Feng vigiava as costas da
carruagem. Logo de manhã ele havia previsto que iria chover mais tarde, mas com
o cair da noite, os pingos inocentes de chuva viraram cascatas violentas. Era
uma tempestade, em plena escuridão, nos arredores de Asura, onde dificilmente
chovia tanto, porém, naquele momento, o cair da tempestade não impressionava o
velho samurai – sabia que o destino faria de tudo para que aquele nascimento
não se realizasse. Ele olhou para o interior da carruagem coberta e protegida
da chuva, e viu a mulher que ele, de alguma forma, conseguiu convencer a juntar
os trapos e fugir do vilarejo de Utoa, onde ela havia nascido e crescido. Junto
a ela estava uma parteira umedecendo panos grossos em uma bacia de cerâmica.
Logo atrás da parteira havia a parte frontal da carroça, aquele que estava
conduzindo os cavalos era seu filho, Esao, que mal terminara o treinamento com
espada.
Feng ainda vislumbrava todas as
noites parte do sonho que ele tivera há um mês quando ainda vivia no Palácio do
Tigre, no centro do reino de Asura. Ele servira ao Imperador Tigre na juventude
e participou da maioria das conquistas do reino, por isso, o próprio Imperador
ficou impressionado quando Feng abdicou de sua riqueza e tomou rumo ao vilarejo
de Utoa. É claro que seu filho também se admirou, afinal, o velho samurai havia
declarado que nunca mais empunharia sua katana
novamente, mas, ali estava ele. Desde que saíra do Palácio do Tigre ainda não
havia manejado sua arma contra algum inimigo, mas ela estava sempre a postos.
De todos os tipos de armas criadas em Asura, a katana era a mais mortal, só os mais valorosos samurais carregavam
ela em combate, sua lâmina era limpa e possuía apenas um dos lados afiado, o
que, para alguns, seria uma desvantagem notável em relação à espada bastarda
dos reinos ocidentes. Mas os samurais de Asura guardavam o segredo
indispensável para a fabricação de uma boa katana,
a arma era levemente curvilínea permitindo que a lâmina se projetasse no ar de
forma diferente das demais armas, o que a tornava muito mais mortal nas
mãos de um combatente bem treinado.
O velho samurai mal sabia se
conseguiria manejar sua arma com a perfeição que fazia antigamente, mas estava
disposto a descobrir isso contra qualquer inimigo. O horizonte trovejou e o
barulho do estrondo somou-se aos gritos de agonia da mulher que dava à luz –
Feng já sabia, mesmo antes da parteira afirmar – o bebê nasceria logo, mas, ao
invés de se importar com o parto ele tocou o cabo de sua katana e encarou a escuridão recheada pelos pingos grossos de
chuva. Ele enxergara alguma coisa na imensidão escura e gotejante.
A parteira, tão velha quanto Feng,
começou a praticar sua profissão, usava os panos úmidos e secos, esfriava-lhe o
corpo e enxugava-lhe o suor insistente tentando acalmar a grávida, entretanto,
a velha sabia que aquele nascimento não seria fácil. Os gritos de sofrimento
acordaram a escuridão e mostraram o motivo pelo qual Feng mostrava-se tão
preparado – ele olhou a imensidão e destacou algo tão escuro quanto esta. A
silhueta se aproximava com a certeza de que o que procurava estava dentro
daquela carruagem. O velho samurai mal havia distinguido a forma da criatura
quando pulou da carroça em movimento, sem nenhuma palavra, apenas com o manejo
da katana sendo erguida e cortando as
milhares de gotas da chuva que insistiam em cair cada vez com maior violência. Esao
escutara o barulho da lâmina de seu pai, mas já havia sido avisado que, não
importasse o que acontecesse, ele jamais deveria parar o veículo. Foi isso que
ele fez, ao mesmo tempo em que temeu pela saúde do pai.
Agora Feng podia enxergar a criatura. Ela o encarava olhos vermelhos que pareciam sangrar na escuridão tempestuosa.
O porte do demônio era maior que o de Feng. Uma couraça vermelha protegia-lhe o peito e pernas, pares de chifres cresciam como uma coroa no topo de sua cabeça , um par de asas encouraçadas, rasgadas em carne viva, cresciam seus suas costas. O sorriso maléfico era amarelo e cheio
de dentes serrilhados. O demônio carregava as almas de suas vítimas queimando no fogo interior de seu corpo e Feng pôde vê-las agonizando. Carregava uma arma, muito maior em tamanho do que a katana de Feng, ela tinha uma lâmina negra, mas não possuía uma
forma descritível, assemelhava-se a ossos humanos tingidos de negro como carvão, cercada de espigões afiados e retorcidas que exalavam um calor infernal.
- Saia da frente humano! – intimidou o demônio.
Feng não se moveu e em sua mente
ele notara que aquela foi a maior provação de coragem que ele pôde sustentar em
toda a sua trajetória de vida. Encarar aquela criatura, nunca antes vista ou
imaginada por ele, era pior do que encarar seus inimigos do passado. Ele cerrou
os dentes, posicionou sua arma predileta e mostrou somente com um olhar a
resposta que o demônio não desejava ouvir.
- Vou arrancar-lhe a pele e mastigarei sua carne! Devorarei sua alma como devorei a de seu filho! – gritou com escárnio o
demônio, pois sabia que Feng se orgulhava de sua cria e nada mais irritava o
samurai do que mexer com sua única família. Entretanto, Feng esperava esse tipo
de desdém de uma criatura abissal como aquela.
- Derrotarei você demônio e libertarei as almas dos
inocentes que você matou. – respondeu o velho samurai a altura.
O demônio não queria mais
conversa, devia agir rapidamente e sabia que aquilo que estava na sua frente
era nada mais que um empecilho. Abriu as asas empurrando uma rajada de ar que misturava o calor exalado pelo seu corpo e o frio dos pingos de chuva. O samurai ergueu a katana acima de sua cabeça revelando a
postura do tigre, a técnica de combate de seu clã. O demônio despencou sobre
seu mísero oponente que tentou um contragolpe preparado contra o pescoço da
criatura sem sucesso. A lâmina disforme do demônio atingira o ombro de Feng e a criatura resvalou a arma até que seus cravos mais profundos se enterrassem fundo na carne do samurai.
O sangue espirrou e misturou-se
aos pingos de chuva e o grito de dor de Feng. O demônio cravejou seus pés com
unhas negras e bem desenvolvidas sobre o peito do samurai enterrando até onde pôde,
depois tomou impulso abrindo mais uma vez as asas para alçar um voo repentino.
A tempestade prejudicava a movimentação garantida pelas asas ao demônio, mesmo
assim, seus membros desenvolvidos e as escamas rubras lhe concediam a chance de
usar esses membros mesmo debaixo daquela tormenta.
O corpo de Feng foi jogado contra
o chão, e a agonia tomou conta de cada pedaço de seu corpo enquanto um líquido
esverdeado corria-lhe a pele e se misturava ao sangue. Com velocidade, o membro
atingido apodrecia e borbulhava como o ácido. Feng imaginou que o demônio fosse
direto ao encontro da carroça – e de seu filho – e tentou ficar mais uma vez de
pé, mas a arma abissal do inimigo rasgou-lhe a coxa direita tão profundamente quanto
no ombro. Feng havia perdido o direito de se movimentar com rapidez e o demônio
tomou um segundo impulso distanciando-se dele.
Feng sentiu o sangue ferver, a
visão tornar-se vermelha e a força se esvaindo de seu corpo, forçou a perna
esquerda e no intermédio de movimentação, o demônio desceu mais uma vez agora
visando a cabeça de sua presa, aquilo iria matar o velho combatente de uma vez
por todas – mais cedo do que ele mesmo imaginara. Feng se abaixou e deixou que
a lâmina do demônio rasgasse suas costas com um corte longo e profundo ao mesmo
tempo em que revidou com a katana,
surpreendendo o monstro.
O demônio tentou um terceiro impulso, mas
ergueu apenas uma das asas, a outra voava para longe com a pressão do vento da
tempestade. Desvencilhou e caiu aos tropeços no chão – aquele humano havia
cortado-lhe a asa esquerda com um único golpe. O clã do tigre era reconhecido
por estas técnicas mortais, treinavam para que, com um único golpe, seu inimigo
fosse abatido. O demônio cerrou os punhos e encostou-os no chão tomando impulso
para se levantar, suas presas deixavam cair o sangue vil e quando se preparou
para avistar o inimigo, o viu perto demais.
Feng juntou o restante de suas
forças, moveu-se se arrastando até o demônio e agora aplicava o golpe desejado
sobre seu pescoço. A cabeça do demônio rolou no chão encharcado pouco antes de
Feng decidir que agora não era a hora de morrer, tomou fôlego e olhou na
direção da carroça. Ao invés de enxergar o desejado, Feng avistou um segundo
demônio e, ao lado dele, mais uma dezena de criaturas com o mesmo aspecto demoníaco. Fechou os olhos,
sereno, e não esperou a morte – foi ao encontro dela. Os demônios voaram contra
o samurai e o último lampejo de sua espada.
Enquanto isso, a carroça
trafegava mais rápido do que podia, com as rodas de madeira saltando toda vez
que encontravam pedras no meio da estrada. Estrada que levaria a lugar algum,
apenas se afastaria cada vez mais do vilarejo de Utoa e de toda aquela
destruição. Esao olhou rapidamente para trás, ele viu a criança nascer e a
parteira depositar o bebê sobre os próprios braços de forma lamentosa, Esao
notou que a grávida estava desacordada, seu corpo estava amolecido, logo
encarou a verdade e percebeu que ela havia morrido no parto. Agora ele tinha
outras coisas para se preocupar e tornou a olhar para estrada.
Seu ângulo de visão se deparou
com uma lança afiada que atravessou-lhe pouco abaixo do pescoço e o fez
desfalecer imediatamente. A parteira, com o bebê nos braços, gritou aterrorizada,
uma figura demoníaca entrou na carroça. Ela abraçou forte o recém-nascido e
esperou a morte, mas o destino a surpreendeu e a carruagem, sem destino, saiu
da estrada segura e tropeçou num conjunto de pedras elevadas fazendo com que
tudo desmoronasse. Seguiu-se os segundos de desespero até que a carruagem
despedaçada encobriu-lhe todo o corpo ocultando sua presença. Mas, o que quer
que estivesse lá fora, não iria desistir tão facilmente.
Os cavalos dispararam contra a
escuridão até desaparecerem completamente. Sufocada, a parteira chorava baixo
em agonia e terror. O demônio de lâmina disforme golpeou os destroços do
veículo e a lâmina desfiou a madeira com facilidade. A ponta da arma rasgou
levemente o ombro direito da mulher, mas foi o suficiente para causar-lhe uma
dor lancinante. O demônio descobriu onde ela estava, com o pé direito virou o
corpo da parteira que estava deitada de bruços ainda soluçando de sofrimento. Para
a surpresa da criatura, ela não segurava o bebê. Ainda com o pé espinhento em
cima da mulher ele vigiou os lados até encontrar a localização da criança.
Ela estava nos braços de um desconhecido, bem acomodada, a água da tempestade lavou-lhe o sangue do parto e a
aura de bondade de Amil Gaul, seu salvador, lavou-lhe o desespero concedendo-lhe repentina
calma. O demônio, por mais orgulhoso que fosse, ficou intimidado com a presença
do celestial, olhou a escuridão, porque este era capaz de enxergar nela muito
mais do que os mortais – só encontrou uma resposta ao avaliar de onde o sujeito havia saído.
Os rastros de Amil Gaul, na
verdade, eram os restos dos demônios mutilados que ele havia derrotado em seu
caminho. O demônio largou a espada e ajoelhou-se como que pedindo clemência.
Nenhum comentário:
Postar um comentário