segunda-feira, 10 de março de 2014

Ankhashadalûr - Pesadelos encharcados de sangue - Parte 01

Primeiro vem uma fraca luz pálida, branda, algumas vezes regada de repentinas lágrimas que teimam em desacreditar no infortúnio. Depois, qualquer vestígio de visão escurece, vagarosamente engolindo todo vislumbre como um buraco negro. Na verdade, minhas vítimas nunca vêem realmente o vermelho de seu sangue antes de se convencerem que estão mortas (e a maioria se convence rápido demais).

Não. A cor vermelha está reservada para aqueles que ficam. Ela é o suspiro de vitória dos inimigos e a derrota amarga dos aliados. Porém, nem a vítima, nem seus espectadores vêem o que eu sou capaz de enxergar. A alma esvair-se do corpo é uma das cenas mais lamentosas de meu ofício, mas, contraditoriamente a mais esperada.

…e aquela era somente a vigésima segunda vítima na qual eu arrastava a alma para as sombras onde ela seria julgada.

Sim, existem várias formas de mim mesmo. Tento ser otimista com o fato de eu não ser única, embora eu e minhas comparsas raramente nos encontremos. Do rio gelado onde eu nasci saíram as mesmas mãos pálidas, o mesmo olhar apático e o mesmo manto de nuvens espectrais que me denominam, cada uma com a capacidade mórbida de farejar a morte.

…e esse cheiro de morte impregnava os arredores de Ankhashadalûr desde épocas incontáveis. Uma parede de corpos sacrificados pelos oráculos de Kaz, o deus da matança, cobria o terreno selvagem de Chattur’gah com moscas, podridão e terror. Meus irmãos (se assim posso chamá-los) varriam as almas de Ankhashadalûr como um pescador num dia de pesca farta. Eu tinha a pretensão de encontrar um deles aqui, mas eles preferiram se ausentar e, mais espertos foram eles, pois não assistiram a chuva de sangue e tragédia provocada pela briga entre heróis e vilões.

Já me haviam falado sobre a Legião de Azran, aquela criada com o intuito de deter o esperado fim do mundo e temo dizer que esse augúrio possa ser verdadeiro (levando em conta as inúmeras almas que venho carregando nos últimos dias). As histórias contam de heróis escolhidos pelo destino, de mapas e constelações que confirmam, através de estudos complicados e magia, que cada membro da Legião carrega um propósito digno, muitas vezes incapaz de ser notado por um indivíduo sem a mínima noção do que eles representam.

Mas eles também se esvaem, como poeira levada pelo vento.

A verdadeira morte não escolhe títulos. Ela é imparcial.
Parece ser injusta pra aqueles que ela toca, mas não é.
Todos irão encarar ela. Todos estão sujeitos à sua vontade.
Ela não escuta. Ela predomina.

As gotas de sangue flutuavam presas no vácuo provocado pela chuva de raios disparados dos mênires. Enquanto os bárbaros de dentes serrilhados e mandíbulas saltadas cortavam a carne e os tendões de suas vítimas, seus líderes espirituais convocavam a força da natureza, incapaz de distinguir herói de vilão.

Nem a espada bastarda em riste e o escudo de metal bem polido interviram que a carne do guerreiro rompe-se e o sangue jorrasse em gotas que se evaporavam com o calor produzido pelo relâmpago.
O guerreiro procurou apoio numa árvore enquanto percebia a visão ficar turva. Seus ouvidos, porém, funcionavam perfeitamente, engolindo o eco dos gritos sofríveis de aliados e inimigos, seu corpo não possuía mais forças e ele sentia os joelhos arquejarem num movimento involuntário e o sangue quente subir-lhe a garganta. A sua frente, ele ainda podia notar o meio-gigante ceder ao estardalhaço trovejante dos raios, mas não adiantava tentar ajudá-lo.

Nessas horas eu imagino como o tempo passa devagar.
A vítima se sente tão lenta e imersa à vontade do destino
 que seu maior propósito é não deixar-se convencer
de que a melhor escolha seria abandonar
seu último vestígio de vida.

… e, então, uma segunda rajada de relâmpagos toma a espada do guerreiro e se aprofunda na armadura juntando a pele queimada ao metal retorcido uma última vez. Aquela era a segunda vítima dos bárbaros de Ankashadalûr. Dois escolhidos jaziam mortos no campo e batalha, contrariando o destino heroico escrito nas estrelas.
Hora de praticar o meu ofício.

 Azhanty buscou uma flecha em sua aljava e a enterrou no pescoço de um dos escravos. Tomados pela tirania de Kaz e com as mentes condicionadas pelos oráculos, os escravos de Ankhashadalûr não possuíam outra vontade a não ser a morte de seus inimigos e a própria.

Os xamãs invocaram dúzias de aranhas monstruosas, tão grandes quanto um mastim de guerra. Raphael procurava uma forma de movimentar-se livremente, mas por onde passava, via os três pares de olhos avermelhados das criaturas octópodes. Sentiu o sangue esverdeado espirrar em seu rosto quando uma de suas espadas curtas atingiu os olhos concentrados de uma das criaturas. Passado o tempo de um piscar de olhos, ele contra-atacava outra aranha que descia das árvores salivando veneno.
Ragnar deteve parte dos relâmpagos responsáveis por encharcar de sangue a luta e um trio de bárbaros furiosos com machados gigantescos em mãos.

- Malditos magos elfos! Se vocês sabem mesmo fazer alguma magia, acabem com isso logo de uma vez! – reclamou enquanto seu escudo de metal ganhava mais uma fenda e seu machado de guerra anão encontrava o pescoço de um dos bárbaros de dentes serrilhados.

Havia dois elfos naquele grupo da Legião, ambos distintos do padrão da raça, mas mesmo assim hábeis conjuradores de magia. Khael e Aramyl tinham suas desavenças, enxergavam a magia de forma diferente, mas naquela luta eles precisavam se concentrar. Quando Ragnar foi obrigado a se afastar dos bárbaros, ambos balbuciaram seus complementos arcanos e em meio a gestos incomuns a magia sutil transformou-se numa explosão de cores distorcidas acertando os inimigos e os eliminando da luta.

   Asen brandia seu escudo que trazia o símbolo da cruz-espada de Splendor, o líder do panteão. Sua espada agora era um objeto secundário. O paladino tentava de alguma forma proteger os corpos de Karsh e Ax pois era notável que ambos ainda estavam vivos. Os bárbaros encheram a boca de um líquido fétido quase mastigável e, enfim, cuspiram chamas ardentes contra o defensor. Asen notou as bordas do escudo se retorcerem enquanto uma queimadura lentamente se formava em seu braço.

O contra-ataque só veio quando Meyowth, o felino, disparou uma sequência de estocadas ardilosas focando o pescoço e estômago de suas vítimas. Meyowth era um indivíduo esguio e difícil de ser atingido, sua agilidade permitia aproveitar-se de um deslocamento fortuito.

Absalon não era exatamente um combatente espirituoso, seu palco eram as tavernas e os ouvintes assíduos de suas apresentações, mas em Ankhashadalûr ele erguia alto um escudo de porte grande e redondo, defendia-se muito mais do que atacava e considerava-se sortudo por não ter tido o mesmo fim de alguns aliados. Esperou o inimigo descuidar-se e enfiou a ponta de seu sabre na garganta alheia, atravessando e cortando a traqueia com certa facilidade.

Raphael pôs um fim a todas as aranhas monstruosas e cravava sua espada curta no pescoço de um escravo enquanto Azhanty aguçava sua mira e disparava certeiramente contra um dos xamãs. O estardalhaço contínuo e perigoso das rajadas elétricas finalmente chegou a um fim, mas aquela seria apenas metade da luta.

Aqueles mortais teimosos não tinham tempo para notar,
mas estavam nadando em sangue e tripas.
Foiceei trinta e oito almas até aquele momento e,
quanto mais encarava o rosto de cada um dos heróis
mais tinha a certeza de que aquela matança
nunca chegaria a um fim.

Ragnar partiu o crânio de um último bárbaro e finalmente pôde tomar fôlego. Seu corpo debruçou-se sobre um monte de corpos e ele permitiu naquele momento que o peso de seu machado vencesse. Foi um suspiro aliviado de um guerreiro que já havia participado de inúmeras matanças e que sempre estava disposto a erguer seu machado contra as ameaças que ele julgava dignas de serem interrompidas, mas, naquele momento, ele só queria que tudo acabasse. Enxugou o misto de suor e sangue em seu rosto, livrou um riacho vermelho de sua barba e reparou na disposição igualmente exausta de seus companheiros.

Corpos sangravam no chão. Os heróis pisavam em carne humana que logo iria se decompor. Não havia mais inimigos por perto, mas ao longe eles já podiam ouvir os gritos aterrorizantes de mais uma leva de escravos sedentos pela morte. Asen erguia os corpos de Karsh e Ax e, no pouco tempo que os inimigos lhes disponibilizaram, estabilizaram seus ferimentos a fim de erguer a espada larga e o machado grande mais uma vez.

- Não vai dar tempo. Está vindo pelo menos mais uma dezena desses malditos! – reclamou Meyowth enquanto o grupo se reagrupava.

Eram nove membros da Legião.
Definitivamente, nove não é um número muito expressivo.

Raphael adiantou-se do grupo, abaixou-se e tocou o solo fértil encharcado de espuma sangrenta, fechou os olhos e, naquele momento era ele e a natureza. O vento tornou-se mais brando e, por um mínimo de tempo os heróis puderam sentir a calmaria que veio antes da terra sob os pés dos escravos, que avançavam insolentes contra os heróis, se abrir e uma vegetação rasteira engolir pés e braços impedindo a movimentação livre dos atacantes.

- Temos mais do que isso. – alertou Khael tirando de seus pertences um pergaminho de couro  enrolado e o entregando a Absalon – você é mais capaz de fazer isso sem se arriscar, replicante.

O bardo assentiu com a cabeça e abandonou o grupo assim como um vento passageiro faria. Seus pés eram como um sopro repentino e seu deslocamento aumentou drasticamente.

Azanthy buscou o último presente ofertado por Kassandra em Asaron, sua última flecha-granada. Estendeu ela riste ao polegar e o ponto central do ângulo semi-circular do arco, retesou a corda o máximo que pôde, fechou um dos olhos e direcionou a ponta da flecha contra a quantidade massiva de inimigos que deveriam ser abatidos. Fez isso com uma calma inquietadora, como se naqueles poucos segundos além de mirar nos inimigos ele também pudesse prever o movimento do vento e da flecha.

Quando a flecha atingiu um dos escravos, cravando certeiramente em um de seus olhos, explodiu num ardor de chamas vislumbrantes e incendiou a carne dos escravos presos na armadilha da natureza. Eles gritaram de agonia enquanto as chamas devoravam cada centímetro de pele e ofegaram por tempo o bastante antes que Absalon abrisse o pergaminho ofertado e desvendasse a magia contida nele.

O pergaminho tornou-se cinzas e as cinzas caíram sobre os inimigos restantes como um véu de chamas. Não havia mais inimigos no meio do caminho, apenas o trio de oráculos. Eles não pretendiam esperar mais.

***


Nenhum comentário: