Primeiro
vem uma fraca luz pálida, branda, algumas vezes regada de repentinas lágrimas
que teimam em desacreditar no infortúnio. Depois, qualquer vestígio de visão
escurece, vagarosamente engolindo todo vislumbre como um buraco negro. Na
verdade, minhas vítimas nunca vêem realmente o vermelho de seu sangue antes de
se convencerem que estão mortas (e a maioria se convence rápido demais).
Não.
A cor vermelha está reservada para aqueles que ficam. Ela é o suspiro de
vitória dos inimigos e a derrota amarga dos aliados. Porém, nem a vítima, nem
seus espectadores vêem o que eu sou capaz de enxergar. A alma esvair-se do
corpo é uma das cenas mais lamentosas de meu ofício, mas, contraditoriamente a
mais esperada.
…e
aquela era somente a vigésima segunda vítima na qual eu arrastava a alma para
as sombras onde ela seria julgada.
Sim,
existem várias formas de mim mesmo. Tento ser otimista com o fato de eu não ser
única, embora eu e minhas comparsas raramente nos encontremos. Do rio gelado
onde eu nasci saíram as mesmas mãos pálidas, o mesmo olhar apático e o mesmo
manto de nuvens espectrais que me denominam, cada uma com a capacidade mórbida
de farejar a morte.
…e
esse cheiro de morte impregnava os arredores de Ankhashadalûr desde épocas
incontáveis. Uma parede de corpos sacrificados pelos oráculos de Kaz, o deus da
matança, cobria o terreno selvagem de Chattur’gah com moscas, podridão e
terror. Meus irmãos (se assim posso chamá-los) varriam as almas de
Ankhashadalûr como um pescador num dia de pesca farta. Eu tinha a pretensão de
encontrar um deles aqui, mas eles preferiram se ausentar e, mais espertos foram
eles, pois não assistiram a chuva de sangue e tragédia provocada pela briga
entre heróis e vilões.
Já
me haviam falado sobre a Legião de Azran, aquela criada com o intuito de deter
o esperado fim do mundo e temo dizer que esse augúrio possa ser verdadeiro
(levando em conta as inúmeras almas que venho carregando nos últimos dias). As
histórias contam de heróis escolhidos pelo destino, de mapas e constelações que
confirmam, através de estudos complicados e magia, que cada membro da Legião
carrega um propósito digno, muitas vezes incapaz de ser notado por um indivíduo
sem a mínima noção do que eles representam.
Mas
eles também se esvaem, como poeira levada pelo vento.
A
verdadeira morte não escolhe títulos. Ela é imparcial.
Parece ser injusta pra aqueles que ela toca, mas não é.
Todos irão encarar ela. Todos estão sujeitos à sua vontade.
Ela não escuta. Ela predomina.
Parece ser injusta pra aqueles que ela toca, mas não é.
Todos irão encarar ela. Todos estão sujeitos à sua vontade.
Ela não escuta. Ela predomina.
As gotas de sangue flutuavam
presas no vácuo provocado pela chuva de raios disparados dos mênires. Enquanto
os bárbaros de dentes serrilhados e mandíbulas saltadas cortavam a carne e os tendões
de suas vítimas, seus líderes espirituais convocavam a força da natureza,
incapaz de distinguir herói de vilão.
Nem a espada bastarda em riste e
o escudo de metal bem polido interviram que a carne do guerreiro rompe-se e o
sangue jorrasse em gotas que se evaporavam com o calor produzido pelo
relâmpago.
O guerreiro procurou apoio numa
árvore enquanto percebia a visão ficar turva. Seus ouvidos, porém, funcionavam
perfeitamente, engolindo o eco dos gritos sofríveis de aliados e inimigos, seu
corpo não possuía mais forças e ele sentia os joelhos arquejarem num movimento
involuntário e o sangue quente subir-lhe a garganta. A sua frente, ele ainda
podia notar o meio-gigante ceder ao estardalhaço trovejante dos raios, mas não
adiantava tentar ajudá-lo.
Nessas
horas eu imagino como o tempo passa devagar.
A vítima se sente tão lenta e imersa à vontade do destino
que seu maior propósito é não deixar-se convencer
de que a melhor escolha seria abandonar
seu último vestígio de vida.
A vítima se sente tão lenta e imersa à vontade do destino
que seu maior propósito é não deixar-se convencer
de que a melhor escolha seria abandonar
seu último vestígio de vida.
… e, então, uma segunda rajada de
relâmpagos toma a espada do guerreiro e se aprofunda na armadura juntando a
pele queimada ao metal retorcido uma última vez. Aquela era a segunda vítima
dos bárbaros de Ankashadalûr. Dois escolhidos jaziam mortos no campo e batalha,
contrariando o destino heroico escrito nas estrelas.
Hora
de praticar o meu ofício.
Azhanty
buscou uma flecha em sua aljava e a enterrou no pescoço de um dos escravos.
Tomados pela tirania de Kaz e com as mentes condicionadas pelos oráculos, os
escravos de Ankhashadalûr não possuíam outra vontade a não ser a morte de seus
inimigos e a própria.
Os xamãs invocaram dúzias de
aranhas monstruosas, tão grandes quanto um mastim de guerra. Raphael procurava
uma forma de movimentar-se livremente, mas por onde passava, via os três pares
de olhos avermelhados das criaturas octópodes. Sentiu o sangue esverdeado
espirrar em seu rosto quando uma de suas espadas curtas atingiu os olhos concentrados
de uma das criaturas. Passado o tempo de um piscar de olhos, ele contra-atacava
outra aranha que descia das árvores salivando veneno.
Ragnar deteve parte dos relâmpagos
responsáveis por encharcar de sangue a luta e um trio de bárbaros furiosos com
machados gigantescos em mãos.
- Malditos magos elfos! Se vocês
sabem mesmo fazer alguma magia, acabem com isso logo de uma vez! – reclamou enquanto
seu escudo de metal ganhava mais uma fenda e seu machado de guerra anão
encontrava o pescoço de um dos bárbaros de dentes serrilhados.
Havia dois elfos naquele grupo da
Legião, ambos distintos do padrão da raça, mas mesmo assim hábeis conjuradores
de magia. Khael e Aramyl tinham suas desavenças, enxergavam a magia de forma
diferente, mas naquela luta eles precisavam se concentrar. Quando Ragnar foi
obrigado a se afastar dos bárbaros, ambos balbuciaram seus complementos arcanos
e em meio a gestos incomuns a magia sutil transformou-se numa explosão de cores
distorcidas acertando os inimigos e os eliminando da luta.
Asen brandia seu escudo que trazia o símbolo
da cruz-espada de Splendor, o líder do panteão. Sua espada agora era um objeto
secundário. O paladino tentava de alguma forma proteger os corpos de Karsh e Ax
pois era notável que ambos ainda estavam vivos. Os bárbaros encheram a boca de
um líquido fétido quase mastigável e, enfim, cuspiram chamas ardentes contra o
defensor. Asen notou as bordas do escudo se retorcerem enquanto uma
queimadura lentamente se formava em seu braço.
O contra-ataque só veio quando
Meyowth, o felino, disparou uma sequência de estocadas ardilosas focando o
pescoço e estômago de suas vítimas. Meyowth era um indivíduo esguio e difícil
de ser atingido, sua agilidade permitia aproveitar-se de um deslocamento
fortuito.
Absalon não era exatamente um
combatente espirituoso, seu palco eram as tavernas e os ouvintes assíduos de
suas apresentações, mas em Ankhashadalûr ele erguia alto um escudo de porte
grande e redondo, defendia-se muito mais do que atacava e considerava-se
sortudo por não ter tido o mesmo fim de alguns aliados. Esperou o inimigo
descuidar-se e enfiou a ponta de seu sabre na garganta alheia, atravessando e
cortando a traqueia com certa facilidade.
Raphael pôs um fim a todas as
aranhas monstruosas e cravava sua espada curta no pescoço de um escravo
enquanto Azhanty aguçava sua mira e disparava certeiramente contra um dos
xamãs. O estardalhaço contínuo e perigoso das rajadas elétricas finalmente chegou
a um fim, mas aquela seria apenas metade da luta.
Aqueles
mortais teimosos não tinham tempo para notar,
mas estavam nadando em sangue e tripas.
Foiceei trinta e oito almas até aquele momento e,
quanto mais encarava o rosto de cada um dos heróis
mais tinha a certeza de que aquela matança
nunca chegaria a um fim.
mas estavam nadando em sangue e tripas.
Foiceei trinta e oito almas até aquele momento e,
quanto mais encarava o rosto de cada um dos heróis
mais tinha a certeza de que aquela matança
nunca chegaria a um fim.
Ragnar partiu o crânio de um
último bárbaro e finalmente pôde tomar fôlego. Seu corpo debruçou-se sobre um
monte de corpos e ele permitiu naquele momento que o peso de seu machado
vencesse. Foi um suspiro aliviado de um guerreiro que já havia participado de
inúmeras matanças e que sempre estava disposto a erguer seu machado contra as
ameaças que ele julgava dignas de serem interrompidas, mas, naquele momento,
ele só queria que tudo acabasse. Enxugou o misto de suor e sangue em seu rosto,
livrou um riacho vermelho de sua barba e reparou na disposição igualmente
exausta de seus companheiros.
Corpos sangravam no chão. Os
heróis pisavam em carne humana que logo iria se decompor. Não havia mais
inimigos por perto, mas ao longe eles já podiam ouvir os gritos aterrorizantes
de mais uma leva de escravos sedentos pela morte. Asen erguia os corpos de
Karsh e Ax e, no pouco tempo que os inimigos lhes disponibilizaram,
estabilizaram seus ferimentos a fim de erguer a espada larga e o machado grande
mais uma vez.
- Não vai dar tempo. Está vindo pelo
menos mais uma dezena desses malditos! – reclamou Meyowth enquanto o grupo se
reagrupava.
Eram
nove membros da Legião.
Definitivamente, nove não é um número muito expressivo.
Definitivamente, nove não é um número muito expressivo.
Raphael adiantou-se do grupo,
abaixou-se e tocou o solo fértil encharcado de espuma sangrenta, fechou os
olhos e, naquele momento era ele e a natureza. O vento tornou-se mais brando e,
por um mínimo de tempo os heróis puderam sentir a calmaria que veio antes da
terra sob os pés dos escravos, que avançavam insolentes contra os heróis, se abrir e uma vegetação rasteira engolir pés e braços impedindo a movimentação livre dos atacantes.
- Temos mais do que isso. –
alertou Khael tirando de seus pertences um pergaminho de couro enrolado e o entregando a Absalon – você é
mais capaz de fazer isso sem se arriscar, replicante.
O bardo assentiu com a cabeça e
abandonou o grupo assim como um vento passageiro faria. Seus pés eram como um
sopro repentino e seu deslocamento aumentou drasticamente.
Azanthy buscou o último presente
ofertado por Kassandra em Asaron, sua última flecha-granada. Estendeu ela riste
ao polegar e o ponto central do ângulo semi-circular do arco, retesou a corda o
máximo que pôde, fechou um dos olhos e direcionou a ponta da flecha contra a
quantidade massiva de inimigos que deveriam ser abatidos. Fez isso com uma
calma inquietadora, como se naqueles poucos segundos além de mirar nos inimigos
ele também pudesse prever o movimento do vento e da flecha.
Quando a flecha atingiu um dos
escravos, cravando certeiramente em um de seus olhos, explodiu num ardor de
chamas vislumbrantes e incendiou a carne dos escravos presos na armadilha da
natureza. Eles gritaram de agonia enquanto as chamas devoravam cada centímetro
de pele e ofegaram por tempo o bastante antes que Absalon abrisse o pergaminho
ofertado e desvendasse a magia contida nele.
O pergaminho tornou-se cinzas e
as cinzas caíram sobre os inimigos restantes como um véu de chamas. Não havia
mais inimigos no meio do caminho, apenas o trio de oráculos. Eles não
pretendiam esperar mais.
***
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