quarta-feira, 22 de abril de 2015

Prelúdio de um frio intenso

Ainda tenho páginas o suficiente. Essa sombria pena de corvo poderia riscar rolos de pergaminho por centenas de anos – julgo eu, infinitamente, se isso for possível, mas como não seria?

E a tinta?

Bem, a tinta, essa sim eu tenho certeza que é inacabável. Sempre a mesma cor viva que se contrasta totalmente com o ambiente opaco e cinzento na qual me disponho para escrever.

O vermelho. Um gotejante vermelho-sangue drenado do mar de vítimas. Não que estas precisem ser presas ou torturadas para que esses potes estejam sempre cheios. Sofrer elas sempre o fazem. Algumas até se acostumaram e, seus gritos, eu poderia afirmar, não são inteiramente fadados à dor física. Existe coisa bem pior aqui embaixo. Ou aqui no nada.

Espero que vocês saibam que a morte não fala – embora eu acredite que, às vezes, ela sussurre para os melhores ouvintes ou para os mais esperados – mas sua história ainda pode ser contada através de seus escribas.

Eu poderia considerar essa profissão um fardo julgando pela minha aparência patética. Eu não tenho um espelho, mas ainda posso enxergar minhas mãos pálidas se afinarem e sentir elas ficarem frias. Meu rosto não deve estar diferente, então, você não poderia entender o quanto eu acho isso tudo prazeroso.

Sim, prazeroso.

Mesmo quando as unhas dela rasgam-me a pele das costas ou o estalar de seus lábios me queima o pescoço. Há um pagamento bastante convincente quando a deixo debruçar-se sobre mim.

Único.

Em suma, leitor: você não a tem.

E foi por mais uma vez contemplá-la que acabei me deparando com aquele inferno de gelo...

                Um manto incorporava as sombras que se estendiam e se arrastavam vivas pela imensidão esbranquiçada de frieza do continente de Nevaska. Debruçavam-se como amantes de garras afiadas a agarrar os ombros desprotegidos da deusa que, mesmo de pés nus, pisava nas farpas de gelo, cortantes como um punhal, sem correr nenhum risco de injúria.

                Os espectros que ali sempre vagavam em busca do nada, também pararam para contemplá-la. Mesmo aqueles nas quais seus sopros moldavam as rochas e afiadas lâminas de gelo que adornavam a entrada, desvencilharam-se de seu eterno ofício para vê-la arrastar suas vestes pelas entranhas da caverna de cristais, morada da entidade que dali fez sua sede. E enquanto assim o fazia, observava com desânimo a sina álgida das vítimas do inferno de gelo.    

- O que acha, mãe? Essa é a minha prisão de gelo eterno e, sob minha presença, qualquer viajante que sucumba ao frio incessante de Nevaska, terá seu espírito igualmente congelado.  Parece tão sufocante quanto seu rio de sangue e lágrimas?

- Nessas terras de brancura fria e infinita mal ponho os pés, pois o que morre aqui, a você, Dama Frígida, é presenteado. Como eu assim desejei. Mas em meu mundo cinzento, as almas sangram, choram e lamentam para finalmente alcançarem o plano de seus deuses. Os espectros daqui, não têm escolha.

- A escolha é vã. Se perguntasse aos meus súditos o que estes desejariam ao finalmente se confrontarem com a morte, eles escolheriam me encontrar e me servir, assim como fazem em vida.

                E dos tronos de gelo cercados pelas pilastras transparentes feito diamante, uma figura pueril desenrolava seu manto esbranquiçado que se somava a cor alva como a neve que era a sua pele. Uma rosa de vermelho vivo contrastava-se com o restante de sua aparência fria, brotava como uma mancha de sangue de suas mãos delicadas e infantes.

- Não é esta, afinal, a finalidade de um deus? A adoração. – lancetou a própria mãe com olhos agudos e cheios de confrontação.

- Pois lhe darei a oportunidade de sentir-se adorada, dama da frieza eterna, pois de suas terras inférteis existirá alguém cujo o meu manto passará desatento. Alguém que carregará sua frieza em batalha e o calor de suas motivações.

- Você se desenterra de seu mundo fúnebre para me fazer lembrar da submissão a mim imposta. Com que finalidade?

- Satisfazer minha inveja.

                A resposta foi tão rápida e direta que mesmo o rosto frequentemente inexpressivo da Dama Frígida esboçou o cenho da dúvida.

                Aquela era mesmo Veronicca, a deusa da morte, senhora da desesperança, expressando um sentimento cujo a Dama Frígida acreditava que os deuses primordiais não possuíam. Talvez entidades poderosas como a própria dona de Nevaska poderiam recorrer a tais máculas mortais – como assim ela o tinha pela própria mãe e pelos deuses que caminhavam livres pelas terras onde seu gelo jamais poderia alcançar – e isso a alegrou.

- Inveja?

- Sei que meus irmãos farão o mesmo por motivos mais honrados, mas isso não diminui a intensidade de minha ação, nem a paixão infundada que me levou a ter essa decisão.

- Estamos falando de quem? – interessou-se a Dama Frígida enquanto se aproximava curiosa a discernir o sentimento da mãe – qual será a vítima escolhida para saciar sua inveja?

- Alguém púbere. Uma joia ainda não lapidada na qual meus emissários usarão do fogo e do frio, da luz e das sombras para poli-la. Vestirá a túnica da morte, mas manterá seu âmago vivo. Carregará a dúvida em sua consciência, mas a certeza em suas mãos. Ainda assim estará sujeito à desistência de minha teimosia imprudente.

            Lá fora a neve caía violentamente em espirais desarranjadas e tingia-se do sangue profético.

...

- Meu irmão morreu. – sussurrou o garoto com espadas em ambas as mãos, como se a morte pudesse ouvi-lo e todo o barulho provocado pela balbúrdia das espirais de gelo que circundavam a arena não fosse o suficiente para mascarar sua voz – Meus pais sucumbiram à você antes. – cerrou os dentes e seus caninos afiados imitaram a ferocidade oferecida pelo lobo de manto encrespado na qual ele combatia.

           Havia uma coroa de pedras de gelo envolvendo um cemitério de ossos roídos que antecipavam a entrada de uma caverna gelada em alguma região da fria Nevaska. Em meio a isso, um jovem vestindo o acolchoado e pesado gibão de pele que lhe protegia do frio intenso, encarava com a ajuda de suas espadas gêmeas, um lobo de presas longas como lanças, pelagem ouriçada como farpas de gelo e um costumeiro fôlego que exalava de suas narinas e preenchia o ar com algidez.

- Eu sou Aldebaran. O último.
  

          Às encostas da caverna de gelo, meia dúzia de lobos jaziam sangrentos, alvos da fúria faminta de Fenris, o lobo atroz responsável por arrancar inúmeras vidas humanas e lupinas e, por isso, aquela alcateia havia ajudado Aldebaran a trazê-lo à coroa de pedras de gelo onde o caçador prometera enterrar suas presas (as espadas) na criatura até que, enfim, seu último fio de vida se esvaísse.

- Estes são seus últimos segundos sedentos de fome insaciável - ameaçou Aldebaran e projetou as duas lâminas longas em direção à Fenris enquanto esquivava-se do sopro gélido exalado dos pulmões do lobo atroz.

        Houve um rodopio e um salto e um emissário da morte estendeu seu manto sobre as terras geladas.

  ...

        O manto esbranquiçado agora almofadava o trono de gelo adornado por cristais pontiagudos. Repousada sob as pernas da Dama Frígida a, ainda viva rosa vermelha deitava-se em seu colo. Seu olhar atento mirava o jovem ajoelhado em frente ao salão de espelhos de gelo.

- Meus espectros recomendaram sua vinda, jovem. Qual o motivo da impensada visita? - dirigiu-se a Dama Frígida satisfeita com o ardor que alguns súditos tinham ao enfrentar o perigo apenas para arriscar vê-la. 

          Aldebaran vestia um manto de couro enrijecido, ainda preenchido pelos tufos do pêlo rústico de Fenris e jogou, aos pés do trono de farpas de gelo, um envoltório banhado em sangue que se desenrolou e revelou a cabeça do lobo atroz.

- Este é Fenris, das cavernas do norte. - adiantou o caçador.

- Parece que sim - olhou para o rosto de sua cria e notou os olhos opacos e mortos - e você é jovem demais para ter conseguido tal feito.

       Esperou alguma resposta de Aldebaran, mas o silêncio do caçador já foi o suficiente para satisfazê-la.

- Ainda assim digno de minha atenção, assim como aqueles que um dia foram meus melhores guerreiros. Sei o que pretende, jovem caçador, adiante-se, implore o seu desejo.

- Meu irmão. Quero-o de volta. Ele morreu pelas garras de Fenris cedo demais. 

           O pedido, para a Dama Frígida, era pouco louvável e um tanto irritante. Pensar de uma forma tão pouco egoísta era condenável. O desejo não tinha nada a ver com ela. Por um instante ela pensou que seus espectros poderiam envolvê-lo com uma espiral de gelo cortante. Ele estava ali, indefeso e ajoelhado e logo se tornaria um de seus eternos amantes gélidos caso isso acontecesse.

          Aldebaran levantou o rosto e fitou o olhos da eterna rainha das terras geladas e, assim, a Dama Frígida sentiu um angustiante calor.

- Tenho melhores propostas, caçador. 




   

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