Prelúdio
de dias cinzentos
As
ruas de Santa Helena não mudaram tanto nos últimos vinte anos. Ainda continuam
sendo uma miragem das estradas e becos cinzentos de décadas atrás, e essa
eterna aparência é desencorajadora para um idiota nostálgico como eu. Coloco
minhas luvas, visto minhas calças e meu casaco, alcanço meu guarda-chuva e piso
no chão de pedras ainda molhadas da última neblina. A água a escorrer
sutilmente para dentro dos bueiros nas encostas das calçadas. Meus passos
carregam-me pelas vielas e acompanham o baque surdo da marcha dos transeuntes
que mantêm os olhos fixos no movimento dos próprios pés. Um ou dois acenos de
cabeça – é o que as pessoas dessa cidade acreditam que seja o mesmo que desejar
um bom dia – e nada mais. Será mesmo que estou aqui?
Santa Helena é, antes de
tudo, uma cidade de esquecimento.
Meus pensamentos estão tão presentes nesse começo de dia
que, apenas depois de alguns minutos de andanças aleatórias, lembro que minha
intenção era chegar até um café. Esquentar minha garganta e talvez sanar minha
consciência, mesmo que seja pelos segundos que deixo escapar no intervalo de
cada gole, é tudo que eu preciso para reestruturar a minha sina de vida.
E então, o cinza das ruas
e do horizonte urbano é manchado por um vermelho flutuante. Um garotinho acaba
de recolher um balão a ele presenteado por um homem de aparência amistosa e que
provavelmente é seu pai. O moleque, é claro, não tinha o hábito de agradecer,
mas um sorriso provido de inocência e uma corrida saltitante enquanto contemplava
seu frágil brinquedo, já era o suficiente para deixar o pai satisfeito. O
garoto desfilava uma felicidade incompreendida pela vereda enquanto meus olhos
reconstruíam uma lembrança preta e branca de minha infância.
Um par de enormes asas
negras de um corvo rasgavam o ar e um aglomerado de pessoas boquiabertas
tentavam alcançar sua plumagem em vão. A marionete constituída de finíssimas
linhas de metal puxadas organizadamente pelos marionetistas que se escondiam dentro
do carro de desfiles, erguiam e baixavam as asas projetando uma sombra tenebrosa
sobre o boneco de cera pálido com cabelos bem penteados, um par de olhos
profundos cercados de olheiras e uma vestimenta preta clássica. Poe.
Aquele era “El día de los muertos”, um presente cultural
ofertado pelos muitos antecedentes mexicanos que, um dia, vieram à Santa Helena
para trabalhar nos extintos e vastos campos ao redor da cidade. A figura do
corvo, assim como os demais veículos que apresentavam à plateia curiosa um mar
de gatos pretos, o tic tac de pêndulos insistentes e a representação insana da
entidade caótica criada por Lovecraft, não deixava restar dúvidas de que a
celebração havia se tornado um tanto americanizada. Mas as máscaras macabras,
as velas negras perfumadas e os esqueletos-humanos que se contorciam numa dança
desajeitada ainda resgatavam o espírito original do dia dos mortos.
As pessoas se amontoavam
para observar cada detalhe do desfile. Minha mão deslizou e abandonou a de meu
pai e, naquele momento, eu senti medo. Não devido à solidão ou à falta de
segurança que na hora eu tinha enquanto permanecia longe de meu protetor.
Passei a infância me acostumando com a ausência dele e observando as crianças
normais brincando nas ruas sempre cinzentas do outro lado de uma janela de
vidro empoeirado. A única TV que eu tinha disponível. Mas sim por causa dos
rostos de olhares apreensivos.
Mãos
e dedos inquietos de pessoas que não queriam perder seu campo de visão que era insuficiente
para assistir ao desfile de veículos macabros detalhadamente. Essas que
tentavam me afogar no esquecimento. Será mesmo que eu estava ali?
- Aqui filho. – Escutei a voz de meu pai.
Logo depois deixei que um braço me puxasse e me erguesse.
Ele me pôs em volta de seu pescoço e logo percebi que aquela era uma visão
privilegiada para assistir ao desfile.
Um grupo de esqueletos
cultivava na areia de cemitério as rosas de pétalas negras que, de alguma
forma, eu sabia, deviam ser plantadas sobre os cadáveres para disfarçar o
cheiro da morte. Aquelas rosas se chamavam amaranto, elas também serviam para
drenar os últimos vestígios de lembranças maldosas de um falecido. De acordo
com meu pai: elas evitavam a aparição de espectros.
- Este é o dia em que os
mortos visitam os vivos, Fabrício. – revelou-me ele.
Lembro-me que não discordei. Já havia lido isso em um
punhado de livros empoeirados do meu quarto ou durante os longos momentos em
que passeava pela biblioteca de Santa Helena. Tinha pouca idade, mas a
inocência dificilmente me afetava. Sabia bem qual era o significado de
mitologia ou de crenças populares. Deixei que meu pai se divertisse enquanto
tentava me assustar com informações tão ilusórias.
- A maioria deles querem
ser presenteados, é por isso que Santa Helena realiza esse festival e seus
habitantes decoram suas casas com esses apetrechos macabros, para aqueles que
andam sem a necessidade de pés não estranharem a mudança contraditória do
ambiente.
Continuou a explicar e, lá das alturas, tentava imaginar
como os mortos atravessariam o véu que os impedia sair de seu lar mórbido e os
permitia visitar seus parentes vivos apenas uma vez por ano. Não parecia ser
tanto tempo de espera. Entre os vivos, há pessoas que esperam muito mais para
se encontrarem. Há amores que demoram muito mais para se concretizar. De certa
forma, portanto, a morte poderia ser mais do que um alívio apenas físico.
- Mas alguns, meu
pequeno, vêm ao nosso mundo para presentear.
Aquela sim era uma informação nova. É claro, talvez, que
ele poderia estar inventando. Acrescentando algo original à antiga mitologia.
Não me deixou de passar pela cabeça que, decididamente, afinal, era assim que
as crenças populares se esticavam e tornavam-se parte da cultura: línguas
afiadas e imaginações férteis.
- É preciso estar
preparado para presentear os mortos, Fabrício. Mas é ainda mais importante
estar preparado para ser presenteado por eles.
Um veículo maior afastava a multidão curiosa para as
bordas da rua onde ocorria o desfile. Uma sombra, tão escura quanto a noite, se
estreitava em retalhos carregando uma foice esculpida em ossos tortuosos. Um
crânio assombroso parecia flutuar em meio ao manto da representação da morte e
seus olhos vazios pareciam olhar diretamente para mim.
“Não é seu pai quem está
falando, Fabrício. Sou eu. ”
- Pois quando eles te
presenteiam, exigem algo em troca. E mais ninguém é capaz de decidir qual será
essa mercadoria, filho.
Não me recordo se ficamos no desfile até o fim daquele
dia. A cena em minhas lembranças repentinamente se desfaz e se reconstrói no
momento em que me mantinha debruçado sobre o corpo dele, caído no chão da sala.
Um policial segurava-me firmemente pelos ombros e afirmava:
“Vai ficar tudo bem,
filho. ” – meu protetor, tão repentinamente, havia mudado.
Meu pai havia empurrado a
mesa de centro e, junto com ela, um pequeno jarro com flores falecidas durante seu
suposto derrame. Ele deveria ter se contorcido estranhamente calado por sinal,
uma vez que, de meu quarto solitário, não ouvi um só pedido de socorro, ou
sequer um ganido de dor.
Os médicos não souberam
explicar o repentino derrame ocorrido em alguém relativamente jovem e de boa
saúde, por isso, nunca puderam esclarecer-me sua morte. Mas eu sabia: ele havia
sido ceifado.
Desde aquele dia, eu o
odeio.
Odeio como quem sabe que
ele poderia ter feito outra escolha. Como quem reconhecia ingenuamente que a
voz da morte não o convenceria, independente do presente ofertado. Então, ele
me deixou aqui, sob o flagelo de minhas visões cinzentas, padecendo aos poucos
do conhecimento que atravessa os véus e temendo reconhecer mais das pessoas do
que elas mesmas.
***
Não preciso mais de lembranças, por enquanto. Dou um
tempo para o moleque cansar-se de seu brinquedo e alcanço os pequenos três
degraus da entrada da cafeteria quando me deparo com um par de olhos cinzentos,
como uma nuvem carregada. A estranha bizarrice estende suas mãos sujas de unhas
tortas e cercadas de sujeira em minha direção, prestes a dizer algo.
Não é preciso. Recolho
uma nota e meia dúzia de moedas no bolso do meu casaco e as entrego diretamente
na mão frágil do mendigo:
“ Deus lhe pague em
dobro. “
Apresento-lhe um sorriso
satisfeito e ensaiado. Como se ele pudesse vê-lo. E abro a porta da cafeteria.
As
luzes opacas não ajudam a colorir o ambiente cinzento que a cafeteria carrega.
Um amontoado de mesas vazias implora por acolher um estômago vazio e em uma
delas eu me sento.
A moça dos pedidos
escreve delicadamente sobre um bloco de notas as exigências de um homem acima
da idade com um jornal em mãos e olhar vazio. O mesmo que possivelmente se
senta em frente ao balcão todos os dias e espera que ela o reconheça e lhe
traga o mesmo pedido de sempre. Em poucos segundos, uma xícara funda e quente é
colocada ao lado do fiel consumidor.
“Obrigado” – uma resposta
rápida e pouco agradecida para o trabalho que ela tem a obrigação de exercer
sem falhas, ele deve imaginar.
Agora ela caminha até mim. Morena e despreocupadamente,
com seu bloco de notas em mãos.
- A mesma coisa de
sempre? – pergunta ela com um sorriso intocável na boca e um olhar que disfarça
sua monotonia.
- Por favor – eu respondo
educadamente, como ela havia previsto. Depois uma breve troca de olhares
atípica das pessoas daquela região.
Uma troca de olhares significa muita coisa. A solidão
pode ser desdenhada pelo simples incitar alheio. Em um ambiente onde o cinza é
capaz de transformar as pessoas, algumas buscam apenas moldar sua capacidade de
provocar emoções. Então, ela se afasta com seu sorriso cálido e com metade da
missão bem-sucedida. Não pude deixar de retribuir o sorriso pateticamente,
deixando-me alvo claro de sua maestria em envolvimentos. Sabia, porém que, era
ali, onde ela pretendia parar.
Quando seu expediente
acabasse e ela pudesse voltar ao seu quarto escuro cheio de telas e desenhos
pintados à mão própria – claramente uma mensagem de seu subconsciente
implorando para que ela consiga expressar, de alguma forma, algo que lhe falta
– seus pensamentos seriam anulados e inundados pela presença de um único. As
boas e más lembranças compartilhadas com seu exigente ex-amante.
Ela ficaria a imaginar um
final diferente ou um recomeço ideal onde ele abriria a porta de seu quarto e
compensaria os minutos da última discussão com beijos sufocantes e uma
explicação plausível do porquê ele tão custou a encontrá-la nas últimas
semanas.
É claro que isso nunca
iria acontecer.
Eu matei ele.
Sim, faz parte do meu serviço fabricar corações
abandonados, independente da forma ilícita que isso possa parecer soar.
Lembro-me daquele garoto de cabelos despenteados com a camisa estampada dos
Ramones. Uma mente ilusoriamente poética que mastigava as palavras e as emitia
defendendo um ideal sem que ao menos ele mesmo soubesse se era o certo. Pessoas
assim eram fortes em suas convicções, mas facilmente eram alcançadas pela voz
que lhes preenchia os ouvidos com algo mais que a razão. E era assim que um bom
revolucionário se tornava uma peça importante para aquilo que se arrasta no
escuro: bons ouvidos que concordassem com qualquer besteira que ele tivesse
disposto a compartilhar.
E foi ironicamente acompanhado pela melodia de Highway to Hell de AC/DC, ecoando dos
fones de ouvido de seu celular, que o garoto de causas nobres foi arrastado
para as sombras aquela noite enquanto ele percorria as ruas escuras de Santa
Helena sem nenhum aviso de perigo. A voz peculiar do frontman da banda de rock gritava o refrão enquanto uma mão fria
cobria a boca do andarilho desavisado.
Medo. Ele tinha medo de
morrer e, por isso, as lágrimas jorraram de seu rosto.
Eu estava lá, esperando
pelo tempo certo que nunca chegou. Dispondo-me do crucifixo e da água benta que
deveriam ter sido usados segundos antes de seu desaparecimento.
Porque eu não o fiz?
Daquele dia em diante, o
garoto metido a diplomata irracional ocupou todas as lacunas de seu tempo arrastando
corpos frescos pelas vielas da cidade cinzenta. Como um cachorro arrastava a
carniça e a defendia de outros cães famintos. E ele, assim como os outros
escravos de sangue, tinha consciência dos pecados que estava a cometer. Seus
olhos logo se acostumaram com o escuro. Os olhos sempre se acostumam quando o
sujeito é obrigado a conviver com a plenitude sombria.
Carregava baldes de água
suja e trapos molhados que ele arrastava pelas ruas limpando o sangue de suas
vítimas e cobrindo-lhe o rastro. Eu estive lá observando, esperando que alguma
hora o rato me mostrasse onde estava o buraco que lhe servia de lar.
Certa noite, enquanto perseguido por uma trêmula luz de
lanterna, o garoto, agora com a mente distorcida, foi obrigado a usar dentes e
mãos para desfiar o cadáver de uma de suas vítimas afim de fazê-lo caber na
passagem de um dos bueiros da cidade que eram constantemente regados pela água
da chuva sempre presente nessas temporadas.
Debruçou-se ele mesmo no
buraco e esperou impaciente a vigília noturna averiguar a situação. Um policial
acima do peso, com um cassetete, uma pistola simples e uma lanterna a iluminar
os caminhos sangrentos. O garoto esperou a aproximação do intrometido para dar
o bote, caso esse percebesse seu rastro.
E o policial percebeu.
Iluminou o bueiro e temeu a escuridão. Ignorou. No dia seguinte, ele mesmo
diria aos companheiros que não havia percebido nada de estranho naquela região.
Essa atitude covarde, de
alguma forma, me ajudou.
A pérfida criatura, agora completamente entregue à
escuridão, passou a usar o lugar como esconderijo secundário. Quando as noites
avançavam e as mortes bem estudadas pareciam ficar mais frequentes, decidi
agir.
Aquela noite era fria, pois os espíritos costumam
pressentir o valor das mortes, e sob aquela névoa cinzenta que impregnava tudo,
desci o bueiro afim de surpreendê-lo. Como se pudesse farejar a criatura, andei
pelos caminhos sujos e abarrotados de lama dos esgotos de Santa Helena e
escutei a voz esganiçada de minha vítima a indagar os grandes pensadores.
“ Para cada mil homens
dedicados a cortar as folhas do mal, há apenas um atacando raízes.”
Citação de Thoreau. Eu
bem me recordava dos livros.
“ Todas as coisas boas
foram noutro tempo más; todo o pecado original, veio a ser virtude original. ”
Nietzsche.
Então me aproximei com cautela para vislumbrar o
santuário sangrento da criatura e enxerguei as paredes escorrendo uma bíblia de
pensamentos de sangue escritos a dedo por aquele garoto que um dia perdeu seu
caminho no meio das estradas de Santa Helena e passou a seguir sua estrada para
o inferno.
Risquei um de meus
fósforos alquímicos na parede e a escuridão foi lancetada por faíscas luminosas
de chamas. A criatura ali, então, me percebeu. Ganiu enraivecida. Depois olhou
os arredores e viu seu livro de sangue escorrendo pelas paredes do esgoto.
Frases de pensamentos coagulados. Ele sentiu vergonha e esse sentimento o fez
sentir ainda mais raiva.
Das longas mangas de minha batina negra – minha armadura
de guerra contra o sobrenatural – desenrolou-se um par de correntes molhadas e
se fixaram firmes ao meu punho.
Não precisei de fé.
Meus lábios balbuciaram
as mesmas frases usuais para esse tipo de situação, o sermão em latim antigo
encontrado nas escrituras sagradas. A criatura saltou sobre mim com boca, mãos
e olhar sangrentos.
O barulho ferroso das correntes na mandíbula da criatura
ecoou pelos corredores sujos e sangrentos dos esgotos de Santa Helena. Ela
rolou no chão como um animal que acabava de sair de dentro de uma fogueira.
Cuspiu alguns dentes e me olhou com fúria intimidadora.
Eu sabia: a criatura
agora era ódio em sangue e fome de carne. Ela não ia encerrar sua violência tão
rápido. Nem eu iria encerrar minha caçada.
Saltou teimosamente
contra mim e seus pés sujos criaram um rastro de excremento e sangue que ele
estava acostumado a pisar ali, em seu novo habitat. Esquivou-se de meus punhos
e agarrou-me pelo torso, erguendo meu corpo com facilidade e me jogando contra uma
das paredes de frases sangrentas.
Minha batina manchou o
dialeto escrito a sangue e o tornou impossível de ler. Tentei recuperar o
fôlego, a pancada havia sido forte, mas meu inimigo me impediu de fazer isso,
pois, como uma sombra súbita, arrastou-se até mim e agarrou-me pela garganta.
Pude ver seus olhos
díspares. Um ainda negro, como assim o era quando ainda pensava como um humano,
e o outro vermelho, como se uma cortina de sangue tivesse inundado a íris. Ele
estava me analisando, procurando me reconhecer, tirando de algum lugar de sua
memória a imagem de minha face e comparando se esta era semelhante à de alguém
que ele já havia visto no mundo de cima.
Talvez esse possa ter
sido seu erro. Deus sabe o que ele pudera ter pensado naquela hora. Um monstro
que recorda sua humanidade tende a ficar preso em pensamentos nostálgicos e
isso é o terror deles.
Bem, isso acontece muito
comigo.
Juntei forças e o empurrei com as pernas. Os dois corpos
caíram no chão. Ele havia escorregado em seus próprios rastros sujos. O barulho
das correntes se desenrolando de meus pulsos se estendeu pelos túneis
esquecidos e, dessa vez, me obriguei a ser mais veloz do que a criatura com a
qual eu lutava, sendo que, a próxima reação de meu inimigo foi a notável falta
de ar quando sentiu as correntes gotejantes cercarem-lhe o pescoço.
Senti as correntes
apertarem meus pulsos e a pele rasgar-se enquanto enforcava a criatura. Senti o
sangue jorrar por debaixo de minhas mangas longas e me obriguei a concentrar
apenas no esforço que estava a fazer. O inimigo era muito forte. Eu tinha que
suportar a dor. Meus olhos ficaram apertados e meus dentes friccionavam
tentando empurrar uns aos outros. Segundo a segundo a criatura que eu estava a
subjugar estava perdendo forças e, enfim, seus últimos momentos de fôlego se
iniciaram e, aos poucos, deixei-a livre de minhas correntes.
Agora o que ecoava nos túneis esquecidos eram meus
esforços de recuperar o fôlego e os batimentos acelerados do meu coração.
Arrastei-me até o lado do cadáver e sentei-me enquanto enxugava o suor de meu
rosto e massageava minhas têmporas. Sem perceber que o sangue presente em
minhas mãos estava a inundar-me a face de tinta vermelha que escorria, junto
com lágrimas involuntárias.
Não sabia dizer se as
lágrimas eram de alívio passageiro ou de raiva contida. Mas elas continuavam a
escorrer e a salgar-me os olhos.
A imagem dos esgotos escuros iluminados pelo tom ígneo
das chamas mal distribuídas ficou turva e nem pude notar quando o cadáver se
moveu e laçou meu pescoço com seu braço franzino e pálido, cheio de cicatrizes
bizarras. Ele sustentou a manobra e arrastou-me para a escuridão.
“O desgraçado ainda
estava vivo”, foi o óbvio que imaginei de forma atrasada, quando o fôlego já
não me era mais uma opção.
Parecia óbvio o que eu tinha que fazer naquele momento. O
unguento oleoso depositado em frascos dentro de minha bata funcionava tal qual
a água benta funcionaria em um demônio. O garoto não deixava de ser um, agora. Mas
ao invés de agir imediatamente, contemplei as passagens cinzentas de minhas
lembranças. Aquelas que sempre acompanham qualquer mortal quando este encara a
morte.
Talvez a maior luta de um
exorcista é suportar essa contemplação da vida nos meados da morte. Lembrar-se
de como a vida foi tão indigna com você. Escolhendo-o a dedo entre tantos
fortuitos. Desafiando seu ego e sua moral até que você, e apenas você mesmo,
consiga encontrar alguma razão para manter-se vivo.
Minha
vítima agora gritava de dor. O fluido sagrado atingiu-lhe no rosto quando uma
das minhas mãos pôde alcançá-lo. Agora a única íris que me encarava era a de
órbita vermelha. A pele fervilhando e o desespero estampado no rosto e ecoado
nos gritos colaboraram para que a cena fosse digna de agonia e dó.
Enquanto ele se debruçava
como um verme no chão, pisei em suas costas e estendi as correntes em volta de
seu pescoço. A criatura cuspia e vomitava um sangue negro e espesso, mas, nem
todos aqueles ferimentos que a transformaram em uma sombra de retalhos seriam
capazes de enfraquece-la o suficiente.
“ Deem-me uma selvageria
cujo o vislumbre nenhuma civilização consegue suportar. ” – citei Thoreau.
A criatura acolheu meu pensamento.
“ E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais
solitária solidão e te dissesse... ” – a vítima agora estava dividida entre o
esperneio da sobrevivência e a loucura de seus pensamentos. Pouco a pouco cedia
aos encantos dos versos mortais de Nietzsche.
“ Esta vida, assim como tu a vives agora e como a viveste, terás de
vivê-la mais uma vez e ainda inúmeras vezes; e não haverá nela nada de novo,
cada dor, cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de
indizivelmente pequeno e de grande em tua vida há de retornar, e tudo na mesma
ordem e sequência ”
E ali, o fôlego de minha presa ficou, segundo após
segundo, mais fraco e lento. Acalentador. Quase não se podia ouvi-lo, pois, meu
fôlego de cansaço era o predominante.
Na segunda instância,
certifiquei-me que seu pescoço estava quebrado e que a vida havia finalmente se
esvaído definitivamente.
***
E agora eu retorno à angústia ainda pouco explorada da
garota do café.
O sorriso dela foi ainda
mais encantador quando me deixou a xícara. Tocou-me o ombro com dedos tão
pesados quanto uma pena e disse:
- Você está bem? –
Confrontou-me com ludíbrio, mas certamente não pôde diferenciar se eu estava
perdido em pensamentos ou em suas curvas.
Confirmei positivamente. Ali estava eu, usando o típico
acenar de cabeça que tantos se obrigavam a copiar nas ruas de Santa Helena.
Aquilo podia significar muita coisa.
Talvez eu não volte a falar sobre essa garota novamente
nesses retrospectos de lembranças e pensamentos. Pelo menos pelo tempo em que
eu puder evitar um de seus sorrisos. Ainda assim, café é minha bebida favorita.
***
“ Uma esmola para um
pobre cego ”
O mendigo em frente à
porta do café repetiu a mesma frase. A mesma que ele usava toda vez que
escutava alguém sair do lugar.
Bem, eu já havia lhe
entregue algumas pratas e até uma nota.
Mas como ele ia saber?
Afanei algum trocado que havia sobrado do meu desjejum e
depositei em sua mão calejada.
“ Deus lhe pague em dobro
“
Ele respondeu. E eu
caminhei de novo pelas estradas cinzentas de Santa Helena a procura de
lembranças.
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