quinta-feira, 10 de maio de 2012

A Ruína dos Imortais


PREFÁCIO – A RUÍNA DOS IMORTAIS

“A esperança é a maior
e a mais difícil vitória que um
homem pode ter sobre a alma”




Portões do Abismo. Tudo proibido pelos deuses deve estar cuidadosamente trancafiado.


As sombras eternas das mentes sem lembranças

                Havia, em algum lugar perdido entre as interseções planares, um conjunto de rochas gigantescas que flutuavam num espaço infinito como um céu sem estrelas. De tempos em tempos, três entidades, tão imensas quanto o próprio espaço, se erguiam e alcançavam o semi-círculo formado pelas oito rochas.

                As três entidades então espionavam aquelas terras tão esquecidas com seus olhos vermelhos e ofuscantes (como três pares de sóis num mundo real). Os estranhos habitantes daquele mundo podiam observar apenas suas faces e seus dedos colossais, como polegares sustentando as oito rochas e as impedindo de se separar naquele vazio.

                O sopro das três entidades dava início a furacões, afastavam as nuvens cinzentas e espalhavam um frio congelante capaz de destruir vales, planícies e florestas. Em outras visitas, as entidades sacudiam as oito rochas e criavam um terremoto de larga escala, ou disparavam raios flamejantes de seus olhos rubros.

                Aquele era o Abismo, e muitas outras bizarrices existiam lá, embora ninguém conseguisse encontrar palavras para descrevê-las. Aquele plano era formado pelo absurdo, nunca chegava a canto nenhum, mas sempre trafegava numa mesma direção, as três entidades eram os chamados juízes e eram cultuados pelos povos humanóides – mesmo estes sendo os responsáveis pela morte e pela dor – para essas últimas criaturas, a passagem para os dois andares superiores eram vetadas – mesmo os três juízes evitavam enxergar lá, embora todos soubessem que poderiam fazê-lo, se quisessem – entretanto, dez criaturas de aparência descritível moravam lá. Eram eles os anjos caídos, criaturas humanóides de beleza angelical portadoras de um par de asas enegrecidas, todas podiam ser reconhecidas por um observador – diferente dos estranhos habitantes do Abismo – eles sentavam em seus tronos – que tinham a forma de uma mão erguida sob clemência – às vezes esses tronos podiam contorcer o pulso e dar aos anjos de asas negras a visão do espaço vazio que cercava as oito rochas, às vezes eles estavam virados para o lado de dentro – e raras eram essas vezes – onde cada anjo poderia encarar seus companheiros, e quando isso acontecia, todos estavam impacientes, esperando por algo.

                O Abismo mudava a mente do guerreiro ou mago mais inabalável em uma massa consciente de confusão e loucura. Mesmo aqueles seres angelicais eram, visivelmente afetados pela aura do local, embora mantivessem maior sanidade do que todos os outros habitantes – para eles, fitar o vazio e esperar anos era comum, se não inevitável – e, então, eles permaneceram assim até que , o mais belo deles, pensou na existência do que podia ser criado e desse pensamento surgiu a primeira reunião dos anjos caídos – eles teorizaram durante uma eternidade a existência de um milhão de cosmos e acharam maravilhoso aquele entendimento – logo eles transformaram suas insanidades no misto de loucura e lembranças da causa que os trouxeram até aqui.

                Aprisionados no Abismo por um inimigo invejoso – eles chegaram à essa conclusão – eles foram obrigados a olhar aquele espaço vazio durante um tempo que eles julgaram incalculável. Um dia – ou noite, nunca souberam – Vingança, o mais belo dos anjos caídos e agora o líder não-declarado de todos – mandou Escárnio, o sem-rosto e Agonia, o anjo do lamento, descerem até os andares inferiores. Lá, os dois conheceram os homens de quatro rostos, três pernas e um braço – não necessariamente nessa ordem – e ouviram sobre os juízes do Abismo. Escárnio e Agonia voltaram com essas informações e Vingança decidira conhecer as criaturas que carregavam um nome tão incomum para um mundo tão caótico.

                Vingança e os outros anjos caídos tentaram obter informações – pois eram a única alternativa que possuíam – mas os três juízes, desinteressados, não puderam ajudar, pois nem mesmo eles sabiam algo sobre isso – na verdade, aquela seria a primeira vez que as três entidades haviam vistos seres tão feios e mal-feitos – decidiram experimentar as capacidades daquelas criaturas esquisitas. Fogo, gelo e ventos seriam jogados contra os treze anjos caídos, mas Vingança levantou uma hipótese que contrastou a mente das três entidades – havia algo naquelas palavras convincentes que os juízes não podiam dar um nome, pois era lógico – e os treze anjos de asas negras foram poupados, além de serem presenteados com aquilo que queriam – o mundo que estava em suas imaginações compartilhadas.

                Muito tempo depois – os anjos caídos só podiam julgar isso – Vingança escolheu Hedonismo e Revolta, dois dos treze, e juntos voaram para a garganta dos três juízes. Cada um despencou num céu sujo – repleto de pontos brilhantes e ofuscantes, mas que, de alguma forma, lembrava a imensidão vazia do Abismo – e atingiram um chão quente, mas de outra forma, agradável. Cada anjo caído despencou em uma parte distinta daquele mundo e não demorou muito tempo para que encaixassem suas mentes doentias no padrão que aquele lugar possuía. Encontraram criaturas semelhantes, porém muito mais frágeis que eles, depois conheceram os idiomas – que vinham em suas cabeças com uma velocidade impressionante, como se sempre soubessem, embora nunca os tivesse utilizado – a magia e o misticismo, aprenderam sobre as divindades e reconheceram em algumas delas um aspecto similar ao de suas tendências, encontraram suas próprias histórias e rastrearam as respostas que tanto procuraram e, então, voltaram. Lá, eles não só distribuíram o conhecimento com os outros dez anjos caídos, mas também com os juízes e, por meio de propostas desconhecidas, ganharam a liberdade de visitar as gargantas quando bem entendessem. Assim, os exilados se erguiam novamente.

quarta-feira, 9 de maio de 2012

A última escuridão tingida de esplendor

E o sangue tingiu a neve de vermelho.

Centenas de corpos mutilados se estendiam no inverno rigoroso das planícies de Azran, misturados aos cadáveres humanos haviam criaturas abomináveis, saídas de um pesadelo ou libertadas de algum abismo densamente profundo. Yang sentiu a dor nos músculos enquanto o sangue quente banhava seu corpo.

Havia nele muitos ferimentos, mais do que um simples mortal poderia aguentar. Ajoelhou-se sobre o círculo de morte e as lágrimas limparam seu rosto imundo. Quantos aliados ele havia perdido naquela luta, quantos mais iria perder, foram esses pensamentos que fizeram o experiente samurai se arrastar pelo cemitério sem se importar com a perda de sangue.


O céu estava escuro aquele dia, as nuvens cinzentas insistiam em não deixar desabar a chuva purificadora, porque aquela guerra não havia acabado. Os sentidos de Yang perderam a acuidade de sempre, agora, os corpos irreconhecíveis no chão eram apenas borrões que atormentavam a mente dos menos corajosos.


Havia uma imagem na cor de sangue que se estendia mais adiante e parecia se aproximar a cada segundo. A deformidade foi analisada e o foco da visão de Yang conseguiu enxergar a face do inimigo: Lorde Suzaku, o responsável por tanta angústia, o patrono das traições e o mensageiro da discórdia. Lorde Suzaku usava sua armadura de cor rubra e carregava sua espada de lâmina única, ela parecia absorver toda a tragédia do local e ficava mais forte, quase que podia ferir um curioso apenas por olhar.

- Acaba aqui, Yang. Chegou, então, a tão esperada hora do lamento de sua teimosia. - indagou Suzaku com sua lâmina assombrada sedenta por sangue.

Yang ergueu suas armas, um par de katanas responsáveis pela foice de vários inimigos. Estas foram o presente de sua determinação, as lâminas mais fiéis do mundo: Masamune, a lâmina defensora, condensava o ar a sua volta e o transformava em uma barreira invisível capaz de deter o avanço de golpes mortais, enquanto a Muramasa dissipava as correntes de ar num furor devastador rasgando o metal e a carne com a mesma facilidade que uma tesoura corta o papel.


Lorde Suzaku não carregava uma arma menos impressionante, era apenas uma, mas a Chama Negra havia sido batizada pela essência de deuses mortos, com ela o lorde roubou a chama divina de Sagramon e através dela os poderes absorvidos da Trindade Macabra podiam ser vistos por olhares perturbadores. A Chama Negra consome tudo que toca, ela não apenas mutila e incendeia a vítima como também gera uma quebra no padrão de átomos capaz de se espalhar pelo restante do corpo.

- As trevas engoliram a luz, mortal - explicou Lorde Suzaku - Não há mais, nem sequer, alguma divindade na qual você possa se prender. A sua está morta e você acaba de conhecer o responsável por isso.

Era difícil para Yang ouvir palavras tão convincentes. Suzaku era conhecido pelo seu poder de persuasão e, por isso, manipulava tão perfeitamente quanto matava, mas, naquela ocasião, o próprio senhor da traição estaria dizendo a verdade: Alrûne, a divindade guardiã havia sido derrotada e Yang encarava aquele que fora capaz de realizar tal feito.
Yang, o último dos heróis sobreviventes, encarou aquele desafio como o último e, por isso, não desvencilhou, partiu para um ataque interrupto. As lâminas de ataque e defesa dançaram em pleno ar descrevendo arcos de vórtice cortante e ameaçaram a vida do inimigo.
Lorde Suzaku se esquivou do primeiro golpe e, em seguida, resvalou a Chama Negra contra a Masamune com uma precisão infalível. O choque entre as lâminas ocasionou um impulso e fez com que os dois se afastassem metros. Yang sentiu um calor indescritível na mão esquerda, um caminho de veias enegrecidas contornaram seu braço e drenaram o pouco da energia que lhe restava. O braço atingido perdeu forças e a Masamune tremeu e fraquejou em sua mão.

O inimigo não esperou por uma reação e como uma labareda de chamas, atravessou o corpo de Yang
e ferveu o sangue do samurai. Por alguns instantes, Lorde Suzaku permaneceu intocável, como que preenchido pelas chamas profanas que cercavam sua arma. O sangue em ebulição lutou por uma fuga e os ouvidos, nariz e boca de Yang ficaram inundados. Lorde Suzaku, com um giro, acertou as costas do adversário e fez com que ele vomitasse uma golfada de sangue quente que caiu como ácido em cima dos corpos mutilados da última batalha. O último herói caiu.
Um círculo de líquido vermelho incandescente jazia ao redor do corpo de Yang.




- Você é fraco demais para me enfrentar - falou Lorde Suzaku, desdenhoso.

Conforme seu desejo, a chama negra que lhe encobria a arma agora estava em volta de seu braço direito, como se ele fosse capaz de manipular aquela energia tão desconhecida com aptidão inigualável.

- A chama divina se molda a mim assim como se moldou ao aspecto de Hefasto e de Sagramon. O meu aspecto é muito superior ao dessas divindades,
minhas chamas queimam tudo, dissipam até o próprio fogo, não existe ar, só cinzas jogadas no vácuo, a água não se evapora, ela desaparece como se nunca tivesse existido. O metal, a carne e o sangue, portanto, são incapazes de conter a sede de destruição da Chama Negra.

Lorde Suzaku estendeu a mão e se aproximou das costas de Yang preparando um golpe mortal e paciente. Yang, entretanto, ainda escondia uma centelha de vida. Ele se virou e golpeou o braço do inimigo com a Muramasa. Tal foi sua surpresa quando viu a mão envolta de chamas negras impedir o avanço de sua espada e transformá-la em uma nuvem de pó quase instantaneamente.

Aquela arma, forjada pelos ancestrais e considerada a mais perfeita dentre todas sucumbia ao simples toque do inimigo. Os estilhaços viraram pó e o pó virou vácuo. Não havia mais chances de vitória, mas isso não podia passar pela cabeça de Yang naquele momento. Aproveitando-se do descuido do inimigo, a Masamune descreveu um rastro rasteiro contra o corpo de Suzaku, mas foi interceptada antes de causar qualquer ferimento.

Yang quase foi capaz de sentir o gemido lamuriante de sua espada defensora se contorcendo e quebrando como vidro ao encontrar a lâmina do adversário, mas permaneceu viva, lutando contra a própria dureza e incapaz de sustentar outro contragolpe daqueles. Lorde Suzaku não queria mais lidar com um inimigo que apesar de ser notoriamente inferior permeava em esperança doentia. A Chama Negra consumiu o ar e as cinzas ao redor de tudo. E transformou o tudo em nada. A Masamune fraquejou. O impacto eclodiu e o corpo de Yang foi erguido alguns centímetros do chão enquanto ele sobrevivia à fenda de vácuo criada pelas chamas consumidoras.

Segurando-se ao frágil fio de vida, Yang foi cuspido para fora do vórtice e se arrastou pelo chão até encontrar seus companheiros mortos. Segurou o fôlego num breve suspiro que ainda podia exercer, com o cabo da Masamune ainda em mãos, mas que agora se tornara inútil. Um de seus olhos não abria mais, suas pernas latejavam arqueadas procurando o resto das forças que se esvaneciam de seu corpo e o braço apodrecia batizado pela energia profana transmitida pelo toque do inimigo. Quando ele se levantou seus cabelos esvoaçaram, atingidos pelo vento frio que também fora expulso do vórtice de vácuo, junto com este, resquícios da lâmina e poeira flutuaram e criaram uma nuvem obscurecente rente à visão do samurai.

Seria a sua sina morrer ali, sem conseguir ao menos ferir o inimigo? Levantou o rosto e fitou o lorde
traidor, com sua armadura macabra que parecia gotejar o sangue dos inimigos que ele havia derrotado. Agora a lâmina e o braço nu estavam envoltos da chama negra, uma energia que ele não poderia sequer tocar sem que esta carregasse sua destruição. O sangue subiu-lhe pela garganta, avisando que um veneno mortal havia se espalhado com velocidade por seu corpo, sua pele
quente sentia o sangue borbulhar e os ossos se fragilizaram. Yang não podia dar um passo sequer sem que a agonia lhe causasse dor, cada respiração parecia encher seus pulmões de sangue, seus ossos se tornaram tão frágeis como vidro e qualquer movimentação firme fazia jorrar, pelos poros, o sangue efervescente.

Então, ele recordou tudo o que havia acontecido até ali e enxergou todo aquele sofrimento como um aviso de que seu corpo ainda resistia, ele estava vivo e havia se aproximado do Intocável, fez algo que todos duvidaram, apesar de tudo estava a um passo de conseguir o que queria. Ele riu e encarou a morte. Prendeu o fôlego, pois sua respiração esforçada limitava seu movimento e sua percepção, cambaleou, mas conseguiu investir em direção a um inimigo admirado pela persistência alheia.

Lorde Suzaku não precisou de muito esforço para desviar do golpe de punhos livres que o inimigo queria lhe acertar, sua lâmina enterrou com facilidade na coxadireita de Yang, atravessando a pele e o osso e roubando o apoio que o membro inferior lhe oferecia. O samurai titumbeou e, quando a lâmina rasgou-lhe a virilha, jogou o corpo contra o chão e segurou a mão direita do adversário, como quem procura um apoio para não escorregar e cair.
Então, a Chama Negra rodopiou freneticamente e devorou o braço de Yang. Sua pele agonizava e o tecido tentava se soltar dos músculos transformando-se em um bolor fétido que se espalhava por todo o corpo enquanto a chama criptava com volúpia. Yang havia se jogado à morte, naquele momento ele estava cego, surdo e não mais podia sentir a dor lancinante que lhe rompia os tendões e mergulhava no interior de seu corpo. Perdeu todos os sentidos, sim, mas não a consciência.

Então, nasceu o herói.

Com a mão direita, aquela que havia errado o rosto do inimigo, Yang encontrou o ponto em que o braço de Suzaku se encontrava com a lâmina da Chama Negra. Como que transmitindo a própria agonia, as chamas circundaram seu corpo e foram dispersadas por um chute violento no estômago responsável por arremessar Yang a alguns metros do traidor.

- O que você estava pensando em fazer? - perguntou Lorde Suzaku em tom de admiração - tentou usar o próprio corpo para se desfazer de minha arma? E depois disso? O que faria, seu tolo?

A voz de Suzaku já beirava a loucura, porque ele não conseguia entender aquele desespero teimoso do adversário. Não havia este sofrido o bastante? Ele já deveria estar não somente morto, mas reduzido a pó. Não foi isso que aconteceu.

- O que você imaginava? - continuou Lorde Suzaku - ...eu sou o manipulador da Chama Negra, acha que não sou imune aos seus efeitos?

E a lâmina consumiu as chamas novamente.

Momentos depois, a espada de Suzaku lamentou. Uma face agonizante, formada pelas cinzas de átomos que a chama negra consumia, abandonou a espada, libertando um de seus prisioneiros. Enquanto isso, as chamas no corpo de Yang se transformaram em raios luminescentes e desapareceram, como se fossem consumidas pelo corpo do samurai. 

- O que está acontecendo? - replicou Suzaku, confuso.

- Você me ensinou muita coisa enquanto eu estava em silêncio Suzaku - respondeu Yang, porque agora ele conseguia abrir a boca e até falar, embora seu corpo estivesse mutilado e enfraquecido - você é mortal, Sagramon também era. Vocês dois me ensinaram algo.

Um silêncio decepcionante cercou Suzaku, ele preenchia a sua mente com a resposta correta, mas Yang fez questão de confirmá-la:

- Se você, que é um traidor da pior estirpe, pode controlá-la, eu posso fazê-lo também.

Lorde Suzaku não podia perder mais tempo, não podia deixar que seu inimigo aprendesse com tanta facilidade aquela forma de manipulação de energia. O que ele iria se tornar? Um deus? Talvez, acima disso.

- Minha crença agora é outra Lorde Suzaku - continuou Yang e o inimigo não conseguiu iniciar qualquer manobra antes de escutar aquelas palavras desconfortantes - eu acredito que todos aqueles que morreram para ver a sua ruína, estão, ainda aqui, presos, assistindo esse último combate. Acredito que Alrûne não morreu, ele encontrou uma outra forma de nos servir.

O que ele quer dizer com isso? Foi a primeira dúvida que inundou a cabeça de Suzaku quando as respostas começaram a ser exigidas.

- Eu sou o mensageiro! - indagou Yang, em uma última frase reveladora.

Como com um par de asas, Yang saltou e atingiu o céu, seu movimento rompeu as nuvens cinzentas e deu acesso à passagem de filetes de luz que iluminaram o campo de batalha. Havia um raio em suas mãos, um raio com a forma de uma lâmina iluminada, parecia surgir à ele, assim como os raios de sol eram capazes de dissipar aquelas trevas. Lorde Suzaku acompanhou seu inimigo, saltando com a mesma fluidez e as chamas negras cobriram seu corpo, um par de asas macabras brotou de suas costas e deram o impulso capaz de elevá-lo às nuvens dissipadoras.

Os dois desapareceram da vista dos mortais.

O céu se abriu e a chuva, como as lágrimas daqueles que sucumbiram em meio àquele terror, banharam os heróis mortos na planície da guerra e purificou o espírito de Yang. Ele reluziu e se transformou em energia renovadora, uma luz brilhante. Um esplendor.

Contos de Draganoth - Asas no meio da tempestade


Feng, samurai livre do serviço ao Imperador Tigre 


Asas no meio da tempestade

                Feng vigiava as costas da carruagem. Logo de manhã ele havia previsto que iria chover mais tarde, mas com o cair da noite, os pingos inocentes de chuva viraram cascatas violentas. Era uma tempestade, em plena escuridão, nos arredores de Asura, onde dificilmente chovia tanto, porém, naquele momento, o cair da tempestade não impressionava o velho samurai – sabia que o destino faria de tudo para que aquele nascimento não se realizasse. Ele olhou para o interior da carruagem coberta e protegida da chuva, e viu a mulher que ele, de alguma forma, conseguiu convencer a juntar os trapos e fugir do vilarejo de Utoa, onde ela havia nascido e crescido. Junto a ela estava uma parteira umedecendo panos grossos em uma bacia de cerâmica. Logo atrás da parteira havia a parte frontal da carroça, aquele que estava conduzindo os cavalos era seu filho, Esao, que mal terminara o treinamento com espada.

                Feng ainda vislumbrava todas as noites parte do sonho que ele tivera há um mês quando ainda vivia no Palácio do Tigre, no centro do reino de Asura. Ele servira ao Imperador Tigre na juventude e participou da maioria das conquistas do reino, por isso, o próprio Imperador ficou impressionado quando Feng abdicou de sua riqueza e tomou rumo ao vilarejo de Utoa. É claro que seu filho também se admirou, afinal, o velho samurai havia declarado que nunca mais empunharia sua katana novamente, mas, ali estava ele. Desde que saíra do Palácio do Tigre ainda não havia manejado sua arma contra algum inimigo, mas ela estava sempre a postos. De todos os tipos de armas criadas em Asura, a katana era a mais mortal, só os mais valorosos samurais carregavam ela em combate, sua lâmina era limpa e possuía apenas um dos lados afiado, o que, para alguns, seria uma desvantagem notável em relação à espada bastarda dos reinos ocidentes. Mas os samurais de Asura guardavam o segredo indispensável para a fabricação de uma boa katana, a arma era levemente curvilínea permitindo que a lâmina se projetasse no ar de forma diferente das demais armas, o que a tornava muito mais mortal nas mãos de um combatente bem treinado.

                O velho samurai mal sabia se conseguiria manejar sua arma com a perfeição que fazia antigamente, mas estava disposto a descobrir isso contra qualquer inimigo. O horizonte trovejou e o barulho do estrondo somou-se aos gritos de agonia da mulher que dava à luz – Feng já sabia, mesmo antes da parteira afirmar – o bebê nasceria logo, mas, ao invés de se importar com o parto ele tocou o cabo de sua katana e encarou a escuridão recheada pelos pingos grossos de chuva. Ele enxergara alguma coisa na imensidão escura e gotejante.

                A parteira, tão velha quanto Feng, começou a praticar sua profissão, usava os panos úmidos e secos, esfriava-lhe o corpo e enxugava-lhe o suor insistente tentando acalmar a grávida, entretanto, a velha sabia que aquele nascimento não seria fácil. Os gritos de sofrimento acordaram a escuridão e mostraram o motivo pelo qual Feng mostrava-se tão preparado – ele olhou a imensidão e destacou algo tão escuro quanto esta. A silhueta se aproximava com a certeza de que o que procurava estava dentro daquela carruagem. O velho samurai mal havia distinguido a forma da criatura quando pulou da carroça em movimento, sem nenhuma palavra, apenas com o manejo da katana sendo erguida e cortando as milhares de gotas da chuva que insistiam em cair cada vez com maior violência. Esao escutara o barulho da lâmina de seu pai, mas já havia sido avisado que, não importasse o que acontecesse, ele jamais deveria parar o veículo. Foi isso que ele fez, ao mesmo tempo em que temeu pela saúde do pai.

                Agora Feng podia enxergar a criatura. Ela o encarava olhos vermelhos que pareciam sangrar na escuridão tempestuosa.  O porte do demônio era maior que o de Feng. Uma couraça vermelha protegia-lhe o peito e pernas, pares de chifres cresciam como uma coroa no topo de sua cabeça , um par de asas encouraçadas, rasgadas em carne viva, cresciam seus suas costas. O sorriso maléfico era amarelo e cheio de dentes serrilhados. O demônio carregava as almas de suas vítimas queimando no fogo interior de seu corpo e Feng pôde vê-las agonizando. Carregava uma arma, muito maior em tamanho do que a katana de Feng, ela tinha uma lâmina negra, mas não possuía uma forma descritível, assemelhava-se a ossos humanos tingidos de negro como carvão, cercada de espigões afiados e retorcidas que exalavam um calor infernal.

- Saia da frente humano! – intimidou o demônio.

                Feng não se moveu e em sua mente ele notara que aquela foi a maior provação de coragem que ele pôde sustentar em toda a sua trajetória de vida. Encarar aquela criatura, nunca antes vista ou imaginada por ele, era pior do que encarar seus inimigos do passado. Ele cerrou os dentes, posicionou sua arma predileta e mostrou somente com um olhar a resposta que o demônio não desejava ouvir.
- Vou arrancar-lhe a pele e mastigarei sua carne! Devorarei sua alma como devorei a de seu filho! – gritou com escárnio o demônio, pois sabia que Feng se orgulhava de sua cria e nada mais irritava o samurai do que mexer com sua única família. Entretanto, Feng esperava esse tipo de desdém de uma criatura abissal como aquela.

- Derrotarei você demônio e libertarei as almas dos inocentes que você matou. – respondeu o velho samurai a altura.

                O demônio não queria mais conversa, devia agir rapidamente e sabia que aquilo que estava na sua frente era nada mais que um empecilho. Abriu as asas empurrando uma rajada de ar que misturava o calor exalado pelo seu corpo e o frio dos pingos de chuva. O samurai ergueu a katana acima de sua cabeça revelando a postura do tigre, a técnica de combate de seu clã. O demônio despencou sobre seu mísero oponente que tentou um contragolpe preparado contra o pescoço da criatura sem sucesso. A lâmina disforme do demônio atingira o ombro de Feng e a criatura resvalou a arma até que seus cravos mais profundos se enterrassem fundo na carne do samurai.

                O sangue espirrou e misturou-se aos pingos de chuva e o grito de dor de Feng. O demônio cravejou seus pés com unhas negras e bem desenvolvidas sobre o peito do samurai enterrando até onde pôde, depois tomou impulso abrindo mais uma vez as asas para alçar um voo repentino. A tempestade prejudicava a movimentação garantida pelas asas ao demônio, mesmo assim, seus membros desenvolvidos e as escamas rubras lhe concediam a chance de usar esses membros mesmo debaixo daquela tormenta.

                O corpo de Feng foi jogado contra o chão, e a agonia tomou conta de cada pedaço de seu corpo enquanto um líquido esverdeado corria-lhe a pele e se misturava ao sangue. Com velocidade, o membro atingido apodrecia e borbulhava como o ácido. Feng imaginou que o demônio fosse direto ao encontro da carroça – e de seu filho – e tentou ficar mais uma vez de pé, mas a arma abissal do inimigo rasgou-lhe a coxa direita tão profundamente quanto no ombro. Feng havia perdido o direito de se movimentar com rapidez e o demônio tomou um segundo impulso distanciando-se dele.

                Feng sentiu o sangue ferver, a visão tornar-se vermelha e a força se esvaindo de seu corpo, forçou a perna esquerda e no intermédio de movimentação, o demônio desceu mais uma vez agora visando a cabeça de sua presa, aquilo iria matar o velho combatente de uma vez por todas – mais cedo do que ele mesmo imaginara. Feng se abaixou e deixou que a lâmina do demônio rasgasse suas costas com um corte longo e profundo ao mesmo tempo em que revidou com a katana, surpreendendo o monstro.

                 O demônio tentou um terceiro impulso, mas ergueu apenas uma das asas, a outra voava para longe com a pressão do vento da tempestade. Desvencilhou e caiu aos tropeços no chão – aquele humano havia cortado-lhe a asa esquerda com um único golpe. O clã do tigre era reconhecido por estas técnicas mortais, treinavam para que, com um único golpe, seu inimigo fosse abatido. O demônio cerrou os punhos e encostou-os no chão tomando impulso para se levantar, suas presas deixavam cair o sangue vil e quando se preparou para avistar o inimigo, o viu perto demais.

                Feng juntou o restante de suas forças, moveu-se se arrastando até o demônio e agora aplicava o golpe desejado sobre seu pescoço. A cabeça do demônio rolou no chão encharcado pouco antes de Feng decidir que agora não era a hora de morrer, tomou fôlego e olhou na direção da carroça. Ao invés de enxergar o desejado, Feng avistou um segundo demônio e, ao lado dele, mais uma dezena de criaturas com o mesmo aspecto demoníaco. Fechou os olhos, sereno, e não esperou a morte – foi ao encontro dela. Os demônios voaram contra o samurai e o último lampejo de sua espada.

                Enquanto isso, a carroça trafegava mais rápido do que podia, com as rodas de madeira saltando toda vez que encontravam pedras no meio da estrada. Estrada que levaria a lugar algum, apenas se afastaria cada vez mais do vilarejo de Utoa e de toda aquela destruição. Esao olhou rapidamente para trás, ele viu a criança nascer e a parteira depositar o bebê sobre os próprios braços de forma lamentosa, Esao notou que a grávida estava desacordada, seu corpo estava amolecido, logo encarou a verdade e percebeu que ela havia morrido no parto. Agora ele tinha outras coisas para se preocupar e tornou a olhar para estrada.

                Seu ângulo de visão se deparou com uma lança afiada que atravessou-lhe pouco abaixo do pescoço e o fez desfalecer imediatamente. A parteira, com o bebê nos braços, gritou aterrorizada, uma figura demoníaca entrou na carroça. Ela abraçou forte o recém-nascido e esperou a morte, mas o destino a surpreendeu e a carruagem, sem destino, saiu da estrada segura e tropeçou num conjunto de pedras elevadas fazendo com que tudo desmoronasse. Seguiu-se os segundos de desespero até que a carruagem despedaçada encobriu-lhe todo o corpo ocultando sua presença. Mas, o que quer que estivesse lá fora, não iria desistir tão facilmente.

                Os cavalos dispararam contra a escuridão até desaparecerem completamente. Sufocada, a parteira chorava baixo em agonia e terror. O demônio de lâmina disforme golpeou os destroços do veículo e a lâmina desfiou a madeira com facilidade. A ponta da arma rasgou levemente o ombro direito da mulher, mas foi o suficiente para causar-lhe uma dor lancinante. O demônio descobriu onde ela estava, com o pé direito virou o corpo da parteira que estava deitada de bruços ainda soluçando de sofrimento. Para a surpresa da criatura, ela não segurava o bebê. Ainda com o pé espinhento em cima da mulher ele vigiou os lados até encontrar a localização da criança.

                Ela estava nos braços de um desconhecido, bem acomodada, a água da tempestade lavou-lhe o sangue do parto e a aura de bondade de Amil Gaul, seu salvador, lavou-lhe o desespero concedendo-lhe repentina calma. O demônio, por mais orgulhoso que fosse, ficou intimidado com a presença do celestial, olhou a escuridão, porque este era capaz de enxergar nela muito mais do que os mortais – só encontrou uma resposta ao avaliar de onde o sujeito havia saído.

                Os rastros de Amil Gaul, na verdade, eram os restos dos demônios mutilados que ele havia derrotado em seu caminho. O demônio largou a espada e ajoelhou-se como que pedindo clemência.
Mas o pedido não foi atendido.

As Hordas do Abismo

Crônicas de Draganoth - A Chuva de Anjos


CAPÍTULO 1 – A CHUVA DE ANJOS

“Acreditamos ficar tristes
pela morte de uma pessoa,
quando na verdade é apenas
a morte o que nos impressiona”

O Príncipe dos Anjos

Amil Gaul
                Um par de olhos azuis esforçava-se para observar as terras bem abaixo das nuvens. O observador enxergou um mundo lamentável, palco de consecutivas guerras responsáveis pelo abalo que cada habitante inocente carregava neste fim de tempo. A visão deixou o observador lamentoso e ele subia a longa escadaria de mármore como se carregando grilhões presos aos calcanhares. O personagem tinha cabelos curtos e quase aloirados, tinha o porte físico de um guerreiro que ficava ainda mais impressionante devido a sua armadura reluzente - havia mais do que ouro e aço naquela vestimenta, ela lhe cobria o corpo quase que inteiramente, com exceção da cabeça, esta se mantinha erguida fitando o templo no final da longa escadaria.
Aquele Templo do Esplendor era diferente de todos que foram construídos nas terras abaixo das nuvens. Aqueles templos menores, apesar de serem construídos com toda riqueza e ostentação que os mortais poderiam aderir, não chegavam aos pés daquela estrutura celeste. O monumento foi erguido acima das nuvens apertadas e tingia o céu de um branco luminescente – quem olhar lá de baixo, das terras planas, não conseguirá ver o mais majestoso dos templos, muito menos poderá alcançá-lo – mas o viajante estava ali, agora prestes a atravessar os grandes portões de bronze. Do lado de fora, pináculos e colunas sustentavam o teto refinado a ouro e prata, os portões de bronze desenhavam figuras angélicas carregando espadas bastardas e alçando voo a partir de suas asas, os anjos despencavam num desfiladeiro, bem abaixo do céu – talvez, bem abaixo da própria terra – mas as figuras nos portões de bronze não revelavam mais do que isso.

            Aquele Templo do Esplendor era grandioso, em seu interior havia vidraças semitransparentes com a figura imponente dos anjos protetores, elas contavam uma história antiga – e desconhecida pela maioria. O teto era distante e terminava sob a forma côncava formada de espelhos cristalinos que filtravam as luzes do sol e transformavam o interior da construção em um lugar intensamente iluminado. No chão havia algo ainda mais impressionante, havia um círculo de bronze com imagens semelhantes às encontradas nos portões de entrada, mas agora desenhavam o lugar onde aqueles anjos haviam chegado após descer àquele abismo – agora estes carregavam suas armas de luz e combatiam tudo que saía das sombras, um emaranhado de criaturas visivelmente vis de muitos olhos e muitas presas.

O Templo do Esplendor
                O círculo de bronze, na verdade, era o selo de uma prisão muito antiga. Ao redor da construção, estátuas feitas de marfim e mármore ostentavam a visão de quatro anjos, de asas semi-abertas, ajoelhados e de olhos vigilantes. Os anjos de mármore empunhavam espadas bastardas e miravam seus ataques no círculo de bronze, pressionando a ponta de suas armas contra o selo da prisão. Parecia que o invasor conhecia bastante o lugar, qualquer um, a primeira vista, ficaria algum tempo admirando cada traço do trabalho divino.
- Seja bem-vindo Príncipe dos Anjos – ecoou uma voz onipresente – depois de tantos títulos conquistados, aquele no qual julguei o mais impressionante foi o que usei. Ainda não sei como você deseja ser chamado.

O invasor esperava pelas saudações do anfitrião. Esperava também pela dúvida que o mesmo haveria de ter ao tentar nomeá-lo. De todos os seus títulos, o, então, Príncipe dos Anjos escolheu o mais humilde.

- Amil Gaul é o meu nome. – respondeu com sinceridade.

- Amil Gaul? – surpreendeu-se a voz – de todos os títulos possíveis, você escolheu aquele dado a você por um grupo seleto de mortais. Por quê?

- Não há uma explicação na qual possa se interessar agora, Juiz.

Então, a voz onipresente deu forma a um anjo. Sua pele era branca e luminosa, cabelos longos e negros que se estendiam até os quadris, olhos azuis-claros distantes, o divino trajava uma armadura prateada e tinha o mesmo porte guerreiro de Amil Gaul. Nenhum dos dois, entretanto, parecia ostentar sentimentos de luta – assim como nenhum carregava armas.

- Tomei a forma que achei que mais lhe agradaria. – afirmou o Juiz, mas Amil Gaul não ficou impressionado – veio atender ao chamado das doze estrelas?
Amil Gaul afirmou com a cabeça e completou – Ainda não entendo como este mundo pode ter tantos problemas. Tantos que não há sequer uma geração de paz. – o Juiz assentiu, com os olhos fitando o nada sob os pés dele

– O Inimigo está adiantado.

- Do que se trata? – perguntou Amil Gaul.

- Os deuses se reuniram. Mas agora, a decisão não pôde ser contornada pela diplomacia do líder.

- Lorde Splendor pregou durante muito tempo a nosso favor. – afirmou o Príncipe dos Anjos.

- A favor dos mortais, você quer dizer – consertou o Juiz, mas Amil Gaul não pareceu se incomodar.
Mikhail, o Juiz

- Nos próximos dias, em um vilarejo humilde nas redondezas do reino de Asura, nascerá um bebê milagroso – continuou o Juiz – este irá crescer e a ele será dada uma missão muito importante.

                Amil Gaul assentiu. Sabia que missão importante era essa. O Juiz, por sua vez, previu que Amil Gaul entenderia o recado e achou desnecessário falar sobre um futuro mais distante, então continuou:

- Mas o inimigo sabe disso, e vai tentar fazer algo para impedir este nascimento.

                Amil Gaul deu as costas ao templo e caminhou firme até a escadaria:

- Basta me indicar em que direção estará a criança.

                O Juiz seguiu os passos do Príncipe dos Anjos e revelou-lhe a trajetória. Um par de asas brancas, como as nuvens do céu, se desenterrou da carne e costas de Amil Gaul, sem sangue e sem dor, mas que, visivelmente, tomara um pouco da energia divina que o Príncipe dos Anjos tanto precisava. Assim como os anjos desenhados nos portões de bronze, Amil Gaul despencou do templo dos céus e procurou a sua horda de demônios na escuridão.