quarta-feira, 9 de maio de 2012

Contos de Draganoth - Asas no meio da tempestade


Feng, samurai livre do serviço ao Imperador Tigre 


Asas no meio da tempestade

                Feng vigiava as costas da carruagem. Logo de manhã ele havia previsto que iria chover mais tarde, mas com o cair da noite, os pingos inocentes de chuva viraram cascatas violentas. Era uma tempestade, em plena escuridão, nos arredores de Asura, onde dificilmente chovia tanto, porém, naquele momento, o cair da tempestade não impressionava o velho samurai – sabia que o destino faria de tudo para que aquele nascimento não se realizasse. Ele olhou para o interior da carruagem coberta e protegida da chuva, e viu a mulher que ele, de alguma forma, conseguiu convencer a juntar os trapos e fugir do vilarejo de Utoa, onde ela havia nascido e crescido. Junto a ela estava uma parteira umedecendo panos grossos em uma bacia de cerâmica. Logo atrás da parteira havia a parte frontal da carroça, aquele que estava conduzindo os cavalos era seu filho, Esao, que mal terminara o treinamento com espada.

                Feng ainda vislumbrava todas as noites parte do sonho que ele tivera há um mês quando ainda vivia no Palácio do Tigre, no centro do reino de Asura. Ele servira ao Imperador Tigre na juventude e participou da maioria das conquistas do reino, por isso, o próprio Imperador ficou impressionado quando Feng abdicou de sua riqueza e tomou rumo ao vilarejo de Utoa. É claro que seu filho também se admirou, afinal, o velho samurai havia declarado que nunca mais empunharia sua katana novamente, mas, ali estava ele. Desde que saíra do Palácio do Tigre ainda não havia manejado sua arma contra algum inimigo, mas ela estava sempre a postos. De todos os tipos de armas criadas em Asura, a katana era a mais mortal, só os mais valorosos samurais carregavam ela em combate, sua lâmina era limpa e possuía apenas um dos lados afiado, o que, para alguns, seria uma desvantagem notável em relação à espada bastarda dos reinos ocidentes. Mas os samurais de Asura guardavam o segredo indispensável para a fabricação de uma boa katana, a arma era levemente curvilínea permitindo que a lâmina se projetasse no ar de forma diferente das demais armas, o que a tornava muito mais mortal nas mãos de um combatente bem treinado.

                O velho samurai mal sabia se conseguiria manejar sua arma com a perfeição que fazia antigamente, mas estava disposto a descobrir isso contra qualquer inimigo. O horizonte trovejou e o barulho do estrondo somou-se aos gritos de agonia da mulher que dava à luz – Feng já sabia, mesmo antes da parteira afirmar – o bebê nasceria logo, mas, ao invés de se importar com o parto ele tocou o cabo de sua katana e encarou a escuridão recheada pelos pingos grossos de chuva. Ele enxergara alguma coisa na imensidão escura e gotejante.

                A parteira, tão velha quanto Feng, começou a praticar sua profissão, usava os panos úmidos e secos, esfriava-lhe o corpo e enxugava-lhe o suor insistente tentando acalmar a grávida, entretanto, a velha sabia que aquele nascimento não seria fácil. Os gritos de sofrimento acordaram a escuridão e mostraram o motivo pelo qual Feng mostrava-se tão preparado – ele olhou a imensidão e destacou algo tão escuro quanto esta. A silhueta se aproximava com a certeza de que o que procurava estava dentro daquela carruagem. O velho samurai mal havia distinguido a forma da criatura quando pulou da carroça em movimento, sem nenhuma palavra, apenas com o manejo da katana sendo erguida e cortando as milhares de gotas da chuva que insistiam em cair cada vez com maior violência. Esao escutara o barulho da lâmina de seu pai, mas já havia sido avisado que, não importasse o que acontecesse, ele jamais deveria parar o veículo. Foi isso que ele fez, ao mesmo tempo em que temeu pela saúde do pai.

                Agora Feng podia enxergar a criatura. Ela o encarava olhos vermelhos que pareciam sangrar na escuridão tempestuosa.  O porte do demônio era maior que o de Feng. Uma couraça vermelha protegia-lhe o peito e pernas, pares de chifres cresciam como uma coroa no topo de sua cabeça , um par de asas encouraçadas, rasgadas em carne viva, cresciam seus suas costas. O sorriso maléfico era amarelo e cheio de dentes serrilhados. O demônio carregava as almas de suas vítimas queimando no fogo interior de seu corpo e Feng pôde vê-las agonizando. Carregava uma arma, muito maior em tamanho do que a katana de Feng, ela tinha uma lâmina negra, mas não possuía uma forma descritível, assemelhava-se a ossos humanos tingidos de negro como carvão, cercada de espigões afiados e retorcidas que exalavam um calor infernal.

- Saia da frente humano! – intimidou o demônio.

                Feng não se moveu e em sua mente ele notara que aquela foi a maior provação de coragem que ele pôde sustentar em toda a sua trajetória de vida. Encarar aquela criatura, nunca antes vista ou imaginada por ele, era pior do que encarar seus inimigos do passado. Ele cerrou os dentes, posicionou sua arma predileta e mostrou somente com um olhar a resposta que o demônio não desejava ouvir.
- Vou arrancar-lhe a pele e mastigarei sua carne! Devorarei sua alma como devorei a de seu filho! – gritou com escárnio o demônio, pois sabia que Feng se orgulhava de sua cria e nada mais irritava o samurai do que mexer com sua única família. Entretanto, Feng esperava esse tipo de desdém de uma criatura abissal como aquela.

- Derrotarei você demônio e libertarei as almas dos inocentes que você matou. – respondeu o velho samurai a altura.

                O demônio não queria mais conversa, devia agir rapidamente e sabia que aquilo que estava na sua frente era nada mais que um empecilho. Abriu as asas empurrando uma rajada de ar que misturava o calor exalado pelo seu corpo e o frio dos pingos de chuva. O samurai ergueu a katana acima de sua cabeça revelando a postura do tigre, a técnica de combate de seu clã. O demônio despencou sobre seu mísero oponente que tentou um contragolpe preparado contra o pescoço da criatura sem sucesso. A lâmina disforme do demônio atingira o ombro de Feng e a criatura resvalou a arma até que seus cravos mais profundos se enterrassem fundo na carne do samurai.

                O sangue espirrou e misturou-se aos pingos de chuva e o grito de dor de Feng. O demônio cravejou seus pés com unhas negras e bem desenvolvidas sobre o peito do samurai enterrando até onde pôde, depois tomou impulso abrindo mais uma vez as asas para alçar um voo repentino. A tempestade prejudicava a movimentação garantida pelas asas ao demônio, mesmo assim, seus membros desenvolvidos e as escamas rubras lhe concediam a chance de usar esses membros mesmo debaixo daquela tormenta.

                O corpo de Feng foi jogado contra o chão, e a agonia tomou conta de cada pedaço de seu corpo enquanto um líquido esverdeado corria-lhe a pele e se misturava ao sangue. Com velocidade, o membro atingido apodrecia e borbulhava como o ácido. Feng imaginou que o demônio fosse direto ao encontro da carroça – e de seu filho – e tentou ficar mais uma vez de pé, mas a arma abissal do inimigo rasgou-lhe a coxa direita tão profundamente quanto no ombro. Feng havia perdido o direito de se movimentar com rapidez e o demônio tomou um segundo impulso distanciando-se dele.

                Feng sentiu o sangue ferver, a visão tornar-se vermelha e a força se esvaindo de seu corpo, forçou a perna esquerda e no intermédio de movimentação, o demônio desceu mais uma vez agora visando a cabeça de sua presa, aquilo iria matar o velho combatente de uma vez por todas – mais cedo do que ele mesmo imaginara. Feng se abaixou e deixou que a lâmina do demônio rasgasse suas costas com um corte longo e profundo ao mesmo tempo em que revidou com a katana, surpreendendo o monstro.

                 O demônio tentou um terceiro impulso, mas ergueu apenas uma das asas, a outra voava para longe com a pressão do vento da tempestade. Desvencilhou e caiu aos tropeços no chão – aquele humano havia cortado-lhe a asa esquerda com um único golpe. O clã do tigre era reconhecido por estas técnicas mortais, treinavam para que, com um único golpe, seu inimigo fosse abatido. O demônio cerrou os punhos e encostou-os no chão tomando impulso para se levantar, suas presas deixavam cair o sangue vil e quando se preparou para avistar o inimigo, o viu perto demais.

                Feng juntou o restante de suas forças, moveu-se se arrastando até o demônio e agora aplicava o golpe desejado sobre seu pescoço. A cabeça do demônio rolou no chão encharcado pouco antes de Feng decidir que agora não era a hora de morrer, tomou fôlego e olhou na direção da carroça. Ao invés de enxergar o desejado, Feng avistou um segundo demônio e, ao lado dele, mais uma dezena de criaturas com o mesmo aspecto demoníaco. Fechou os olhos, sereno, e não esperou a morte – foi ao encontro dela. Os demônios voaram contra o samurai e o último lampejo de sua espada.

                Enquanto isso, a carroça trafegava mais rápido do que podia, com as rodas de madeira saltando toda vez que encontravam pedras no meio da estrada. Estrada que levaria a lugar algum, apenas se afastaria cada vez mais do vilarejo de Utoa e de toda aquela destruição. Esao olhou rapidamente para trás, ele viu a criança nascer e a parteira depositar o bebê sobre os próprios braços de forma lamentosa, Esao notou que a grávida estava desacordada, seu corpo estava amolecido, logo encarou a verdade e percebeu que ela havia morrido no parto. Agora ele tinha outras coisas para se preocupar e tornou a olhar para estrada.

                Seu ângulo de visão se deparou com uma lança afiada que atravessou-lhe pouco abaixo do pescoço e o fez desfalecer imediatamente. A parteira, com o bebê nos braços, gritou aterrorizada, uma figura demoníaca entrou na carroça. Ela abraçou forte o recém-nascido e esperou a morte, mas o destino a surpreendeu e a carruagem, sem destino, saiu da estrada segura e tropeçou num conjunto de pedras elevadas fazendo com que tudo desmoronasse. Seguiu-se os segundos de desespero até que a carruagem despedaçada encobriu-lhe todo o corpo ocultando sua presença. Mas, o que quer que estivesse lá fora, não iria desistir tão facilmente.

                Os cavalos dispararam contra a escuridão até desaparecerem completamente. Sufocada, a parteira chorava baixo em agonia e terror. O demônio de lâmina disforme golpeou os destroços do veículo e a lâmina desfiou a madeira com facilidade. A ponta da arma rasgou levemente o ombro direito da mulher, mas foi o suficiente para causar-lhe uma dor lancinante. O demônio descobriu onde ela estava, com o pé direito virou o corpo da parteira que estava deitada de bruços ainda soluçando de sofrimento. Para a surpresa da criatura, ela não segurava o bebê. Ainda com o pé espinhento em cima da mulher ele vigiou os lados até encontrar a localização da criança.

                Ela estava nos braços de um desconhecido, bem acomodada, a água da tempestade lavou-lhe o sangue do parto e a aura de bondade de Amil Gaul, seu salvador, lavou-lhe o desespero concedendo-lhe repentina calma. O demônio, por mais orgulhoso que fosse, ficou intimidado com a presença do celestial, olhou a escuridão, porque este era capaz de enxergar nela muito mais do que os mortais – só encontrou uma resposta ao avaliar de onde o sujeito havia saído.

                Os rastros de Amil Gaul, na verdade, eram os restos dos demônios mutilados que ele havia derrotado em seu caminho. O demônio largou a espada e ajoelhou-se como que pedindo clemência.
Mas o pedido não foi atendido.

As Hordas do Abismo

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