Quatro
deuses olharam pra o céu de chuviscos flamejantes daquele mundo. Rochas
desabavam deixando rastros no céu noturno. Os povos, mortais em carne e
espírito, olhavam para um céu deslumbrante. Alguns cogitavam a possibilidade de
que o espetáculo fosse a ser um presente divino, outros praguejavam maldições,
como se aqueles corpos celestes estivessem a prenunciar a ruína de tudo.
- Despenca do céu, em nosso
mundo, os estigmas das eras passadas. Eles vêm de outrora, de um abismo. Eles
não caem, eles se erguem, exaltados em profanação. – revelou a primeira das
matriarcas em sua forma élfica provida de beleza eterna, sapiência infinita e
corpo esculpido na mais antiga das magias.
- Batei com a força de seus
punhos, com o auxílio de um martelo forjado em minhas fornalhas de fogo sempre
faminto, mas os profanos não se esmagarão, nem se romperão, eles não queimarão
ou gelarão. Não se deixam ser reduzidos a pó, nem seus corações podem ser
novamente moldados. – continuou o deus da forja, envolto por um manto de chamas
que lhe ocupava o lugar de uma barba ígnea, como a língua de um dragão.
- Trarão, estes, as oferendas
para o meu lago de morte gotejante. Almas que se arrastarão a nado na água fria
como meu toque, sem as peças de cobre para o meu barqueiro. Cravarão garras nas
planícies, montanhas, florestas, desertos e geleiras e de lá drenarão a
essência de tudo. – reuniu-se uma terceira voz, branda e fria como uma faca no
pescoço, pertencente a uma mulher de longos cabelos negros que pareciam
tecer-se como teias de aranha e inundar as sombras com o ébano impregnável de
sua presença.
- E parecerás perfeito para ti,
dama da morte, pois estas almas te servirão de alento para a sua eterna e
melancólica missão. – acrescentou a deusa dos elfos e seus olhos abandonavam a
cor púrpura e transformavam-se em castanhos, como uma noz que, em algum lugar
dos jardins místicos, brotava tal qual qualquer vida sem aparente importância.
- Engana-te, senhora dos elfos e
detentora dos véus da magia, porque meu alento, ainda que saciado por uma longa
temporada, também tomará um fim. Pois da consciência daqueles que habitavam o
abismo, o toque profano manterá o espírito atormentado na carne dos famintos.
Haverá a falsa imortalidade e haverá o desrespeito para com as tradições do
leito da morte.
- Pois erga sua lâmina de muitas
luas, sombra da eterna desesperança, pois com ela qualquer caído sucumbirá, se
és, assim, dona da morte. Mas não és. Não de toda forma. Assim como para mim,
criador das armas banhadas de essência, seus poderes se limitam a estes seres
e, tudo que lhe resta é ajudar de nenhuma forma, já que para mim ou qualquer um
de nós não se haverá rompimento do primórdio de todas as energias.
- Falas por si mesmo, Hefasto,
imperador do fogo eterno, pois minhas escolhas foram validadas e meu corpo, em
essência, percorrerá um caminho de pouca luz até meus seguidores. Cederei não
somente uma parte, mas a mim mesmo como vítima, na esperança de que usufruam de
minhas máculas. – apresentou-se, enfim, aquele no qual todos já haviam
imaginado a derradeira atitude, mas julgavam-no tão racional que, ainda assim,
as dúvidas repercutiram em suas mentes divinas.
- Depositarás esperanças nas
raças mortais, especialmente na tua predileta. Logo tu, a lâmina de eterna luz,
oh Splendor, logo tu que não és sequer criador de algo. E isso é certo, pois
assim sei que quem moldaste a carne, mente e espírito de seus servos não foram
suas próprias mãos, mas sim, as daquele que, um dia, carregou a essência que
agora tens em posse. Ainda não entende nada de seus súditos, nem sobre a
mesquinharia, egoísmo e ambição que estes possuem. Lancetarão suas razões de
forma inevitável. Haverá sangue e morte somados ao seu arrependimento, senhor
da justiça. – adicionou de forma calculista e muito significativa a dama dos
lordes élficos.
- Pois que suas palavras sejam
apenas meias verdades a serem conjugadas, minha senhora, porque delas, sei que
de todas as afirmações não poderei discordar, mas que, mesmo assim, em algum
ponto, mergulhado na sua pouca incerteza, posso valer-me de alguma esperança.
E
assim Splendor fez. Porque não só da justiça era dotado seu estigma divino, mas
também do heroísmo e, nada seria mais digno de sua postura do que arriscar sua
essência primordial neste propósito, assim como um guerreiro de espada e escudo
arriscaria sua vida ao atravessar uma floresta de sombras tortuosas em busca
das ruínas esquecidas de um dragão que emana o hálito da morte. Mesmo sem saber
se encontraria a vitória merecida ou a derrota inevitável.
De
seu corpo e vontade foram forjadas as luzes eternas, como lágrimas cristalinas
sendo banhadas pelos raios luminosos de um céu de halos sagrados. Uma dezena de
heróis as empunharam, como uma lâmina que rasgava as sombras, ou uma armadura
que se desenrolava feito um manto purificador, ou ainda como um sopro sutil que
guiava os justiceiros até as mortalhas que precisavam ser detidas.
Todos
falharam.
A
silhueta exaurida de Splendor provocou desalento aos demais deuses primórdios.
Mesmo Veronicca, a dama da morte, lamentou que a esperança do cavaleiro da
cruz-espada houvesse se esvaído.
Mas
seu sofrimento ainda não havia acabado, assim como suas esperanças, pois foi em
um círculo de mármore incrustado com runas celestiais e cercado de um nebuloso
mar de santidade que doze figuras, uma vez consideradas utópicas, dispunham de
suas formas humanoides, coroadas por um halo de glória e preenchidos com o
resquício da essência do deus herói, juraram suas vidas.
- Aqui, nós, os doze, moldados de
carne e luz, somos os juramentados do deus que, uma vez existiu e pisou em
terra firme, na terra maculada pelos mortais, na terra que agora cairemos como
santos e praticaremos nosso ofício eterno, mesmo sob o perjúrio inevitável,
mesmo sob a morte certa, somos um, portadores do último vestígio de luz
celestial, dispostos a carregar o sofrimento da existência e de sucumbir a ela,
se não contornável. Aqui, doze portarão a primeira e derradeira esperança afim
de tornarmo-nos mártires consagrados.
E
eles saltaram. Não como alguém que evita um obstáculo ou despenca de um
desfiladeiro, mas como um espírito glorioso, imerso em luz. Seus espectros se
arrastaram como uma nuvem de pó de estrelas douradas e, assim como em seus
juramentos, seus pés encontraram o solo da terra maculada. Alguns sentiram a
grama rala roçar-lhes os pés, outros sentiram a repentina resposta de um vento
furioso do alto das montanhas, houve aquele que mergulhou em mares de gelo ou outro
que sentiu o calor das dunas desérticas. Finalmente, existiu um na qual os cânticos
sagrados inundaram os ouvidos até que seus olhos se abrissem e ele notar-se sob
uma luz fraca, banhando as silhuetas humanas estupefatas a darem boas-vindas à
sua presença.
- Levanta-te Matthael, pois aqui,
no Templo dos Anjos de Pedra, estás em segurança. E não discordes da boa
vontade desses humanos que o cercam, porque seus corpos e mentes estão cansados
de oração e suas dádivas esvaecidas para que assim pudéssemos trazê-lo até
nossa igreja.
E
nu, sem pecado ou constrangimento, ergueu-se observando curioso os estranhos
seres de pouca luz, e se viu nos espelhos de cristais que contornavam a câmara
formada de colunas e pilastras bem manufaturadas, com símbolos e ornamentos
angélicos. Ele tinha uma forma, como a dos humanos, talvez a de alguém conhecido
naquele mundo.
Matthael
não tinha a pele alva, cada centímetro de sua vestimenta humana era moreno, tão
mais escuro do que a cor daqueles que ali o admiravam. Também não tinha um
corpo similar aos destes. Tinha peitos e costas largas, braços e pernas fortes
e um rosto quadrado de mandíbula firme e masculina. Seus olhos eram,
provavelmente, a única coisa que ele acreditava não estarem disfarçados de
mortalidade. Eram de um dourado luminoso, como se tivessem a capacidade de
espelhar o sol durante um alvorecer.
- Aqui encontro-me e em minha
consciência apenas um juramento me vem à lembrança. Algo que não posso pensar
em me desvencilhar.
- Pois este juramento nós
conhecemos, mártir consagrado. Sou Steins, o encarregado de proferir a ti as
primeiras palavras e a dar ouvidos aos seus primeiros pedidos. Trago-te
explicações e metas a seguir, se assim em mim e aos súditos dessa religião,
confiares.
E
com o assentimento de um breve aceno de cabeça, lhe cobriram o corpo e encheram
seus ouvidos de acontecimentos durante uma quantidade apressada de dias.
- Apressa-te porque és o último
dos convocados a pisar na terra efêmera. Os demais, que são um contigo, aqui já
vieram a agir e seus caminhos são tortuosos, perdidos nos vales das terras
escuras. – adiantou-se Steins que, naqueles últimos dias, foi presença corrente.
- Então, tenho que encontrar-me
com todos e eliminar o mal das terras cinzentas, as tais estrelas do abismo.
Pergunto-me como poderei fazer isso a não ser com o auxílio de pura força de
vontade e insistência, pois busca-los nos lugares mais remotos me parece uma
missão duradoura, agora que apenas conto com esses pés falhos.
- Mas caminharás na direção certa, Matthael,
porque a ti, o último dos despertos, será ofertada aquela que um dia foi
forjada nos poços infinitos de Hefasto, como um presente do deus armeiro para o
deus da cruz-espada – dito isso, desembrulhou de um longo pano de veludo
avermelhado uma lâmina tão brilhante que sua luz se propagou viva e preencheu
cada lacuna que antes era a morada das sombras mais tímidas – e a esta chamamos
de Amil Gaul, pois é assim que os celestes escreveram seu nome nos monólitos do
Templo dos Anjos de Pedra, e significa “a última esperança”. Ela está ligada a
ti assim como a seus irmãos e conseguirá leva-lo ao encontro destes, seja qual
for a distância, plano ou intempérie.
Matthael
tomou o artefato em mãos e o halo de energia cercou-lhe a cabeça com
luminescência sagrada. O punho lhe comportava completamente, como se a espada,
a gerações, implorasse para ser finalmente utilizada.
- Que seja este o primeiro dia de
minhas andanças e que Amil Gaul guie-me pelos caminhos que meus irmãos traçaram.
Tende a mim a missão concedida-me por natureza.
E
o destino do mártir consagrado e dos últimos vestígios de Splendor deu-se
início. Mas ele não iria compartilhar as desventuras apenas com sua própria
vontade, pois, ainda longe dali, num deserto de gelo cortante, o manto da
rainha da morte arrastava-se em direção as cavernas profundas construídas pelos
espectros de gelo.
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