“Crec!”
fez a casca de ovo quando foi pisoteada.
-
De novo – Dantho repetiu pela milésima vez. Sua voz mantinha o mesmo timbre
irritante de autocontrole das últimas quatro horas.
Liam
não queria mais reclamar, xingar ou amaldiçoar os céus (já havia feito isso
dezenas de vezes antes e não conseguiu roubar sequer a mínima reação de seu
mentor) contentou-se com um suspiro de alívio e voltou para o início da estrada
de ovos quebrados. Suas sobrancelhas lutavam para impedir que as gotas de suor
salgassem seus olhos – a tensão de se manter furtivo era tão insuportável quanto
a de preparar o corpo para uma dezena de chicotadas e quando se faz isso por
incontáveis vezes, o desespero passa a ter o poder sobre o corpo do indivíduo.
“É
uma tarefa impossível” pensou Liam, mas não se convenceu disso. Não era
ingênuo. Passara a acreditar que seu mentor era a pessoa mais indicada a lhe ajudar
a alcançar seu objetivo. Desde que iniciara essa tarefa, Liam aprendeu não
somente a desenvolver seus próprios métodos de furtividade, como também aprendera
a manter a concentração, controlar a raiva e a organizar seus pensamentos de
tal forma que, por vezes, notou-se num estado de mente em branco – sentia como
se fosse um sopro, ou uma lenta folha seca a rodopiar, caindo da copa de uma
árvore gigantesca. E não era só isso. Notou que podia ouvir o silêncio. Os
barulhos mais ocultos daquele bosque, do bater das asas de um pássaro ao
rastejar de um lagarto nas pedras passaram a lhe parecer íntimo e familiar.
A
cinquenta e oito tentativas anteriores (Liam estava contando) o aluno havia
ultrapassado a barreira de sua própria persistência. Quase se convenceu de que
ele não necessitava daquilo, que já estava preparado para o que der e viesse –
Não existe mais razão para que eu continue com essa tarefa. Ela é impossível –
resmungou Liam.
-
Quando essa certeza passar por sua cabeça, apenas se lembre do que você
pretende fazer com esse ensinamento e calcule o que é racional e impossível
novamente – respondeu Dantho, austero.
Liam
pensou “o maldito está certo”.
A
quarenta e três tentativas anteriores (Liam já não sabia porque sentia
necessidade de contar) o ego tentou convencê-lo a desistir. Dantho era vinte e
três anos mais novo que Liam (Liam tinha 42 anos), como um moleque feito esse
poderia ensinar alguma coisa a alguém tão mais experiente?
E
Liam sabia o quanto ele mesmo era experiente. Nunca foi um simples lavrador ou
comerciante. Nem sequer era um simples aventureiro. Era um desbravador (e isso
Liam gostava de dizer). Com suas próprias mãos e pernas ele havia escalado os
montes gelados de Nevaska, feito a peregrinação dos nômades do deserto de
Quéops, jogado as cinzas de sua primeira amante no mais alto vulcão de Sazancros,
compartilhado a própria caça com as tribos de Chattur’gah e visitado os
corredores mais luxuosos da Ordem Arcana. Então, porque precisava da ajuda
daquele garoto?
Dantho,
a sombra fugaz, era como o chamavam. Esse título tinha bastante peso na
concepção de Liam. Seus passos não emitiam barulho. Ele era uma sombra e, por
vezes, Liam se obrigava a olhar na direção de seu mentor na metade do caminho
de ovos quebrados com receio que Dantho simplesmente esvaecesse repentinamente
(parou de se preocupar com isso na centésima primeira tentativa).
É.
Liam precisava da ajuda de Dantho. Liam não queria morrer logo agora que
provara tantas vezes, a si mesmo, que sua loucura o tornara um personagem
sobrevivente e único. Gostava de pensar nisso. Gostava de pensar nas suas
aventuras e sua memória (talvez fortificada por causa de sua loucura) era
exemplar para decorar com perfeição cada nuance das paisagens que ele
presenciou. Ele nem precisava de tinta e pincel para reviver as emoções dos
ventos congelantes de Nevaska, da morbidez dos pântanos da Floresta Cinzenta ou
do relaxante toque das águas límpidas das cachoeiras de Rivergate (embora
tivesse desenvolvido o hábito de desenhar essas paisagens, independente disso.
Ele precisava mostrar ao menos uma minúcia da emoção que ele sentia ao alcançar
um de seus objetivos).
Falávamos
de loucura. Liam não consideraria sua temeridade como loucura não fosse o
julgamento de outras pessoas. De todas as outras pessoas. Existia uma lógica
diferença entre o palpitar do coração de Liam e o dos heróis. Heróis lutavam
por alguma coisa. Estes eram destinados a salvar pessoas e eram necessários
para o mundo. Liam era um desbravador, um herói egoísta (nem mesmo se
preocupava com outras pessoas além de si próprio). Era movido pela curiosidade.
Uma curiosidade insana de conhecer, de tocar e pisar em todos os lugares mais
inalcançáveis do mundo. E esse sentimento é incontrolável, Liam sabe disso.
A
única coisa que poderia impedir Liam de viajar para seu próximo ponto do mundo
era a idade. O tempo era seu maior inimigo – “Desgraçado seja o tempo que quer
ser o senhor de meu destino” replicou Liam, uma vez só. Não era de repetir as
mesmas frases – e, sendo um humano... lhe sobrara pouco.
Com
tanto tempo perdido em viagens, era curioso como Liam havia arranjado algum
momento de sua vida para deixar um herdeiro (seu nome era Zeus, sua amante,
quem sabe o nome?). Quando ficou sabendo da notícia, dividiu suas emoções entre
a felicidade e a angústia. Qual homem (que preste) não cederia ao contentamento
de ter um filho? Liam sabia que não era errado aquele sorriso bobo que insistia
em desenhar no próprio rosto quando pensava em seu pequeno bebê. A angústia,
por outra parte, porque sabia que o pequeno garoto seria a sua cura.
Uma
cura. Liam sabia disso. Sabia porque havia acontecido a mesma coisa com Iorg
(seu pai). Então, Liam decidiu que não poderia ver seu filho antes de
concretizar sua última viagem.
Liam |
“Isso
tudo vai valer a pena” – pensou Liam na metade do caminho de casca de ovo –
“Somente se eu for testado terei a chance de entrar e visitar Ellidoränne”.
Eis
a última peregrinação do experiente Liam. Ellidoränne, a floresta encantada dos
elfos. Um lugar onde jamais um humano ou membro de outra raça havia pisado sem
ser devidamente encontrado e castigado pela raça que se julgava superior. Liam
precisava contar a seu filho sobre aqueles bosques. Contar com detalhes.
-
Você conseguiu – falou Dantho, interrompendo o pensamento do aluno.
Liam
olhou para o chão ao redor e percebeu que estava se equilibrando num único pé,
joelhos arquejados e braços estendidos como se estivesse numa corda bamba.
Estava ridículo, mas isso não importava. A estrada de ovos quebrados estava às
suas costas. Ele havia conseguido e, curiosamente, não havia sido o primeiro a
ter notado isso.
***
-
Então, você é Mandloran, o abandonador – falou Liam com o dono do casebre de
barro, palha, panelas amassadas, lençóis frágeis de tanto lavados, lenha
estocada, fogão de argila e janelas pequenas.
Dantho
havia ficado a três meses atrás. Liam pagou a ele uma quantidade exorbitante de
peças de ouro pelo treinamento (Liam não questionou, mas se martirizou durante
uma semana tentando se contentar com o fato de que havia gastado uma nota para
sofrer enquanto pisava em cascas de ovo que ele mesmo havia arranjado e,
consequentemente, apanhado como um condenado num jogo de gato e rato que seu
mentor criara para mais um de seus ensinamentos exóticos). Agora, ele precisava
conhecer Ellidoränne antes mesmo de pisar lá. É por isso que Liam estava ali,
naquele casebre isolado do mundo.
-
Se sou, você deveria temer – comentou o dono do casebre, embaixo de seu chapéu
longo de palha desfiada – alguém que carrega a alcunha de um traidor e que
prefere viver recluso de tudo carrega bastante motivos para ser temido.
-
Eu não o temo – respondeu Liam e estava decidido disso. Tentou observar os
contornos daquele personagem e finalmente encarou uma orelha pontiaguda, típica
dos elfos, se alongando por debaixo de seu chapéu. Era apenas uma orelha longa.
A outra parecia cortada. Liam ficou curioso, mas não era esse tipo de conversa
que ele pretendia ter com Mandloran.
Mandloran
se sentou no chão, de pernas cruzadas, e serviu-se de um chá (deveria ser um
chá, tinha o cheiro de chá, pensou Liam). Liam se sentou na mesma posição a
pouco mais de dois metros dele e nem se importou em não estar compartilhando o
“chá” com o abandonador.
Enquanto
Mandloran se inquietava com o silêncio do visitante, Liam observava a moradia
escassa do elfo – você deseja beber de uma das fontes de Ellidoränne? –
perguntou o elfo misterioso.
-
Não – respondeu Liam.
-
Procura algum tipo de madeira em especial que só nasce nos bosques élficos?
-
Não – Liam não se surpreendera com o fato de Mandloran estar passando tão longe
da resposta.
-
Deseja surrupiar uma das magias élficas proibidas? – aquela seria uma opção
verdadeiramente audaciosa, julgava Mandloran. Liam percebeu isso porque o olhar
do elfo finalmente havia se encontrado com o dele num compartilhamento de
desconfiança.
-
Não – Liam teve que repetir a mesma resposta, mais uma vez.
-
Então, o quê? – Mandloran desistiu de adivinhar.
-
Eu quero visitar a terra dos elfos o mais profundo que posso alcançar.
Mandloran
cuspiu um pouco do chá que ainda estava em sua boca numa reprovação
amedrontada. A resposta foi tão inesperada que o elfo abandonou a bebida e o
chapéu de palha de sua cabeça.
-
Você seria capturado logo no primeiro dia – adiantou Mandloran que agora
parecia não se importar em ofuscar seus olhos verdes, sua orelha direita
mutilada e o rosto fino e triangular – para passar por despercebido nos bosques
élficos é preciso um treinamento incomum e...
-
Eu já tive tal treinamento – Liam cortou o assunto – a sombra fugaz foi meu
mentor.
Mandloran
deveria ter se impressionado mais (pensou Liam) mas a única coisa que o elfo
fez foi se silenciar e assentir minuciosamente com a cabeça - ... e o que seu
mentor lhe ensinou?
-
Eu aprendi que quanto menos filho da puta eu for, mais chances terei de
alcançar meu objetivo – Liam concluiu aquela resposta ali, imediatamente. Nunca
havia pensado nela antes - ... no sentido poético da expressão, claro.
-
Sentido poético? – Mandloran de repente se viu fisgado pelo assunto.
-
Sim. Se fosse no sentido literal, eu nunca teria chance. Literalmente, eu sou
filho de uma prostituta, então...
Mandloran
permaneceu austero e silencioso durante poucos segundos antes de se entregar a
uma gargalhada incontrolável que consumiu alguns minutos da conversa. Liam não
se importou com isso (estava mesmo torcendo para que o elfo tivesse bom humor).
-
Esse é o tipo de piada que você nunca escutaria em Ellidoränne – acrescentou
Mandloran, enxugando lágrimas de contentamento com as costas da mão.
-
Eu vim à procura de cultura.
-
Claro que veio. Sua cabeça está cheia de perguntas e elas virão junto com a
tempestade que está por vir – ainda com um débil sorriso estampado no rosto,
Mandloran observou as nuvens negras que cobriam o céu a poucos metros de seu
casebre.
Sem
se importar em explicar para seu único visitante em anos, Mandloran entupiu a
lareira improvisada com tocos de madeira secos e acendeu uma chama que demorou
a se espalhar. Pendurou uma chapa de madeira em frente à janela (a janela de
seu casebre) e deu boas-vindas à escuridão amena que se propagou em seu lar
assim que ele fechou a porta.
Liam
podia estar preocupado, mas a única coisa que invadiu sua cabeça naquele
momento foi a noite que provara do líquido xamânico oferecido pelos indígenas
do Vale do Vento Escaldante, em Neblina. A noite não tinha lua, trovões
ressoavam no horizonte distante e um princípio de fogueira começava a crescer
entre ele mesmo e o mestre Punho de pedra.
Mandloran
esquentou mais um pouco daquele chá estranho e se sentou em frente ao seu
convidado com recipientes cheios de água esverdeada. Liam não foi convidado à
provar da bebida, mas se serviu do mesmo jeito (embora não estivesse com
demasiada fome ou sede).
-
Por onde quer que eu comece? – perguntou Mandloran.
-
Comece por você – respondeu Liam bebericando o chá verde e curiosamente com o
gosto muito parecido com a bebida xamânica do mestre Punho de pedra.
***
Eu sou Mandloran. Somente.
Sem sobrenome. (Liam
não se importou com isso, também não compartilhava seu sobrenome) ... e escolhi abandonar meu lar à três vidas
humanas atrás. Vocês, humanos, provavelmente já teriam se esquecido do cheiro e
da paisagem de sua terra natal (já, desse trecho, Liam não concordou muito)
mas, nós elfos, se nos concentramos muito
no nosso transe, às vezes podemos sentir o cheiro dos crisântemos, lírios,
narcisos e da terra molhada pelos rios límpidos de Ellidoränne. Esse lugar foi
o meu lar e ele seria chamado de paraíso por qualquer outra raça.
Lá, a noite sempre
tem lua. Um prata mágico que emana do céu sempre cheio de estrelas. De dia, o
sol é glorioso, ameno e radiante. As árvores são gigantescas e esparsas. O
caminho sempre está livre para os elfos, rodeado pelos anéis de flores e
plantas elegantes. Os animais nunca fogem se não é temporada de caça. Riachos
de água pura tingem o céu de arco-íris. Essa é a terra protegida pelos meus
familiares.
Infelizmente, para
alguns excêntricos, essa paz é inquietante. Eu sou um desses. Um dos insanos (Liam se interessou bastante nessa
parte da conversa) que desejavam conhecer
o resto do mundo. Não que eu considerasse Ellidoränne uma prisão. Ela é muito
maior por dentro do que você pode calcular nesses mapas feitos por humanos.
Existem mundos dentro de árvores, refúgios além das cortinas de água e impérios
colossais abraçados pela natureza. Eu não poderia te explicar o porquê de minha
decisão de abandonar aqueles bosques (e nem precisava, Liam o entendia
muito bem).
Lahantas Shaed é o
lugar onde brotou a primeira árvore. Regada de vida. De suas folhas brotam o
orvalho capaz de curar até a mais terrível das doenças e maldições. Seus galhos
tortuosos se espalham como um gamo, tentando alcançar o céu e quase o fazendo.
Lahantas Shaed é mãe. A mãe de minha raça. Muitos humanos acreditam que ela
seria a própria Gaiëha, mas estão enganados. A primeira das árvores é apenas
uma representação física e mortal de nossa deusa, mesmo assim, um dos seres
mais poderosos desse mundo em que você pisa, viajante.
Há muitas histórias
sobre a primeira das árvores, mas todas se limitam a milhares de anos atrás,
quando ela ainda interferia na vida de todas as raças. Nossa religião explica
que ela foi plantada pela própria Gaiëha, que a assistiu crescendo deslumbrada
e satisfeita com a criação. Gaiëha simpatizou tanto com a primeira de suas
criações que decidiu regar o mundo com ela e para isso criou os isilindil, os
pássaros azuis.
Quando Lahantas Shaed
floresceu pela primeira vez, os isilindil coletaram suas sementes e voaram para
além dos horizontes acompanhados por suas caudas anis e suas asas incansáveis.
Os isilindil eram seres de pura magia. Durante a noite, voando alto, eles mais
pareciam com estrelas cadentes. Muitos deles voaram durante dias, meses e anos.
Pousaram em terras férteis e plantaram as sementes da primeira árvore. As
sementes cresceram e deram forma as primeiras árvores de nosso mundo, ainda
móveis e inteligentes. Dotadas de uma sabedoria incapaz de ser encontrada
atualmente. A estes seres, nós elfos, demos o nome de elröhir, os primeiros
entes. E foram os elröhir que deram vida aos demais entes e às árvores, aos
bosques, às florestas, às selvas e vegetações variadas espalhadas pelo mundo.
Os elröhir ainda vivem. São entidades capazes de guiar espíritos. Mentores
daqueles que protegem a natureza.
E foi assim que
Gaiëha contribuiu na criação do mundo. Ela o deu vida, beleza e inspiração.
Seus filhos, feitos à sua semelhança, somos nós, os elfos. Éramos uma raça
amigável. Os humanos e a maioria das demais raças civilizadas concordavam com
isso. Se convenceram por muito tempo que a presença de um ou mais elfos na sua
fila de cidades de pedra era um prestígio. Julgavam-nos sábios, poderosos e solícitos.
E nós éramos. Confiamos nos humanos, principalmente, porque estes souberam
pedir ajuda. Ensinamos aquilo que nos havia sido presenteado com sabedoria: a
magia.
E nos arrependemos. A
mente dos humanos se mostrou frágil demais e se corrompeu diante um poder que
eles acharam que nunca iam dominar. Eles rasgaram o véu arcano, manipularam,
dobraram, refizeram, como a costura de um pano muito velho, mas que ainda
agasalha o suficiente. Nós os perdemos para a guerra. Muitos de minha raça
derramaram as primeiras lágrimas de tristeza e fracasso quando assistiram o que
os humanos fizeram um contra o outro usando o presente que lhes fora ofertado.
Alguma coisa nos elfos havia sido roubada para sempre.