a passageira embarcasse, sentou-se no trono da viagem e pôs-se a fazer seu trabalho.

Desde então, o cocheiro de olhar apagado, procurando saciar as vontades da garota, arriscava a própria vida numa viagem maldita.

- O que é a maldição Vistani? – perguntou Ivny, dentro da carruagem de janelas fechadas, para que não entrasse uma fresta de sol

- Os Vistani são ciganos. Uma linhagem muito antiga. Eles declamaram essas terras como deles. Consideram-na um lar – respondeu o cocheiro com voz pausada e sem ritmo – são bruxos também. 

As feiticeiras deles rogaram uma praga nessas planícies. Nada cresce aqui que não seja plantado pelos Vistani ou pela própria natureza.

- Então, porque os cocheiros temem essas terras, se estão só de passagem?

- As bruxas. Elas têm olhos de mau olhado. Algumas rogam maldição. Drenam a alma. Outras leem seu destino, mas são destinos ruins, fadados a morte – respondeu o cocheiro, enfeitiçado.

- Que apareça algum desses ciganos. Não tenho problemas pois, de destino ruim, sei que já carrego, mas o sofrimento que passarei até chegar lá me é desconhecido.

O cocheiro nada comentou. Continuou a viagem.

***

- São os Vistani – indagou o cocheiro sem temor.

Havia se passado não mais que algumas horas.

- Sinto que está anoitecendo. Temos que parar. Você precisa descansar e os cavalos também. Falarei 
com os ciganos.

O cocheiro parou. Desceu da carruagem, abriu a única porta do veículo, observou novamente os olhos de sua senhora. Nada. Pôs-se a fazer o resto do serviço do dia: empilhou o feno armazenado atrás da carruagem, afrouxou as rédeas dos cavalos e teve a certeza de que eles seriam bem alimentados, depois, no trono da viagem, embrulhou-se num cobertor e deu uma chance ao sono.
Ivny o observou. Faminta. E o deixou ali. Foi ter com os Vistani.

***

Os Vistani chamam de Marco do Percurso os intervalos a cada seis horas de viagem naquelas planícies amaldiçoadas. Eles cravam grandes pedras na terra, como um mênir druídico, e entalham nelas o símbolo dos Vistani: a rosa dos ventos. Os marcos são lugares de proteção para os ciganos. A magia conjurada sobre as pedras afasta lobos e outros animais noturnos, afasta até mesmo os goblins e gigantes, por isso, não é incomum que os vagões das carruagens Vistani fiquem acampados ao redor desses pontos. Aconteceu exatamente isso aquela noite.

Auxiliada pelo barulho descuidado do banjo e acordeão, Ivny aproximou-se como uma sombra. Furtiva e afiada. Os Vistani se acostumaram com a paz que os rodeava e quando perceberam a vampira, estavam de guarda baixa. A algazarra encerrou imediatamente. Os homens armaram-se com sabres. Sabres de prata, Ivny pôde perceber. As mulheres ficaram com os amigos e amantes. Eram rápidas. Já tinham adagas nas mãos, porém, de onde elas tiraram estas, Ivny não pôde perceber.

- Você é uma criatura da noite, não pense que não estamos familiarizados com suas habilidades – ameaçou um dos ciganos. Ele era alto e esguio, a barba rala, por fazer, num rosto afilado e jovial que se contrastava com aquele momento de aflição, pois sua face acostumara-se, a muito, a sorrir sem grandes motivos. Sobrancelha e orelhas marcadas por brincos. De prata.

Ivny postergou sua apresentação. Tentava combater o prazer de sentir aquele cigano amedrontado. Os demais membros da comitiva ficaram em segundo plano, mas logo seriam igualmente assimilados.

- Não tenho a intenção de feri-los. Baixem suas armas – comandou Ivny.

- Não mesmo! – respondeu o cigano. Nenhum Vistani desarmou-se. Ivny teve de se acostumar com a ameaça fatal das lâminas de prata.

- Ouvi falar sobre as habilidades Vistani. Sobre as bruxas. Disseram-me que elas poderiam prever meu destino.

- Você está morta, amaldiçoada! – respondeu a cigana de cabelos longos, morenos e ondulados, feito pelos deuses somente para ela, assim como seus olhos verdes, raros. A cigana tocava o ombro daquele que primeiro falou. Um toque de garra de pantera. Íntimo. Ivny imaginou que eles eram um casal.

- Então, não tenho um destino? – Ivny perdeu-se em pensamentos, vagando o olhar na fogueira do centro do acampamento, esperando torna-se ela e o fogo, cinzas. Mostrou-se frágil e confusa. Quando novamente ergueu o rosto deparou-se com a cigana próxima demais. Não importava. A vampira não receou a proximidade.

- Você está perdida. É um cadáver. Triunfa somente à noite – falou a cigana, fitando a vampira tão profundamente que causou, a esta, mal-estar de fome avassaladora – Mas suas feições, por alguma razão, lembram-me alguém – Ivny arregalou os olhos, atônita – você procura um mago. Um jovem mago.

- Sim – não importava como a cigana sabia. Ela era uma das bruxas, Ivny logo percebeu – preciso saber onde ele está – e mostrou-se frágil, quase chorosa e derrotada.

Houve um momento de silêncio.

- Vimos esse sujeito a alguns dias – revelou o cigano, sem sabre em riste.

- Onde?

- Há um vilarejo abandonado. Está também amaldiçoado, mas não por nós e sim, por algo bem maior. 
Algo que você desejaria não encontrar.

- Fala-me mais...

- O vilarejo chamava-se Alkor. Não nos ameaçava em nada. Oferecia-nos queijo e leite de cabra. Tentamos salvá-lo da ameaça ou, pelo menos, alertar os habitantes. Não adiantou. A coisa na carruagem veio mesmo assim.

- De que coisa você está falando?

- Um velho. Certamente é isso que enganará seus olhos à primeira vista, mas, além de sua pele frágil e enrugada, existe um demônio no qual nenhum Vistani jamais nomeou.

- Obrigado – Ivny agradeceu já se afastando do grupo.

- Espere! – ordenou a cigana. Ivny estancou, mas não se virou novamente para encará-la – deixe o garoto em paz!

- O quê?

- O garoto não precisa de você – a bruxa cigana revelou em tom baixo e confidente.  
Ivny ficou calada. Por um tempo só se ouviu o estalar da madeira sendo consumida pela fogueira.

- Engana-se, bruxa. Aensell sempre precisará de mim.

Continuou sua andança.

***

- Vejo um vilarejo abandonado ao longe, mestra – anunciou o cocheiro.

- Está bem. Você estacionará a carruagem aqui e descansará. Não estarei muito longe – respondeu Ivny despertada de um transe. Ela já não sabia se gostava ou odiava o peso da sua situação, passava a viagem toda mergulhada em memórias. Boas ou ruins.

- Mas, porque, senhora? Não seria mais seguro estarmos cercados pelo vilarejo? – argumentou o cocheiro ainda de rédeas nas mãos.

Ivny surpreendeu-se. O escravo estava hipnotizado pelos seus olhos dominantes. Não deveria questionar.

- Não é seguro. Os Vistani me alertaram sobre uma maldição maior que a deles. Você não precisa passar por esse perigo.

O cocheiro assentiu – Está bem.

Não era uma resposta que ela esperava. Esperava somente pela aquietação. E quieta ficou por quase cinco minutos, esperando a tardia luz do sol esconder-se. Finalmente rompeu o silêncio:

- Qual o seu nome?

- Sou Hildegrim.

Calou-se. Calaram-se.

Avançou a noite. Ivny saiu de seu esconderijo. Hildegrim dormia. Já havia alimentado os cavalos. Ao longe havia uma enorme fogueira no centro do vilarejo. Decidiu agir nas sombras. Não se despediu de nada.

***

Havia uma fogueira. Era enorme. Atingia grandes alturas e deixava o rastro de fagulhas dançando no ar noturno. A madeira incinerada estalava. Ivny podia ver isso na frecha de uma das casas que invadira. Era um vilarejo pequeno e abandonado. As casas foram construídas contornando o centro. Não tinha grande porte. O vilarejo não queria crescer para os lados, seus moradores haviam construído casas umas em cima das outras, mais priorizando o céu do que a terra. As moradias tinham bom alicerce, cada uma com seu jardim ou cercado onde, Ivny previra, os habitantes plantavam e criavam cabras e porcos. Alkor não era o tipo de vilarejo que a população abandonaria sem uma causa muito forte, no entanto, ele havia. O que sobrara agora eram ruínas entregues aos ratos e insetos e um viajante de braços cruzados a contemplar a imensa fogueira que, o próprio, havia criado.
Ivny esgueirou-se. Andou a passos curtos e estudados com a furtividade que sua maldição havia lhe proporcionado. Do lado de fora, o fogo estalava e o homem, cada vez maior, contemplava a chama, como uma deusa. Ivny não queria aparecer repentinamente – não como aconteceu com os Vistani – a fogueira era alta demais e ela temia. Vampiros temem o fogo. Ela esperaria pela hora certa que parecia nunca chegar.

Ao seu lado, as tábuas rangeram-se até o ponto de partir. Uma lança havia sido arremessada contra a sua posição e, por pouco, Ivny não fora pega desprevenida. A vampira encaixou o olho na fresta das ruínas e observou o homem contemplativo armado de um arco notavelmente grande e poderoso. A seta apontava para a sua direção. Dotada de reflexos superiores, Ivny saltou para o lado antes que a flecha, do tamanho de uma lança, acertasse seu corpo. Mais uma munição disparada, mais demolição. A flecha pesada partiu as tábuas e atravessou o corredor de ruínas que Ivny se escondia. Depois outra. E mais outra.

Como um vulto, Ivny escapou. Sua visão sobrenatural ajudou a notar o caminho e, entre saltos e acrobacias, a vampira alcançou o segundo andar de uma das casas. Flechas eram disparadas a cada três segundos. Velozes e fulminantes. A invasora desviava-se e movimentava-se com graça para decepcionar a mira de seu atacante. Ela armou-se do par de lâminas curtas que guardava sempre ao alcance, como se as sacasse do nada e, enfim, elas se materializassem afiadas em suas mãos. Saltou em direção do arqueiro, homem de músculos avantajados e estatura grande. Deslizou como uma dançarina diante os disparos do inimigo, desviou-os e o alcançou, lâmina fiel a riste, preparada para degolar. Sentiu, então, a ponta aguçada de uma das flechas atravessar-lhe o estômago.

Ivny parou, chocada. Nada poderia sobreviver àquela lança atravessada no estômago. Ela, contraditoriamente, podia. Esperou o meio gigante aproximar-se e o ameaçou no pescoço.

- Pare, agora! – exigiu Ivny, o sangue ganhando passagem pela sua garganta e manchando seus lábios com um fino riacho vermelho. A expressão no rosto da vampira era de frenesi. Desejava sangue.

O homenzarrão parou. Duas únicas flechas em seu depósito de aljavas.

- Nomeie-se! – exigiu mais uma vez.

- Sou Golias – respondeu a vítima enquanto via o ferimento no estômago de Ivny fechar-se, limitado ao ferimento trespassado de sua flecha.

- O que está fazendo aqui? – Ivny estava presa ao chão pela flecha, mas queria saber mais.

- Queimando... – respondeu monótono.

- Porque tamanha fogueira?

- Era um veículo grande e amaldiçoado. Foi necessário.

- Um veículo?

- Uma carruagem, sem teto.

- Porque queimar uma carruagem? – Ivny não sabia como aquela conversa havia chegado ali, mas estava curiosa. Tinha muitas perguntas.

- Como eu disse: era amaldiçoado.

Ivny mostrou as presas manchadas do próprio sangue.

- Conte-me algo que faça sentido ou morra!

- Havia um velho na carroça. Parecia inofensivo, mas o mago me alertou que o ancião era, na verdade, um demônio.

- Um mago? – Ivny contagiou-se pela ansiedade.

- Sim. Um mago. Andava comigo.

- Qual era o nome dele?

- Aensell.

As lâminas afiadas de Ivny desvencilharam por um segundo. Segundo o suficiente para ser surpreendida por Golias. A breve falha rendeu seu desarmamento e um gancho poderoso em seu pescoço. Mãos tão poderosas que seriam capazes de explodir um crânio.

Mas Golias não o fez. Arrancou a vampira de sua flecha, resultando num riacho de sangue e a derramou no chão. Ivny tossiu, fraca. Era fome. O meio gigante cruzou os braços e passou a observá-la com atenção.

- Porque está aí, parado? Poderia ter me jogado na fogueira – perguntou Ivny, ofegante. Vampiros não se cansavam, mas a fome os marcava com uma sensação de exaustão.

- Você é a irmã dele, não é?

O disparate atordoou a vampira.

- Sou.

- Ele se foi. Com uma draculean.

- Não. Não acredito nisso. Aensell não se aliaria aos escravos da dragocracia.

- Não o fez por vontade própria.

- Preciso ir atrás dele. É meu irmão e precisa de mim.

- Ele me pareceu dependente de pessoas, mesmo.

Ivny levantou-se e analisou seu ferimento. Já não o tinha, mas estava tão fraca quanto se tivesse sofrido tamanha hemorragia.

- Para onde?

- Zarast.

Ivny deu mais uma olhada na grande fogueira que consumia a noite. Não se despediu. Deixou para trás somente o meio gigante de braços cruzados a observá-la.

Golias

***

- Vou com você – o meio gigante interrompia o retorno de Ivny

- Como?

- Eu vou com você.

- Porque?

- Devo algo ao garoto.

- Deve? O quê? – interessou-se a vampira. Virou-se para Golias e o fitou nos olhos.

- A vida.

Ivny não concordou com a vinda do meio gigante, nem discordou. Nada fez para impedir que Golias entrasse na carruagem. Não exigiu que o mesmo saísse quando o cocheiro se acordou e pôs-se a ordenar seus cavalos.

Quanto chão ela ainda iria percorrer?

***

- VAMOS GAROTO! – gritou o robgoblin chutando as costas de um menino preso a coleira. Como um cão.

O garoto despencou no chão, já demasiado espancado.

- Você precisa me falar o que estou rastreando! – respondeu ele, corajoso, com a boca ainda mastigando terra.

- CO-MI-DA! – o robgoblin agarrou seu pescoço e apertou-lhe a mandíbula, depois o jogou novamente no chão.

Havia outros quatro robgoblins com este.

- Bem que você falou que o menino iria facilitar as coisas, Gatarghûn. Ele fareja como um lobo – comentou um dos quatro restantes, uma figura cavernosa, sem uma das orelhas, sem muitos dentes. A língua quase saltava para fora a cada sílaba pronunciada.

- Falei mesmo. O menino veio da Mil Sussurros. Foi ensinado por fantasmas de lá. Consegue farejar tudo. QUEREMOS COMIDA, GAROTO! PORCO SELVAGEM! LOBOS! GENTE! CARNE HUMANA, COMO A SUA!

- Se arrancássemos seus braços, seria difícil ele fugir.

- IDIOTA! Nós fugimos com as pernas!

- Mas não desatamos nós com elas.

Todos os robgoblins concordaram.

- Está feito? – perguntou um dos robgoblins pisando nas costas do garoto e desembainhando uma espada enferrujada.

- NÃO! MEU ESCRAVO VAI MORRER POR CAUSA DO FERIMENTO! – esse era Gatarghûn, senhor por direito do garoto. Não tinha pena do escravo, mas lhe tinha a posse e queria que ele fosse perfeito.

- Não seja tolo, Gatarghûn. Cortamos e queimamos. O fogo extingue a doença.

- EU NÃO DEIXAREI QUE ELE FUJA. NÃO HÁ NECESSIDADE DE CORTAR SEUS BRAÇOS!

- Estamos famintos. Precisamos se energia se vamos enfrentar porcos selvagens, lobos ou gente.

Gatarghûn ficou indignado. Pisoteou o chão, chutou pedras, ralhou.

- SEMPRE ASSIM! VOCÊS SE APROVEITAM DA MINHA INTELIGÊNCIA! SEMPRE!

O senhor do garoto soltou a coleira que foi, imediatamente, agarrada por outro robgoblin.

- QUE SEJA! CORTE-O NO ANTEBRAÇO. NÃO O CORTE NA ALTURA DOS OMBROS. TENHO PLANOS DE COMO AMARRÁ-LO.

Todos concordaram.

Por um momento, os robgoblins se estranharam. Todos queriam fazer o serviço de açougue.

- BASTA! SOU EU, GATARGHÛN QUEM VOU FAZER ISSO!

- Mas eu tive a ideia!

- DANE-SE! SOU DONO DELE. EU QUEM SEI O QUANTO TEM QUE CORTAR...  – aproximou o rosto medonho do garoto amedrontado e choroso. Segurou o frágil braço e sussurrou - ...bem aqui – esboçou um sorriso maldoso e sua cabeça explodiu espalhando restos de cérebro cinzento.

Uma lança fincara no chão perto do menino. Ela ceifara a vida de Gatarghûn. Os demais robgoblins não tiveram tempo para reagir. Outras lanças fizeram o mesmo com eles.

- Deixe um vivo, Golias – uma voz feminina projetou-se de uma carruagem a certa distância.

Havia um meio gigante a dez metros dos arruaceiros robgoblins. O corpo robusto, cheio de músculos e a pele manchada de cinza como uma pedra. Era muito mais fácil notar a coloração rochosa quando se observava Golias durante o dia. Ele disparava flechas do arco feito sob medida. As flechas eram como lanças. Faziam estrago. Como a voz soturna havia comandado, apenas um dos robgoblins sobreviveu.

***

Hildegrim estacionou a carruagem próximo ao terreno sangrento de goblinóides. O robgoblin sobrevivente tinha a perna lacerada por uma das flechas de Golias. Ele ouviu o barulho dos pesados cascos dos cavalos a pisotearem as tripas e crânios de seus irmãos. Depois, a própria carruagem esmagou o resto.

- Q-q-quem são vocês? – gaguejou o sobrevivente.

A porta da carruagem escancarou-se. Um vento frio antecipou-se lá de dentro, junto com a presença obscura de Ivny. Olhos vermelhos se projetaram na estrutura que a protegia da luz do sol.

- De onde vocês vieram? – perguntou Ivny, soturna.

- Somos da Madeira-viva – o robgoblin respondeu sem titubear. Estava hipnotizado pelo olhar sangrento.

- Isso fica aonde?

- Em Asaron.

- Vocês vieram de tão distante assim?

- Os druidas da Madeira-viva nos expulsaram. Muitos grupos se separaram, caminhando para terras remotas.

- Então, vocês são apenas idiotas perdedores.

O robgoblin assentiu afirmativamente.

- Em suas andanças, por acaso, encontraram-se com um mago?

O robgoblin assentiu, dessa vez negativamente.

- Eu vi um mago! – respondeu a voz infantil, livrando-se do peso do corpo de Gartaghûn que havia se debruçado sobre ele depois de ter a cabeça explodida – eu vi! – o garoto levantou a mão, ansioso.

- Quem está falando? – perguntou Ivny, pois não tinha visão de seu informante.

O menino levantou-se, trôpego, ensanguentado, mas muito vivo:

- Me chamo Koku. Venho da Floresta dos Mil Sussurros.

O garoto mais parecia um macaco. Agia como um. Permaneceu bípede pelos primeiros três passos, 
depois apoiou o peso com a ajuda das mãos. Seus olhos perseguiam curiosos a silhueta dentro da carruagem. O garoto tentava discernir algum cheiro.

- Quando você viu o mago?

- Há três sóis.

- Conheceu-o?

- Não. Eu o enxerguei, sozinho. Parecia perdido. Estava com os robgoblins, não pude ajuda-lo. Se tentasse fazê-lo, levaria os goblinóides comigo, para ele.

- Em que direção?

Koku apontou para adiante a estrada.

- Para Zarast? – concluiu Ivny, em tom de dúvida.

- Não sei. Não conheço Zarast. Nunca sai de Mil Sussurros.

Ivny pensou em perguntar como Koku havia chegado até ali, mas concluiu que a história seria demasiada longa.

- Hildegrim, temos de prosseguir – comandou sem olhar o cocheiro nos olhos.

- Sim, senhora – respondeu o dono das rédeas. Parecia satisfeito com a ordem.

Golias não encontrou nos robgoblins qualquer coisa que lhe servisse. Prendeu-se nas costas da carruagem. Ivny voltou a olhar para o robgoblin.

- Você, venha! – comandou. O robgoblin arrastou-se para dentro da carruagem. Comportado.

A carruagem esmagou mais dos corpos .

- Espere! Espere! – suplicou Koku. A carruagem não parou – por favor, não conheço nada! Não posso voltar para Mil Sussurros! Por favor, me ajude a encontrar Khali! – o garoto pensou: que idiotice! É claro que aquela criatura não conhecia seu amigo. E perseguiu a carruagem, ignorado. Ofegou. Foi deixado para trás. Ia desistir, até que teve uma ideia – Eu-eu posso rastreá-lo! – a carruagem parou – Posso leva-la exatamente para onde ele está! Sei fazer isso. Sou um fantasma!

Por um momento, somente ouvia-se o barulho secular da ventania. Depois a porta da carruagem escancarou-se.

Koku entendeu o recado.

***

Estava escuro demais para Koku, lá dentro. Ele sentiu o líquido quente aspergir sobre ele. Inundava o chão. Tinha cheiro de morte. Enojou-se.

- Então, você é da Floresta dos Mil Sussurros – comentou Ivny alternando entre mordidas – ouvi muitas histórias de lá, quando era criança.

Koku surpreendeu-se: então, aquilo na escuridão a devorar o robgoblin, já foi uma criança.

- Sim, sou – respondeu trêmulo.

- O que vocês fazem lá?

- Protegemos a floresta. Somos guardiões! – respondeu com orgulho.

- E o que tem de especial nessa floresta, se comparada com as centenas de outras espalhadas pelo mundo?

- É a floresta mais antiga! A natureza de lá ainda é protegida pela magia do alto-elfos. Lá é o único caminho para Ellidoränne, o reino deles.

- E porque saiu de lá?

- ...E-eu pretendo voltar – gaguejou Koku, procurando uma resposta plausível – tam-também estou à procura de alguém.

- Quem é esse tal de Khali?

- Um amigo – respondeu sem titubear – Um mestre! – corrigiu com ímpeto.

- Nossos caminhos se unem até que eu encontre meu irmão – concluiu Ivny – depois nos dividimos.

- Então, o mago que procuras é seu irmão?

- Sim.

- O que aconteceu entre vocês?

Ivny calou-se. Permaneceu assim durante toda uma refeição. Koku percebeu que nunca mais deveria fazer esse tipo de pergunta.

- Abra a porta... – enfim Ivny se comunicou.

Koku o fez. A luz do sol invadiu. A espuma sanguínea, grossa, escorreu para fora da carruagem. Um baque surdo e o corpo do robgoblin, vítima das presas, caiu nas tábuas. Koku o viu e o terror lhe invadiu a face.

- Jogue este corpo fora, depois saia da carruagem... – comandou Ivny.

Koku fez.

Como um macaco, escalou a carruagem. Deparou-se com Golias, na traseira do veículo. Não queria conversar agora. Na verdade, sabia que o meio gigante era de poucas palavras. Adequou-se em cima de tudo. Protegeu o rosto do sol, olhou para os rastros que a carruagem deixava. Viu o distanciar do cadáver goblinóide. Ele ia se tornando uma massa pútrida avermelhada, disforme. Muito mais distante (e cada vez mais distante) estava Koku de seu lar.


***