terça-feira, 28 de julho de 2015

Prelúdio de dias cinzentos

Prelúdio de dias cinzentos


            As ruas de Santa Helena não mudaram tanto nos últimos vinte anos. Ainda continuam sendo uma miragem das estradas e becos cinzentos de décadas atrás, e essa eterna aparência é desencorajadora para um idiota nostálgico como eu. Coloco minhas luvas, visto minhas calças e meu casaco, alcanço meu guarda-chuva e piso no chão de pedras ainda molhadas da última neblina. A água a escorrer sutilmente para dentro dos bueiros nas encostas das calçadas. Meus passos carregam-me pelas vielas e acompanham o baque surdo da marcha dos transeuntes que mantêm os olhos fixos no movimento dos próprios pés. Um ou dois acenos de cabeça – é o que as pessoas dessa cidade acreditam que seja o mesmo que desejar um bom dia – e nada mais. Será mesmo que estou aqui?
Santa Helena é, antes de tudo, uma cidade de esquecimento.

            Meus pensamentos estão tão presentes nesse começo de dia que, apenas depois de alguns minutos de andanças aleatórias, lembro que minha intenção era chegar até um café. Esquentar minha garganta e talvez sanar minha consciência, mesmo que seja pelos segundos que deixo escapar no intervalo de cada gole, é tudo que eu preciso para reestruturar a minha sina de vida.

E então, o cinza das ruas e do horizonte urbano é manchado por um vermelho flutuante. Um garotinho acaba de recolher um balão a ele presenteado por um homem de aparência amistosa e que provavelmente é seu pai. O moleque, é claro, não tinha o hábito de agradecer, mas um sorriso provido de inocência e uma corrida saltitante enquanto contemplava seu frágil brinquedo, já era o suficiente para deixar o pai satisfeito. O garoto desfilava uma felicidade incompreendida pela vereda enquanto meus olhos reconstruíam uma lembrança preta e branca de minha infância.

Um par de enormes asas negras de um corvo rasgavam o ar e um aglomerado de pessoas boquiabertas tentavam alcançar sua plumagem em vão. A marionete constituída de finíssimas linhas de metal puxadas organizadamente pelos marionetistas que se escondiam dentro do carro de desfiles, erguiam e baixavam as asas projetando uma sombra tenebrosa sobre o boneco de cera pálido com cabelos bem penteados, um par de olhos profundos cercados de olheiras e uma vestimenta preta clássica. Poe.

            Aquele era “El día de los muertos”, um presente cultural ofertado pelos muitos antecedentes mexicanos que, um dia, vieram à Santa Helena para trabalhar nos extintos e vastos campos ao redor da cidade. A figura do corvo, assim como os demais veículos que apresentavam à plateia curiosa um mar de gatos pretos, o tic tac de pêndulos insistentes e a representação insana da entidade caótica criada por Lovecraft, não deixava restar dúvidas de que a celebração havia se tornado um tanto americanizada. Mas as máscaras macabras, as velas negras perfumadas e os esqueletos-humanos que se contorciam numa dança desajeitada ainda resgatavam o espírito original do dia dos mortos.

As pessoas se amontoavam para observar cada detalhe do desfile. Minha mão deslizou e abandonou a de meu pai e, naquele momento, eu senti medo. Não devido à solidão ou à falta de segurança que na hora eu tinha enquanto permanecia longe de meu protetor. Passei a infância me acostumando com a ausência dele e observando as crianças normais brincando nas ruas sempre cinzentas do outro lado de uma janela de vidro empoeirado. A única TV que eu tinha disponível. Mas sim por causa dos rostos de olhares apreensivos.

Mãos e dedos inquietos de pessoas que não queriam perder seu campo de visão que era insuficiente para assistir ao desfile de veículos macabros detalhadamente. Essas que tentavam me afogar no esquecimento. Será mesmo que eu estava ali?

 - Aqui filho. – Escutei a voz de meu pai.

            Logo depois deixei que um braço me puxasse e me erguesse. Ele me pôs em volta de seu pescoço e logo percebi que aquela era uma visão privilegiada para assistir ao desfile.

Um grupo de esqueletos cultivava na areia de cemitério as rosas de pétalas negras que, de alguma forma, eu sabia, deviam ser plantadas sobre os cadáveres para disfarçar o cheiro da morte. Aquelas rosas se chamavam amaranto, elas também serviam para drenar os últimos vestígios de lembranças maldosas de um falecido. De acordo com meu pai: elas evitavam a aparição de espectros.

- Este é o dia em que os mortos visitam os vivos, Fabrício. – revelou-me ele.

            Lembro-me que não discordei. Já havia lido isso em um punhado de livros empoeirados do meu quarto ou durante os longos momentos em que passeava pela biblioteca de Santa Helena. Tinha pouca idade, mas a inocência dificilmente me afetava. Sabia bem qual era o significado de mitologia ou de crenças populares. Deixei que meu pai se divertisse enquanto tentava me assustar com informações tão ilusórias.

- A maioria deles querem ser presenteados, é por isso que Santa Helena realiza esse festival e seus habitantes decoram suas casas com esses apetrechos macabros, para aqueles que andam sem a necessidade de pés não estranharem a mudança contraditória do ambiente.

            Continuou a explicar e, lá das alturas, tentava imaginar como os mortos atravessariam o véu que os impedia sair de seu lar mórbido e os permitia visitar seus parentes vivos apenas uma vez por ano. Não parecia ser tanto tempo de espera. Entre os vivos, há pessoas que esperam muito mais para se encontrarem. Há amores que demoram muito mais para se concretizar. De certa forma, portanto, a morte poderia ser mais do que um alívio apenas físico.

- Mas alguns, meu pequeno, vêm ao nosso mundo para presentear.

            Aquela sim era uma informação nova. É claro, talvez, que ele poderia estar inventando. Acrescentando algo original à antiga mitologia. Não me deixou de passar pela cabeça que, decididamente, afinal, era assim que as crenças populares se esticavam e tornavam-se parte da cultura: línguas afiadas e imaginações férteis.

- É preciso estar preparado para presentear os mortos, Fabrício. Mas é ainda mais importante estar preparado para ser presenteado por eles.

            Um veículo maior afastava a multidão curiosa para as bordas da rua onde ocorria o desfile. Uma sombra, tão escura quanto a noite, se estreitava em retalhos carregando uma foice esculpida em ossos tortuosos. Um crânio assombroso parecia flutuar em meio ao manto da representação da morte e seus olhos vazios pareciam olhar diretamente para mim.

“Não é seu pai quem está falando, Fabrício. Sou eu. ”

- Pois quando eles te presenteiam, exigem algo em troca. E mais ninguém é capaz de decidir qual será essa mercadoria, filho.

            Não me recordo se ficamos no desfile até o fim daquele dia. A cena em minhas lembranças repentinamente se desfaz e se reconstrói no momento em que me mantinha debruçado sobre o corpo dele, caído no chão da sala. Um policial segurava-me firmemente pelos ombros e afirmava:

“Vai ficar tudo bem, filho. ” – meu protetor, tão repentinamente, havia mudado.

Meu pai havia empurrado a mesa de centro e, junto com ela, um pequeno jarro com flores falecidas durante seu suposto derrame. Ele deveria ter se contorcido estranhamente calado por sinal, uma vez que, de meu quarto solitário, não ouvi um só pedido de socorro, ou sequer um ganido de dor.

Os médicos não souberam explicar o repentino derrame ocorrido em alguém relativamente jovem e de boa saúde, por isso, nunca puderam esclarecer-me sua morte. Mas eu sabia: ele havia sido ceifado.
Desde aquele dia, eu o odeio.

Odeio como quem sabe que ele poderia ter feito outra escolha. Como quem reconhecia ingenuamente que a voz da morte não o convenceria, independente do presente ofertado. Então, ele me deixou aqui, sob o flagelo de minhas visões cinzentas, padecendo aos poucos do conhecimento que atravessa os véus e temendo reconhecer mais das pessoas do que elas mesmas.

***
            Não preciso mais de lembranças, por enquanto. Dou um tempo para o moleque cansar-se de seu brinquedo e alcanço os pequenos três degraus da entrada da cafeteria quando me deparo com um par de olhos cinzentos, como uma nuvem carregada. A estranha bizarrice estende suas mãos sujas de unhas tortas e cercadas de sujeira em minha direção, prestes a dizer algo.

Não é preciso. Recolho uma nota e meia dúzia de moedas no bolso do meu casaco e as entrego diretamente na mão frágil do mendigo:

“ Deus lhe pague em dobro. “

Apresento-lhe um sorriso satisfeito e ensaiado. Como se ele pudesse vê-lo. E abro a porta da cafeteria.

            As luzes opacas não ajudam a colorir o ambiente cinzento que a cafeteria carrega. Um amontoado de mesas vazias implora por acolher um estômago vazio e em uma delas eu me sento.

A moça dos pedidos escreve delicadamente sobre um bloco de notas as exigências de um homem acima da idade com um jornal em mãos e olhar vazio. O mesmo que possivelmente se senta em frente ao balcão todos os dias e espera que ela o reconheça e lhe traga o mesmo pedido de sempre. Em poucos segundos, uma xícara funda e quente é colocada ao lado do fiel consumidor.

“Obrigado” – uma resposta rápida e pouco agradecida para o trabalho que ela tem a obrigação de exercer sem falhas, ele deve imaginar.

            Agora ela caminha até mim. Morena e despreocupadamente, com seu bloco de notas em mãos.

- A mesma coisa de sempre? – pergunta ela com um sorriso intocável na boca e um olhar que disfarça sua monotonia.

- Por favor – eu respondo educadamente, como ela havia previsto. Depois uma breve troca de olhares atípica das pessoas daquela região.

            Uma troca de olhares significa muita coisa. A solidão pode ser desdenhada pelo simples incitar alheio. Em um ambiente onde o cinza é capaz de transformar as pessoas, algumas buscam apenas moldar sua capacidade de provocar emoções. Então, ela se afasta com seu sorriso cálido e com metade da missão bem-sucedida. Não pude deixar de retribuir o sorriso pateticamente, deixando-me alvo claro de sua maestria em envolvimentos. Sabia, porém que, era ali, onde ela pretendia parar.

Quando seu expediente acabasse e ela pudesse voltar ao seu quarto escuro cheio de telas e desenhos pintados à mão própria – claramente uma mensagem de seu subconsciente implorando para que ela consiga expressar, de alguma forma, algo que lhe falta – seus pensamentos seriam anulados e inundados pela presença de um único. As boas e más lembranças compartilhadas com seu exigente ex-amante.

Ela ficaria a imaginar um final diferente ou um recomeço ideal onde ele abriria a porta de seu quarto e compensaria os minutos da última discussão com beijos sufocantes e uma explicação plausível do porquê ele tão custou a encontrá-la nas últimas semanas.

É claro que isso nunca iria acontecer.

Eu matei ele.

            Sim, faz parte do meu serviço fabricar corações abandonados, independente da forma ilícita que isso possa parecer soar. Lembro-me daquele garoto de cabelos despenteados com a camisa estampada dos Ramones. Uma mente ilusoriamente poética que mastigava as palavras e as emitia defendendo um ideal sem que ao menos ele mesmo soubesse se era o certo. Pessoas assim eram fortes em suas convicções, mas facilmente eram alcançadas pela voz que lhes preenchia os ouvidos com algo mais que a razão. E era assim que um bom revolucionário se tornava uma peça importante para aquilo que se arrasta no escuro: bons ouvidos que concordassem com qualquer besteira que ele tivesse disposto a compartilhar.

            E foi ironicamente acompanhado pela melodia de Highway to Hell de AC/DC, ecoando dos fones de ouvido de seu celular, que o garoto de causas nobres foi arrastado para as sombras aquela noite enquanto ele percorria as ruas escuras de Santa Helena sem nenhum aviso de perigo. A voz peculiar do frontman da banda de rock gritava o refrão enquanto uma mão fria cobria a boca do andarilho desavisado.

Medo. Ele tinha medo de morrer e, por isso, as lágrimas jorraram de seu rosto.

Eu estava lá, esperando pelo tempo certo que nunca chegou. Dispondo-me do crucifixo e da água benta que deveriam ter sido usados segundos antes de seu desaparecimento.

Porque eu não o fiz?

Daquele dia em diante, o garoto metido a diplomata irracional ocupou todas as lacunas de seu tempo arrastando corpos frescos pelas vielas da cidade cinzenta. Como um cachorro arrastava a carniça e a defendia de outros cães famintos. E ele, assim como os outros escravos de sangue, tinha consciência dos pecados que estava a cometer. Seus olhos logo se acostumaram com o escuro. Os olhos sempre se acostumam quando o sujeito é obrigado a conviver com a plenitude sombria.

Carregava baldes de água suja e trapos molhados que ele arrastava pelas ruas limpando o sangue de suas vítimas e cobrindo-lhe o rastro. Eu estive lá observando, esperando que alguma hora o rato me mostrasse onde estava o buraco que lhe servia de lar. 

            Certa noite, enquanto perseguido por uma trêmula luz de lanterna, o garoto, agora com a mente distorcida, foi obrigado a usar dentes e mãos para desfiar o cadáver de uma de suas vítimas afim de fazê-lo caber na passagem de um dos bueiros da cidade que eram constantemente regados pela água da chuva sempre presente nessas temporadas.

Debruçou-se ele mesmo no buraco e esperou impaciente a vigília noturna averiguar a situação. Um policial acima do peso, com um cassetete, uma pistola simples e uma lanterna a iluminar os caminhos sangrentos. O garoto esperou a aproximação do intrometido para dar o bote, caso esse percebesse seu rastro.

E o policial percebeu. Iluminou o bueiro e temeu a escuridão. Ignorou. No dia seguinte, ele mesmo diria aos companheiros que não havia percebido nada de estranho naquela região.
Essa atitude covarde, de alguma forma, me ajudou.

            A pérfida criatura, agora completamente entregue à escuridão, passou a usar o lugar como esconderijo secundário. Quando as noites avançavam e as mortes bem estudadas pareciam ficar mais frequentes, decidi agir.

            Aquela noite era fria, pois os espíritos costumam pressentir o valor das mortes, e sob aquela névoa cinzenta que impregnava tudo, desci o bueiro afim de surpreendê-lo. Como se pudesse farejar a criatura, andei pelos caminhos sujos e abarrotados de lama dos esgotos de Santa Helena e escutei a voz esganiçada de minha vítima a indagar os grandes pensadores.

“ Para cada mil homens dedicados a cortar as folhas do mal, há apenas um atacando raízes.”
Citação de Thoreau. Eu bem me recordava dos livros.

“ Todas as coisas boas foram noutro tempo más; todo o pecado original, veio a ser virtude original. ”
Nietzsche.

            Então me aproximei com cautela para vislumbrar o santuário sangrento da criatura e enxerguei as paredes escorrendo uma bíblia de pensamentos de sangue escritos a dedo por aquele garoto que um dia perdeu seu caminho no meio das estradas de Santa Helena e passou a seguir sua estrada para o inferno.

Risquei um de meus fósforos alquímicos na parede e a escuridão foi lancetada por faíscas luminosas de chamas. A criatura ali, então, me percebeu. Ganiu enraivecida. Depois olhou os arredores e viu seu livro de sangue escorrendo pelas paredes do esgoto. Frases de pensamentos coagulados. Ele sentiu vergonha e esse sentimento o fez sentir ainda mais raiva.

            Das longas mangas de minha batina negra – minha armadura de guerra contra o sobrenatural – desenrolou-se um par de correntes molhadas e se fixaram firmes ao meu punho.

Não precisei de fé.

Meus lábios balbuciaram as mesmas frases usuais para esse tipo de situação, o sermão em latim antigo encontrado nas escrituras sagradas. A criatura saltou sobre mim com boca, mãos e olhar sangrentos.

            O barulho ferroso das correntes na mandíbula da criatura ecoou pelos corredores sujos e sangrentos dos esgotos de Santa Helena. Ela rolou no chão como um animal que acabava de sair de dentro de uma fogueira. Cuspiu alguns dentes e me olhou com fúria intimidadora.

Eu sabia: a criatura agora era ódio em sangue e fome de carne. Ela não ia encerrar sua violência tão rápido. Nem eu iria encerrar minha caçada.

Saltou teimosamente contra mim e seus pés sujos criaram um rastro de excremento e sangue que ele estava acostumado a pisar ali, em seu novo habitat. Esquivou-se de meus punhos e agarrou-me pelo torso, erguendo meu corpo com facilidade e me jogando contra uma das paredes de frases sangrentas.
Minha batina manchou o dialeto escrito a sangue e o tornou impossível de ler. Tentei recuperar o fôlego, a pancada havia sido forte, mas meu inimigo me impediu de fazer isso, pois, como uma sombra súbita, arrastou-se até mim e agarrou-me pela garganta.

Pude ver seus olhos díspares. Um ainda negro, como assim o era quando ainda pensava como um humano, e o outro vermelho, como se uma cortina de sangue tivesse inundado a íris. Ele estava me analisando, procurando me reconhecer, tirando de algum lugar de sua memória a imagem de minha face e comparando se esta era semelhante à de alguém que ele já havia visto no mundo de cima.  

Talvez esse possa ter sido seu erro. Deus sabe o que ele pudera ter pensado naquela hora. Um monstro que recorda sua humanidade tende a ficar preso em pensamentos nostálgicos e isso é o terror deles.

Bem, isso acontece muito comigo.

            Juntei forças e o empurrei com as pernas. Os dois corpos caíram no chão. Ele havia escorregado em seus próprios rastros sujos. O barulho das correntes se desenrolando de meus pulsos se estendeu pelos túneis esquecidos e, dessa vez, me obriguei a ser mais veloz do que a criatura com a qual eu lutava, sendo que, a próxima reação de meu inimigo foi a notável falta de ar quando sentiu as correntes gotejantes cercarem-lhe o pescoço.

Senti as correntes apertarem meus pulsos e a pele rasgar-se enquanto enforcava a criatura. Senti o sangue jorrar por debaixo de minhas mangas longas e me obriguei a concentrar apenas no esforço que estava a fazer. O inimigo era muito forte. Eu tinha que suportar a dor. Meus olhos ficaram apertados e meus dentes friccionavam tentando empurrar uns aos outros. Segundo a segundo a criatura que eu estava a subjugar estava perdendo forças e, enfim, seus últimos momentos de fôlego se iniciaram e, aos poucos, deixei-a livre de minhas correntes.
           
            Agora o que ecoava nos túneis esquecidos eram meus esforços de recuperar o fôlego e os batimentos acelerados do meu coração. Arrastei-me até o lado do cadáver e sentei-me enquanto enxugava o suor de meu rosto e massageava minhas têmporas. Sem perceber que o sangue presente em minhas mãos estava a inundar-me a face de tinta vermelha que escorria, junto com lágrimas involuntárias.

Não sabia dizer se as lágrimas eram de alívio passageiro ou de raiva contida. Mas elas continuavam a escorrer e a salgar-me os olhos.

            A imagem dos esgotos escuros iluminados pelo tom ígneo das chamas mal distribuídas ficou turva e nem pude notar quando o cadáver se moveu e laçou meu pescoço com seu braço franzino e pálido, cheio de cicatrizes bizarras. Ele sustentou a manobra e arrastou-me para a escuridão.

“O desgraçado ainda estava vivo”, foi o óbvio que imaginei de forma atrasada, quando o fôlego já não me era mais uma opção.

            Parecia óbvio o que eu tinha que fazer naquele momento. O unguento oleoso depositado em frascos dentro de minha bata funcionava tal qual a água benta funcionaria em um demônio. O garoto não deixava de ser um, agora. Mas ao invés de agir imediatamente, contemplei as passagens cinzentas de minhas lembranças. Aquelas que sempre acompanham qualquer mortal quando este encara a morte.

Talvez a maior luta de um exorcista é suportar essa contemplação da vida nos meados da morte. Lembrar-se de como a vida foi tão indigna com você. Escolhendo-o a dedo entre tantos fortuitos. Desafiando seu ego e sua moral até que você, e apenas você mesmo, consiga encontrar alguma razão para manter-se vivo.

            Minha vítima agora gritava de dor. O fluido sagrado atingiu-lhe no rosto quando uma das minhas mãos pôde alcançá-lo. Agora a única íris que me encarava era a de órbita vermelha. A pele fervilhando e o desespero estampado no rosto e ecoado nos gritos colaboraram para que a cena fosse digna de agonia e dó.

Enquanto ele se debruçava como um verme no chão, pisei em suas costas e estendi as correntes em volta de seu pescoço. A criatura cuspia e vomitava um sangue negro e espesso, mas, nem todos aqueles ferimentos que a transformaram em uma sombra de retalhos seriam capazes de enfraquece-la o suficiente.

“ Deem-me uma selvageria cujo o vislumbre nenhuma civilização consegue suportar. ” – citei Thoreau.

A criatura acolheu meu pensamento.

“ E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse... ” – a vítima agora estava dividida entre o esperneio da sobrevivência e a loucura de seus pensamentos. Pouco a pouco cedia aos encantos dos versos mortais de Nietzsche.

“ Esta vida, assim como tu a vives agora e como a viveste, terás de vivê-la mais uma vez e ainda inúmeras vezes; e não haverá nela nada de novo, cada dor, cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indizivelmente pequeno e de grande em tua vida há de retornar, e tudo na mesma ordem e sequência ”

            E ali, o fôlego de minha presa ficou, segundo após segundo, mais fraco e lento. Acalentador. Quase não se podia ouvi-lo, pois, meu fôlego de cansaço era o predominante.

Na segunda instância, certifiquei-me que seu pescoço estava quebrado e que a vida havia finalmente se esvaído definitivamente.

***

            E agora eu retorno à angústia ainda pouco explorada da garota do café.

O sorriso dela foi ainda mais encantador quando me deixou a xícara. Tocou-me o ombro com dedos tão pesados quanto uma pena e disse:

- Você está bem? – Confrontou-me com ludíbrio, mas certamente não pôde diferenciar se eu estava perdido em pensamentos ou em suas curvas.

            Confirmei positivamente. Ali estava eu, usando o típico acenar de cabeça que tantos se obrigavam a copiar nas ruas de Santa Helena. Aquilo podia significar muita coisa.

            Talvez eu não volte a falar sobre essa garota novamente nesses retrospectos de lembranças e pensamentos. Pelo menos pelo tempo em que eu puder evitar um de seus sorrisos. Ainda assim, café é minha bebida favorita.

***

“ Uma esmola para um pobre cego ”

O mendigo em frente à porta do café repetiu a mesma frase. A mesma que ele usava toda vez que escutava alguém sair do lugar.

Bem, eu já havia lhe entregue algumas pratas e até uma nota.
Mas como ele ia saber?

            Afanei algum trocado que havia sobrado do meu desjejum e depositei em sua mão calejada.

“ Deus lhe pague em dobro “

Ele respondeu. E eu caminhei de novo pelas estradas cinzentas de Santa Helena a procura de lembranças.








Nenhum comentário: