quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Conto: O Resgate de Alma

Era noite e Horic encharcou a face com a água da pequena lagoa e mesmo com a pouca ajuda da luz da lua naquele imenso deserto, ele pôde enxergar seu próprio rosto no reflexo. Seus cabelos haviam crescido, pelos faciais agora estavam maltratados e ele podia notar sua pele inundando seu rosto com os primeiros efeitos do envelhecimento.

“Envelheci dez anos em algumas semanas”

Horic, líder dos chantre de guerra, távola de Asaron
Pensou consigo mesmo e acompanhou o vento frio do deserto noturno soprar nas palmeiras do oásis e fazer seu manto drapejar. Tomou fôlego e, enfim esbaforido, deixou-se cair no chão. Seus cabelos – agora compridos – deitaram-se sob seu rosto e cobriram sua visão, sobrando apenas o barulho do vento que acompanhava sua respiração.

            Está em algum lugar de Quéops, ele imagina. Qualquer lugar entre as cidades de Mênfis e Sael’garath, ele descobriria amanhã. Não fazia muito tempo que, ao longe, havia avistado uma das seis torres-oráculo do reino deserto. Lembrou-se do grande problema que eram os dias áridos nas dunas de Quéops, mas acabou sentindo saudades de pelo menos um simples sopro quente em seu rosto naquela noite congelante. De qualquer forma se sentia abençoado, pois havia encontrado um pequeno oásis. Se pensasse como o povo nômade do deserto, ele estaria convencido que o caminho trilhado o levaria a seu desejo – encontrar um oásis no meio do deserto baseando-se apenas na própria sorte era, sem dúvida, uma proteção do deus-sol para um simples andarilho.

Mal havia sentido as pálpebras pesarem quando notou a presença de algo à espreita. Abriu os olhos, atônito. Sussurrou algumas palavras, em tom tão baixo que até o vento foi capaz de abafar cada sílaba e ergueu-se despejando aleatoriamente aos arredores uma dezena de esferas brilhantes de cor amarelada que passaram a flutuar inofensivas ao redor dele mesmo iluminando cada fresta de escuridão.

- É você novamente! – indagou o surpreendido bardo que não se prestava a disfarçar sua situação derrotada pelo esforço de caminhar milhas pelo deserto.

- Sou aquele que tu vens a procura. De certo. – respondeu o estranho visitante numa voz melancólica que soou quase como um sussurro, embora os ouvidos de Horic não tivessem tido problema para escutar perfeitamente cada palavra pronunciada.

            A presença era um tipo encapuzado e qualquer um num relance rápido confundiria seu manto com o breu que era a escuridão da noite. Quando levantou o rosto, Horic pôde ver sua face pálida e apática, de lábios quase invisíveis e expressão quase austera, não fosse a empatia do bardo para descobrir que o estranho carregava uma dúvida inquietante, ele descreveria o sujeito de manto como um assassino frio, incapaz de demonstrar sentimento.

- Responda-me, pelo menos desta vez, porque preciso perseguir os caminhos apontados por você.  Porque não conta a história inteira de uma vez? – perguntou Horic, num tom de súplica.

- Por causa dos ouvidos da morte, meu caro mortal. - respondeu o estranho visitante.

            O sombrio já havia respondido a mesma coisa em outro encontro, mas o bardo não havia entendido completamente o significado real da resposta. Teve muito tempo para pensar em sua viagem solitária. Há três dias Horic havia encontrado os Saed, uma tribo nômade que era uma cidade inteira a vagar pelo deserto, sempre em constante mudança. Os Saed foram simpáticos, deram-lhe de comida, bebida e descanso. Horic suspeitou que sua chegada havia sido prevista pelo oráculo da tribo – uma aparentemente jovem garota de pele clara e que nunca abria os olhos – pois havia ouvido em outras paragens que os Saed são intolerantes para com estrangeiros.

Nay’ala era o nome do oráculo que ensinou o desavisado Horic a guiar-se durante o dia apenas observando a coroa do sol e, durante a noite, através das constelações.

“Para tanta gentileza vinda de uma importante representante do deus-sol, não poderia existir um agradecimento à altura, mas se houver algo que eu possa fazer como recompensa, eu não pensaria duas vezes em fazê-lo.”

“Apenas termine o que você veio fazer aqui no deserto de meu senhor Selloth, meu querido estrangeiro. Isso já basta.”

“Nay’ala, eu acredito piamente em seus poderes de vidência, mas, perdoe-me se eu parecer estar sendo rude, eu acredito que você não tenha enxergado com tanta clareza o ponto final de minhas andanças. Não sou um adivinho, mas aprendi a confiar em meus sonhos e pesadelos. Eu persigo algo escuro e, devo dizer que minha curiosidade pode definitivamente me matar, se não...”

“Basta, Horic. Tudo o que posso fazer é confiar nas vozes que o Lorde com a Coroa de Fogo sussurra em minha mente. Eu não esconderia curiosidade pelas suas respostas, mas, eu não devo conhecê-las.”

            Horic assentiu com a cabeça e decidiu ir embora no mesmo instante. Seria um grande alívio compartilhar tudo o que tinha acontecido com ele até aquele momento e o porquê de ele teimar em seguir aquela estrada duvidosa.

            No Vale do Abismo da Ventania – um estreito rochoso na qual Horic teve de atravessar para, enfim, pôr os pés em Quéops – aconteceu algo semelhante. Lá ele conheceu Ikarus, um rei entre os raptorans – uma raça exótica e quase extinta de humanoides portadores de asas e incrivelmente hábeis na caça – o bardo teria sido devorado pelos homens-abutres caso um grupo desses homens-pássaros não tivesse combatido aquele mal e depois o aprisionado para levá-lo diretamente aos pés do sábio rei.

Assim como Nay’ala, Ikarus sabia de muita coisa, mas não se importou em revelar muitas informações. Horic ficou no vale durante quatro dias e foi tempo o suficiente para descobrir que os raptorans eram devotos religiosos dos elementais do ar mais antigos que se tem notícia em toda Draganoth.

“Em caso de dúvida, siga sempre a direção do vento”

Repetiam os raptorans durante a visita obrigatória do bardo. Era quase um lema. Horic aprendeu os primeiros indícios de sobrevivência no deserto graças aos homens-pássaros e ganhou, inclusive, uma escolta pessoal até os limites que dividiam o Vale do Abismo da Ventania e Quéops. De alguma forma, foi graças a esta dica que Horic havia chegado naquele oásis e se encontrado novamente com aquela figura estranha.

- Em quantas partes você pretende dividir essa história? – perguntou Horic enquanto amontoava tocos de madeira da sua mochila de carga e pilhava-os afim de acender uma fogueira. Se ia ouvir mais algumas horas de tragédia, preferia fazer isso bem aquecido.

- Em pelo menos mais duas. – respondeu a figura pálida, olhando hipnotizado para a chama que começava a se acender. Horic sabia que o visitante era incapaz de sentir calor.

- Me arrisquei muito chegando até aqui. Se Endimion não tivesse me abençoado com a sorte ou se os deuses daqueles que me ajudaram não fossem complacentes, eu estaria morto.

- Sim, você estaria. Na verdade, em comparação com nossos últimos encontros, sou capaz de farejar a morte muito mais próxima de você do que antes. Isso é um problema. Devo começar a contar a história imediatamente. Onde havia terminado?

- O sexto filho de Sybila foi derrotado aos pés das Montanhas Tempestuosas.

- Isso mesmo. O sexto caiu do céu trovejante sendo cavalgado pelo destemido halfling e teve seu fim ao chocar-se com o chão encharcado pelas lágrimas da primeira maldição. As escamas continuam a espalhar o odor de morte desde esse acontecimento...

- Espere. Existe uma informação falsa em sua história. – a fogueira já crepitava quando Horic embrulhou-se no manto e impediu que o vento o drapejasse. Tirou de sua mochila uma das repetitivas rações de viagem e espetou a carne defumada num galho seco e reto que havia conseguido em Beltine, a cidade das árvores gêmeas. – disse-me que Ragnar, o exilado, havia morrido nas mãos da tempestade mas...

- Ele continua vivo. Como você sabe disso?

- Bem... isso é importante?

            Horic só recebeu como resposta um silêncio inquietante que foi o suficiente para convencê-lo.

- Samantha, minha... uma amiga minha em Zarast. Ela conhece formas de se comunicar comigo.

- Sua amiga está certa. E também está errada. Ragnar morreu. Eu o vi nas escadarias de mármore esperando pelo castigo dos exilados. Ele permaneceria lá se o destino não tivesse lhe afagado a face.

- O que quer dizer com isso?

- Havia um outro grupo procurando os Sete. Eles foram menos eficientes que os heróis que atravessaram o rio Aomame, mas, ainda assim, foram responsáveis pela morte de três.

- Que outro grupo poderia estar naquela mesma trilha? Como eles puderam resistir sem a ajuda do Guardião dos espíritos?

- Eles não resistiram. Pelo menos, a linhagem real não resistiu.

            Horic tinha muitas perguntas. Aquele definitivamente era um assunto novo. Beliscou um pouco da carne esquentada e preparou-se para não se intrometer mais na história.

- Você poderia, ao menos, se sentar?

- Isso é importante para você? – perguntou o contador de histórias, um pouco inquieto.

            E recebeu como resposta apenas um silêncio inquietante.
Concordou e aninhou-se ao chão frio, preenchido pelos grãos da areia do deserto.

- Daûgrin nascera em Hefasto, o vulcão divino, assim como Ragnar nascera...

***

            Hefasto, deus e moradia da raça anã, é um vulcão. O sangue que corre em suas veias é quente como lava. Um monumento divino e natural tão imenso que se propaga pelos territórios da selva de Chattur’gah e brota de rochas escuras emolduradas por rios de magma. Exteriormente a estrutura já pode ser reconhecida como o reino anão. Muralhas e fortalezas, patamares e pátios feitos da própria rocha vulcânica aglomeravam a marcha incansável dos anões. Vestidos com suas armaduras pesadas, eles vistoriam o horizonte ígneo que circunda o vulcão divino.

Os anões estão entre os melhores forjadores, comerciantes e, também, mais fervorosos soldados em combate. À primeira vista rústicos em estratégia, à segunda, estrategistas eficientes, incapazes de serem surpreendidos. Os anões estão entre as raças sobreviventes das eras e toda a sua glória dá-se, primeiramente à fé incondicional que carregam para com sua divindade e, em segundo, a organização ordeira de sua linhagem.



            Eles compõem três clãs distintos. Cada clã foi responsável pelo desenvolvimento eficiente de um dos três ofícios mais prestigiados da raça: a mineraria, a forja e o combate militar. Cada anão ensinado, desde cedo, a respeitar o ofício de sua linhagem e reconhecer a importância dos demais. E, por fim, cada clã também possui um líder e representante da linhagem.
Muitos moradores de Hefasto, naquele dia, se amontoaram no Salão do Pendrake – uma câmara colossal, sustentada engenhosamente por pilastras que desenham, em alto relevo, as feições de grandes anões em suas poses austeras e pétreas. Haviam também pontes de rocha magmática que interligavam as cavernas que são as entradas e saídas do salão e, é claro, o próprio Pendrake – uma pedra rústica que parece ter sido desenterrada do coração de Hefasto e cujo as runas anãs foram cravadas permanentemente na rocha para que todos os membros da raça pudessem justificar as leis religiosas do ser divino.

            A Tribuna da Hoste é um evento raro, até para os anões, e costuma acontecer uma vez a cada século ou mais, sempre com a importância de compartilhar e procurar sanar os perigos e ameaças que aflige os territórios anões.

Com o próprio Pendrake como plano de fundo, a reunião é organizada pelos três líderes dos clãs que ficam dispostos em seus tronos de rocha magmática cravados artisticamente em pedras bem polidas cercadas de rostos e runas anãs. O murmurinho se assomava na plateia, os anões discutindo com seus próprios irmãos a causa daquele evento. Eles ralhavam e defendiam suas opiniões aos gritos, como os anões costumam fazer, mas nunca chegando a violentar ou desrespeitar um irmão.

            O balbuciar de todos apenas cessou quando Thaindrininbael bateu com seu martelo de bronze em um dos braços do trono e um trovão, como se partisse de um céu limpo, ecoou pelo Salão do Pendrake. Thain é o líder do clã do martelo, os senhores da forja e, por isso, obrigava-se a sustentar maior riqueza que os demais, adornando-se com anéis nos dedos e barba, uma coroa dourada encrustada de joias e a figura da cabeça de um javali, manto vermelho de seda e um peitoral de aço que, de tão reluzente, parecia ter sido forjado de um diamante enorme e inteiro.

“Há uma semana, no Posto de Tibmustryl, ao leste de Hefasto, três de nossos vigilantes notaram o aparecimento dos asas negras cortando o céu noturno. Eles descreveram os olhos das criaturas como um par de rubis voando na noite, sangrando na escuridão de nosso território. Em Grimgdorn, nossos soldados chegaram a disparar contra um dos escamosos para afugentá-lo e, assim, o fizeram. No Monte Palathyr, um grupo de seis irmãos desconfiaram da estranha ausência de gigantes na região e visitaram as Ruínas de Almodórr, com o propósito de espertar a colmeia. Tudo que tiveram de enfrentar foi uma dúzia de ogros para, enfim, descobrirem que as ruínas foram abandonadas. Vasculhando vestígios, o grupo descobriu uma estatueta de ébano que carregava a figura desforme de um dragão. Nossos farejadores também perseguiram rastros por quilômetros, descobrindo que os gigantes iniciaram uma longa jornada para o norte.”

“Como a maioria de nós sabe, o norte é domínio das feras, do culto de Kaz e das pirâmides de sacrifício.” – revelou Adgrimbarbag, o senhor dos minérios, com sua pele cor de rocha, olho esquerdo desbotado e manchas amarronzadas na pele. Chamavam-no de o barba-de-pedra, pois de seu queixo brotava uma barba que mais parecia meia dúzia de estalactites. Era conhecer de todos os caminhos, fossem eles no subterrâneo de seu mundo ou no vasto e desorganizado exterior. – “Tudo leva a crer que nossos inimigos se reúnem num lugar onde nossa picareta, machado ou martelo não alcançam. Tentando ofuscar nossa atenção para os perigos que jorram como sangue na capital do terror.”

“Essas não são as únicas notícias.” – adiantou-se Theóingrignam, o senhor dos soldados, com sua armadura esculpida na rocha vulcânica capaz de avolumar ainda mais seu corpo robusto, pesado também devido aos seus músculos rígidos como pedra. Theóin carrega uma cicatriz que lhe atravessa a boca e o deixara eternamente marcado pelo seu ofício de guerra. – “O reinado humano fracassou em defender uma de suas principais capitais e Lorde Irun, o senhor da flâmula esmeralda, obrigou-se a partir e ver as ruínas de seu reino que nós, anões, ajudamos a erguer. Eles lutam para que o mal vindo do reino-cemitério não adentre o que sobrou de Azran. Outras ameaças assolam o reino vizinho, obrigando aos conhecidos matadores de dragão, liderados pelo Príncipe Aisen, se reunirem pela primeira vez em cinquenta anos contra um mal despertado. Nossos primos malignos desapareceram. Um grupo de meus melhores soldados seguiram-nos até as profundezas de Gargantuah e descobriram que eles escavam cada vez mais profundo na rocha, buscando caminhos completamente aleatórios e distantes de nossa terra natal, como se também quisessem sua parte do tesouro nessa união vil de criaturas malignas em marcha.”

            As discussões se iniciaram entre o acúmulo de anões que havia escutado todo o discurso em silêncio, até aquele momento.

“Silêncio! Por favor.” – adiantou-se Thain. – “A maioria de vocês questiona porque convocar uma tribuna para compartilhar essas informações. Isso será esclarecido se vocês estiverem dispostos a ouvir.”

“Porque devemos nos preocupar com os perigos que não afrontam diretamente nossas terras, meu lorde?” – perguntou Edráin, vigília do Posto de Belzerk.

“Muitos de nossos irmãos estão lá fora, compartilhando nossas experiências com os humanos. Não é dever deles agir contra essas enfermidades?” – questionou Drosglo, o sangue de troll.

“Vamos marchar em direção à Ankhasadalûr com o intuito de salvar os humanos, é isso?” – levantou-se Tybunrim, mineiro da Garganta Reverberante.

“Devido a estes questionamentos, abrimos a tribuna para compartilhar nossas decisões e discutir a melhor forma de agir em relação à este propósito.” – explicou Thain, austero, como se esperasse exatamente pelas mesmas perguntas.

“Nosso povo, irmãos, é invencível aqui, em Hefasto, mas, recolher-se em nosso lar indestrutível não orgulhará nossas Hostes Eternas. Nossos antepassados que lutaram contra os gigantes do antigo império e os orcs dos canyons de Katarsh’motta, vigiam nossas decisões. Devemos agir como guerreiros. Devemos usar nossos machados, ao invés de apenas nossos escudos.” – discursou Theóin, levantando-se do trono acompanhado de um estardalhaço metálico produzido por sua vestimenta robusta que lhe cobria até o pescoço.

“Nossos inimigos partiram, mas eles retornarão.” – acrescentou o barba-de-pedra – “Retornarão mais fortes, profanados pelo mal que conquistaram nas terras exteriores. Trarão aliados e tentarão conquistar nossas terras divinas. Nós ainda resistiríamos por muito tempo, mas conviveríamos com o terror de ter um de nossos inimigos infiltrados no nosso reinado.”

“Mandar uma porção de nós enfraquecerá nosso coletivo. Uma centena de anões ainda seria pouco para este propósito, meus senhores.” – Edráin falou novamente.

“Enfrentar as escamas negras, os gigantes do império e ainda correr o risco de tropeçar em duergars, orcs e servos de Kaz trará para nós uma guerra difícil de evitar.” – adicionou Grungilnir, líder da Presa Ávida, a torre ao sul de Hefasto, responsável por abater as caravelas advindas do reino orc de Katarsh’motta.

“Não mandaremos uma tropa inteira.” – explicou Theóin, as manoplas se fechando num punho cerrado que bateu na mesa e exigiu o silêncio dos ouvintes. – “Tampouco temos a intenção de enfrentar todos esses inimigos juntos.”

            A centelha de dúvida pôde ser vista desenhada no rosto de cada anão no Salão do Pendrake. Eles queriam respostas, queriam saciar suas dúvidas. Thain fez isso.

“Um grupo seleto de representantes de nosso reino ficará responsável por encontrar e derrotar os asas negras. Eliminar os riscos de enfrentar as criaturas capazes de arranhar nossos alicerces durante uma possível investida de todos esses inimigos. Também cremos em outro fato...” – dito isso, Thain manteve-se em silêncio e permitiu que o Barba-de-pedra continuasse.

“Os sete filhos de Sybila são vistos como os vigilantes de Ankhashadalûr. Cada cria pretende expandir um império e fazer com que seus olhos rubros alcancem as terras mais distantes. Assim, eles são capazes de garantir maiores informações e oferecê-las aos líderes da pirâmide. Tudo leva a crer que seja isso.” – o anão da face pétrea ponderou as palavras e pousou seus punhos de rocha nos braços do trono esquerdo da assembleia.

“Finalmente chegamos aos propósitos principais desta tribuna, irmãos. Além de deixar cada um de vós atônitos ao que ocorre além dos territórios protegidos pelo fogo divino, também apresentaremos a única solução satisfatória às nossas decisões e aos questionamentos de vocês.” – ergueu-se Thain, acompanhado do Barba-de-pedra e de Théoin (que já estava de pé desde seu primeiro argumento). – Apresento-lhe, o filho de nossa linhagem, príncipe de nossa raça, sobrinho distante de Theóin, o machado dos justos. Seu nome é Daûgrin, o filho da chama.”

            O nome do príncipe anão foi sussurrado pelas bocas desconfiadas e o murmurinho calou-se apenas quando os soldados anões, vestidos em suas armaduras de batalha bem polidas, curvaram-se e se afastaram cumprindo ordens militares e abrindo passagem até uma figura robusta, coberta por um manto vermelho como o vinho. A fumaça de um cachimbo com a figura da cabeça de uma górgona, exalava diante seu capuz e o príncipe levantou-se da mesa de pedra ajeitando o manto a partir do emblema do clã do machado. Sua barba era negra e bem tratada, decorada com meia dúzia de anéis de prata e ouro. Sua manopla era como uma perfeita mão metálica, feita de um aço de ofício raro em Hefasto e quase inexistente no resto do mundo. Os anões sabiam: o príncipe Daûgrin era portador da chama divina. Seu toque podia causar morte instantânea, como se ele fosse capaz de imergir seu inimigo no fogo líquido que Hefasto abriga.

Ele andou sem pressa até diante dos três tronos e foi a atenção de todos os olhares enquanto o fazia. Soldados anões voltavam aos seus lugares enquanto o príncipe prosseguia. Ele alcançou o seu destino e virou-se afim de encarar seus irmãos. Livrou-se do capuz e mostrou-lhes o rosto jovem, os lábios mordiscando a extremidade do cachimbo, os olhos semicerrados procurando analisar os julgamentos da plateia para com ele.

“Pedimos para que sejam complacentes e que ouçam o que um dos príncipes de nossa raça tem para compartilhar e que, de agora em diante, a missão dele seja a vossa também.” – apresentou Theóin, orgulhoso por ter o sobrinho como representante da missão.

“Sou Daûgrin, filho da chama. Carrego o fogo divino em meu peito e a fúria de meu machado nas mãos.” – falou o príncipe com altivez. Sua voz ecoou pelo Salão do Pendrake e soou como autoritária e segura demais para alguém de sua idade. – “A mim fora incumbida a missão de exterminar as escamas negras e, como escolhido dos meus próprios reis, não pude recusar a oferta de ingressar nas Hostes Eternas de nossa raça. Meu machado não poderia servir à causa mais honrada. Sei, através de reuniões, que sabemos a localização de dois dos ninhos de dragões e, é por isso que desejo partir o quanto antes.”

            Olhares confiantes e desconfiados se debruçaram sobre o príncipe e ele permaneceu austero, com a paciência de uma rocha imóvel.

“Ele é tão jovem?” – resmungou a maioria da assembleia.

“Precisamos de experiência para tal missão. Há tantos devotos de Hefasto tão mais acostumados com a trilha que esse jovem príncipe irá caminhar. Porque ele foi justamente o escolhido?” – os murmúrios saíram de algum lugar dentro da multidão.

            Daûgrin olhou para os três líderes, como se em busca de consentimento. Thain, Theóin e o Barba-de-pedra assentiram. O príncipe buscou no volume de seu manto um machado feito do metal da cor da rocha incandescente, com veias alaranjadas e vermelhas pulsando como se estivesse vivo. Ele firmou a manopla no punho do machado e sentiu o aço queimar. Seu manto drapejou dando liberdade às nuvens de fumaça, as mesmas produzidas quando o calor da têmpera de uma espada é exposto à água. Seus olhos faiscaram e a barba passou a se comportar como uma dezena de serpente-de-fogo, lambendo a face do príncipe.

Perante aquela audiência, Daûgrin ajoelhou-se com o machado em mãos, fechou os olhos, como se meditasse uma oração passageira. Quando os abriu novamente, seus olhos eram a chama divina e o calor impregnou-se na pele de cada presente.

“Sou príncipe dos anões!” – Daûgrin falou, mas não com sua voz habitual, ao invés disso, todos ouviram o clamor de uma presença advinda das profundezas vulcânicas. Uma voz parecida com o retumbar de mil tambores de guerra, forte como mil marteladas numa bigorna e temerosa como uma montanha inteira desabando. – “E estou aqui para essa missão sagrada. Não me tomem como um qualquer. Sou a ardência da chama divina! O carrasco dos inimigos de nossa raça! Sou portador do fogo de Hefasto e, em meu peito, carrego o calor que incinera a tudo!”

            A chama tornou-se uma com o príncipe durante poucos segundos e, por fim, foi controlada, transformando-se num corpo de cinzas e fumaça exalando pelo Salão do Pendrake. Daûgrin pareceu exausto depois da proeza, mas, isso não incomodou seus irmãos. Eles continuaram boquiabertos até que somaram suas euforias num grito disforme de júbilo.

A partir daquela demonstração, os anões passaram a enxergar o jovem príncipe Daûgrin como um fortuito e exemplar membro da raça. Um indivíduo tão jovem, mas com a capacidade de sustentar a chama divina. A maioria daqueles que tentam alcançar tal proeza morrem consumidos pelo toque de Hefasto. Daûgrin, porém, era um prodígio nessa habilidade e, tão logo, recebeu o consentimento de todos os seus irmãos para a longa jornada.

            Ele não sairia sozinho para a missão sagrada. A ele se juntaram Aurin, uma clériga de Hefasto, serva fiel do Templo da Chama Divina durante cinquenta anos de sofrimento na luta dos anões contra as salamandras das Terras do Manto-de-fogo. Orchestra, um anão bardo de tranças ruivas que anunciava com o retumbar de seu tambor de guerra as ameaças vindas da direção da Torre Cavernosa e, posteriormente, Dugnimb, um rastejador de masmorras ambicioso com foco nas antigas ruínas do Império Gigante.

            Eles vagaram por Chattur’gah durante dois meses inteiros até se depararem com o primeiro ninho de dragão negro. Consumido pela chama de Hefasto e abatido por um virote de balestra certeiro no peito, a primeira cria de Sybila foi abatida na Garganta de Yogarmund, e seu corpo de escamas ainda pode ser encontrado cravejado pelas estranhas árvores-espinhosas que nascem nas laterais daquele abismo.    

O caminho do grupo coincidiu uma única vez com o de Ragnar, o exilado. Eles o ajudaram a libertar seu grupo que sofria nas garras de Abranabam, um beholder que assolava a região das Árvores Esparsas. Ragnar o viu usar a chama de Hefasto também uma única vez. Foi na luta contra Dedelit, a bruxa-de-escamas e impressionou-se com seu poder divino. Dali em diante, o exilado se despediu de seu antigo grupo e passou a seguir o príncipe, ajudando-o a derrotar o segundo escama negra nos Montes Íngremes. Foi quatorze dias depois, na trilha das antigas covas, que Ragnar abandonou o príncipe e tomou rumo às Muralhas de Azran.

***

- Então, o príncipe Daûgrin e seu grupo foram importantíssimos para essa vitória nas Montanhas Tempestuosas. – concluiu Horic, acostumando-se com a penumbra que o cercava naquele oásis.

- De certo. – assentiu o estranho de face pálida.

- Com a ajuda de um príncipe anão, a luta contra a Primeira Maldição tornou-se mais possível, ao 
meu ver.

- Teria sido simplificada, se Ragnar e Daûgrin tivessem se encontrado novamente alguma vez mais em suas jornadas. Aquela despedida foi o último aperto de mãos entre o príncipe e o exilado. Eles não voltaram a se ver, pelo menos nesse plano.

- O que aconteceu?

- O príncipe foi derrotado. – afirmou o estranho, sem sentimento algum, como se houvesse previsto a morte de Daûgrin mesmo antes de ter acontecido.

- Como? – perguntou Horic relutando em agir tão friamente como seu contador de histórias havia feito.

- Se é que isso vale a pena ser contado, Daûgrin e seu grupo enfrentaram a terceira cria de Sybila nos Desfiladeiros das Presas Tortas e tiveram que consumir todas as suas energias para derrotar o inimigo. Saíram vitoriosos e esgotados e, logo depois, foram surpreendidos por Borlog e sua trupe, um bando de ogros vindos das ruínas do antigo império gigante, já citadas anteriormente. Num último suspiro, para salvar seus irmãos, o príncipe invocou os poderes da chama divina e permitiu-se ser consumido pela fé, tornando-se uma chama persistente e evitando que sua linhagem fosse mantida refém pelos odiosos inimigos.

- Se o príncipe Daûgrin morreu em sua jornada, porque é importante contar sua história?

- Daûgrin e Ragnar tornaram-se um.

- Como isso é possível?

- Lembra-se do último trecho da história que lhe contei em nosso último encontro? Ragnar foi visitado pela alma de Daûgrin nas escadarias de mármore, em frente aos portões de entrada para as Hostes Eternas, o céu dos anões.

- Sim, lembro-me muito bem.

- Recorda-se também que Asafe, o guia do grupo que trafegou pelo rio Aomame recebia a alcunha de “guia dos espíritos”?

            Horic coçou o queixo e tirou alguma sujeira da barba desgrenhada.

- Você fala de reencarnação? – perguntou o bardo após pensar não mais de alguns segundos.

- Chame do que quiser. Eu não batizei essas possibilidades. O verdadeiro nome, para mim, é resgate de alma. Foi isso que fizeram com Ragnar, quando arrastaram seu corpo queimado e fundido às placas de metal da armadura: buscaram o auxílio de um guia dos espíritos.

***

- Vocês retornam da missão sem ao menos se aproximar do destino e esperam que o espírito de Apuaña fique satisfeito em mandá-los de volta? – desconfiou Asafe, o guia dos espíritos. – Os espíritos se tornam vingativos com o tempo, meus viajantes desavisados, eles invejam a liberdade que vocês têm de usar as pernas para caminhar de um lugar para o outro. A eles são reservadas apenas a possibilidade de ansiar por algo.

            O grupo havia tomado a decisão, seus rostos esboçavam tanto cansaço quanto incredulidade. Precisaram se convencer de que a desistência era a melhor das escolhas. Dias atrás, após embalsamar o corpo de Ragnar, eles tiveram de discutir sobre a possibilidade de fuga.

“A verdade é que, além de perdermos alguém que julgávamos essencial para o sucesso de nossa missão, temos de encarar o fato que tudo aos pés das Montanhas Tempestuosas é o domínio da primeira maldição.” – revelou Aramyn enquanto levantava o corpo apressadamente e o amarrava à tiras improvisadas nas costas de Freya, que havia concordado em carregá-lo pelas primeiras horas de viagem.

“... e se continuarmos, a tendência é que a tempestade se avolume.” – concluiu Khali, num sussurro quase involuntário, mas que foi ouvido por todos os reunidos. – “O que nos aguarda na boca do refúgio de Noroi?”

“Meu treinamento militar, mesmo diversificado do exercício de escudo e espada, me diz que as possibilidades são mínimas.” – acrescentou Varuz, ainda indignado com a luta anterior. Não pela morte de Ragnar, que ele a pouco conhecia, mas por sua incapacidade de conjurar magias decisivas devido à forte tempestade. – “Quando alcançarmos aquele recinto, o que enfrentaremos será um mar de água, raios e trovões e uma leva de inimigos tão superior que meus dedos já estão frios só de imaginar. A tempestade impedirá que eu use as magias certas. Mesmo a magia mais furiosa necessita de concentração para funcionar.”

“Perderemos também os arqueiros e as preces divinas de Aramyn.” – completou Khali, tateando o chão de lama e observando o horizonte cinzento pelas nuvens e gotas insistentes de chuva. Ao fundo, escutou o barulho de trovões ansiosos pela visita do grupo. – “Minhas flechas e as de Azanthe não são tão eficientes numa luta onde elas podem ser arrebatadas pela ventania.”

            E Aramyn propôs uma votação e, agora, eles estavam ali, a bordo de uma caravela que insistia em não navegar.

- Asafe, guia dos espíritos, eu espero que reconheça nossa atitude como racional. Se existia alguma possibilidade de sairmos vitoriosos, perderíamos muito mais do que apenas uma alma de nosso grupo. O peso da morte de Ragnar é demasiado grande até mesmo para aqueles que ainda não o encaravam como aliado ou amigo. Estamos decididos, se não recebermos a ajuda de Apuaña, faremos nosso caminho a pé.

            O guia dos espíritos e o grupo se encararam por segundos silenciosos e, até naquele momento, onde toda a atenção se dirigia à discussão, todos puderam ouvir os ruidosos trovões de além e sentir o frio que a lamentosa chuva trazia daquele pântano de lágrimas. Aramyn já havia presenciado silêncios tão inquietantes quanto aquele e foi justamente uma figura silenciosa que o quebrou.
Azanthe, sempre uma presença de plano de fundo, desviou-se de seu grupo e pôs-se tão perto do guia dos espíritos como nenhum dos ali presentes ousaria fazê-lo. Ajoelhou-se e estendeu a linha dourada de seu arco.

- Isso é o que de mais valioso carrego comigo. – a linha era, na verdade, um simples fio de cabelo aloirado, presenteado a ele pela rainha dos Bosques Rubros, um lugar que o arqueiro decidira chamar de lar.

            Ninguém do grupo decidiu interromper a súplica. Todos estavam surpresos com aquela atitude, embora a maioria não soubesse porque um simples fio de cabelo loiro seria capaz de convencer Asafe ou Apuanã do contrário.

Mas o guia dos espíritos é um ser de sabedoria e descobriu no gesto de Azanthe mais do que simples humildade. Deslizou o dedo indicador no aparentemente frágil fio de cabelo e surpreendeu-se com aquilo que somente ele podia ver.

- Talvez vocês tenham uma nova escolha e uma nova ajuda. – assentiu Asafe aceitando o presente com apreensão. Azanthe levantou-se e austero encaminhou-se para o plano de fundo da imagem, amarrando uma nova linha em seu arco.

***

            Horic havia se levantado e agora bebia um pouco da água do lago. De noite ele não podia enxergar mais do que um borrão de sua própria imagem. O contador de histórias parecia paciente a esperar o bardo saciar a sede.

- Todos os bardos, um dia, chegaram a ouvir histórias sobre Azanthe. Mas, com base no que andei escutando, muitos dos contos parecem falsos. Eles não se encaixam com o personagem, por isso, tudo me leva a crer que boa parte do conteúdo das histórias seja apenas lenda. Entretanto, ao Asafe aceitar o fio de cabelo que Azanthe ofereceu, prova que aquele era mesmo um artefato tirado das próprias madeixas da Rainha Sidhe.

- Quem sabe? – o estranho impôs um grande ponto de interrogação nesse questionamento. – Talvez o fio de cabelo fosse mesmo da rainha das fadas, talvez ele tivesse sido de outro alguém muito especial para o arqueiro. O guardião dos espíritos aceitou o presente, pois soube que Azanthe privava-se de algo raro e valoroso para ele. Asafe enxergava mais do que o sacrifício de ter de se livrar de um artefato, mas também o de estar disposto a tudo para alcançar aquilo que quer.

- Bem, se for verdade, ao livrar-se do cabelo da rainha, Azanthe limitou muitas de suas proezas. Os poderes do arco foram usados algumas vezes durante a história e todas as vezes seus efeitos foram imprescindíveis.

- Talvez Azanthe soubesse exatamente o que receberia em troca ao fazer aquele empreendimento.

- O que ele recebeu em troca?

- Dever cumprido e honra.

***

            Borlog se considerava justo. Exigiu um javali inteiro só para ele, mas dividiu os restos com seus soldados. O sangue da caça ainda pingava de suas presas e lábios rochosos quando ele saiu de sua tenda suja e malcheirosa. Ele viu os dois ogros responsáveis pela vigília da chama eterna fazendo exatamente o que ele havia mandado. Os demais se deleitavam discutindo uns com os outros e comendo os restos de qualquer coisa oferecida à eles.

O líder dos ogros já esperava por cinco longos dias o esvaecimento da chama. Cinco dias atrás, ele mandara um de seus capangas apagar o fogo e trazer o corpo que este consumia até sua barraca – adorava anões e quando reconheceu o príncipe naquele invólucro de chamas decidiu que a linhagem nobre da raça saciaria ainda mais sua fome eterna – tudo que recebeu foram os gritos agonizantes de seu súdito enquanto este tentava se livrar do fogo que o incinerou até que lhe restasse somente cinzas. A partir dali, Borlog decidiu que esperaria e montou acampamento ali, pelo tempo que fosse – o anão havia se tornado um prato ainda mais valoroso.

Borlog

            Seus capangas nem cogitaram discutir essa decisão. Eles haviam visto Borlog cuspir um véu de chamas – foi assim que Borlog derrotou Thrakadûr, o antigo líder da tropa de ogros – e agora o bruxo-ogro era temido pela própria raça. O que significava respeito na língua daqueles gigantes.

Borlog não era tão incapaz de raciocinar quanto seus súditos. Era uma figura ímpar entre os ogros, tinha, em suas veias, o sangue de alguma entidade e isso já era o bastante para ele se considerar um tipo de deus em terra. Sabia também que a chama iria apagar um dia, e a carne do anão estaria no ponto para ser degustada.

- Senhor, a gente fareja carne humana vindo pra cá! – avisou um dos ogros súditos, em sua estranha língua rústica.

- Quanto tempo? – perguntou Borlog, aparentemente despreocupado.

- Pouco. – respondeu o súdito, incapaz de discernir uma quantidade de tempo certa.

            Borlog assentiu e pensou o porquê de humanos virem até aquela região tão distante de suas terras. Não pôde discernir qualquer outra coisa que não fosse roubar-lhe seu futuro prato principal. Ele não podia deixar que isso acontecesse. Reuniu todos os seus súditos. Uma dúzia de ogros que haviam saído a mais de quatro meses de suas terras, nas ruínas do antigo império dos gigantes.

- Vocês protegem a chama eterna! – gritou Borlog quando todos os demais ogros estavam reunidos, pilhando pedras ao redor de tudo, criando empecilhos para usarem contra os odiosos humanos.

- Chefe, porque proteger chama que nunca vai apagar? Não lembra que qualquer toque nela mata? – arriscou palpitar um dos súditos de Borlog.

- A gente não deve subestimar humanos. – explicou Borlog e sorriu, pois pensara numa ideia bem melhor do que simplesmente expulsar os visitantes à murros e clavadas. – Vamos jogar todos na chama! – ordenou com olhos arregalados, gostando muito da própria ideia. Os súditos pareceram adorar a sugestão. Tudo o que tinham a fazer era esperar suas desavisadas vítimas.

            Khali havia subido em uma árvore a mais de cem metros distante do acampamento de Borlog. Cobria a face com uma das mãos evitando a luz do sol e perscrutava com seus olhos élficos a reunião de ogros, descobrindo que eles já estavam bem preparados para o encontro. Avisou aos companheiros.

- Ogros são burros. Eles não sabem se organizar. – desdenhou Freya, que já havia ouvido histórias o suficiente daqueles gigantes para julgá-los como incompetentes.

- Você também é bem burra, bárbara, e ainda continua de pé. – disparou Jack, recebendo um olhar desagradado de Freya.

            O grupo havia chegado ali, tão distante do rio Aomame e de Apuaña, com a ajuda de Asafe. O guia dos espíritos os levara até uma grande árvore cujo as raízes se desenterravam da lama e formavam uma toca suja e cheia de vermes rastejantes.

“Outros viajantes também caminhavam em direção às Montanhas Tempestuosas, embora estes não soubessem que iriam se deparar com a primeira maldição. Suas missões eram outras e vocês acabarão por tropeçar no que estes procuravam. Ragnar é um velho conhecido daqueles que foram derrotados. 
Um príncipe da raça anã e seus companheiros. Eles juraram um dia se reencontrar, mas isso jamais acontecerá fisicamente. Vejo o amigo de vocês, uma alma derrotada em escadarias de mármore, esperando por uma eternidade de súplicas. Vencido. Seu espírito se recusará à retornar para este plano, mas, talvez, o príncipe o convença.”

            Como se entrassem numa masmorra, um por um seguiram Khali, que foi o primeiro a entrar por entre as raízes quando o guia dos espíritos explicou.

“Nós, os xamãs de Chattur’gah conhecemos uma forma de guiar espíritos para novos corpos. O resgate da alma é algo raro de acontecer e precisa de um motivo muito maior do que se é possível explicar pela lógica. Tragam-me o corpo do príncipe e trarei o espírito de Ragnar novamente.”

- Esperem! – alertou Khali enquanto contava a quantidade de ogros ao redor da grande pira – Se meus olhos não me enganam, há um corpo sendo queimador. Parece ser o de um anão!

- Não há mais tempo! Freya, Khali, vocês são os mais rápidos nessa floresta e precisam chegar o quanto antes, nós... – adiantou-se Aramyn preocupado com o corpo que deveria ser resgatado.

- O corpo do anão não parece estar virando cinzas. – interrompeu Khali.

- Como isso é possível? – Freya já estava passos à frente de todos, pois acolhera a decisão de Aramyn para que ela enfrentasse os inimigos o quanto antes.

            Aramyn recordou-se de seus ensinamentos religiosos. No templo dos Anjos de Pedra – o lugar onde ele havia sido levado depois de sobreviver milagrosamente à ruína de Brastav – ele foi acolhido e lá não somente aprendeu sobre sua própria religião como também as demais. É necessário conhecer aliados e inimigos. Lembrou-se do velho padre Edmund mostrando-lhe uma câmara adornada de armas bem manufaturas, com entalhes religiosos. Seu tutor lhe explicara que aqueles eram presentes dos anões e que os anões eram os maiores forjadores de armas e armaduras existentes. Ainda jovem, Aramyn segurou firme em mãos uma espada bastarda – tão pesada que ele mal pôde conter a carga – admirou os anões por aquele ofício.

“Os anões receberam uma grande dádiva de Splendor, padre.”

“Os anões têm seu próprio deus, meu pequeno Aramyn. Eles, de fato, são aliados de nossa religião, mas seguem uma crença diversificada.”

O pequeno Aramyn franziu a testa devido aquela informação nova.

“Hefasto.” – respondeu padre Edmund com um sorriso pacífico no rosto – “Hefasto é um deus feito de fogo e chumbo, alguns dizem. Os anões afirmam que ele é um vulcão inteiro, cuspindo lava divina nos traidores. A raça mora no próprio deus, Aramyn.”
Levaria algum tempo para que o jovem clérigo pudesse entender todo aquele significado. Deixou passar algumas observações naquele momento.

“No reino vulcânico dos anões, eles usam o fogo divino. Uma chama que somente é encontrada lá e que é capaz de derreter qualquer metal ou minério. Eles dizem que a chama de Hefasto queima o corpo e o espírito e que um indivíduo de má fé que a tocar, morrerá incinerado por um fogo que nunca apaga.” – Padre Edmund continuou a explicar.

“Como os anões manipulam essa chama sem morrer?” – deixou finalmente sair uma pergunta enquanto depositava a espada bastarda novamente na pilastra onde ela estava.

“É um presente da raça, meu pequeno. Alguns deles fazem mais do que isso. Alguns deles portam a chama e a manipulam através da fé e da vontade.”
           
            Agora, longe em tempo e espaço daquele ensinamento, Aramyn sabia o que estava a perseguir.

- Mas, é claro, um príncipe, portador da chama de Hefasto. – pensou alto – É o corpo que precisamos resgatar.

            Sem mais perguntas, o grupo inteiro caminhou até o encontro de Borlog e seus capangas e resgatou o corpo do príncipe anão.

***

- Apenas isso? Lutaram e resgataram o príncipe? Porque você não dá mais detalhes?

- É necessário?

- Toda história de aventura precisa de ação alguma hora. – discutiu Horic.

- Você quer dizer, mais ação do que o grupo já andou enfrentando até agora?

- Como eles conseguiram o feito?

- Entraram no combate com afinco. Aquele dia não havia sombra ou tempestade. Nem raios ou trovões. O espírito dos heróis ainda estava manchado pela jornada, mas seus corpos estavam leves e firmes. Foi uma luta pouco demorada. Freya riu sadicamente quando acertou o rosto de um dos ogros, uma luta em que ela podia tornar-se o açougueiro de sempre, sem se importar se o próximo passo poderia ser o último. Varuz engatilhou suas magias e elas jorraram no acúmulo de inimigos, queimando e eletrocutando, porque agora ele era a tempestade. Jack e o Ceifador voaram em seus súbitos movimentos e desferiram cortes invisíveis, porém, letais nos súditos de Borlog. Cada flecha de Azanthe ainda se mostrava potente, cada disparo aprofundando-se na carne inimiga dolorosamente e o mesmo podia-se falar de Khali, que se aproveitou de toda a possibilidade de deslocamento, antes limitada pelas poças profundas de água, para encaixar seus disparos nos pontos letais que antes não conseguia enxergar. E Aramyn distribuiu suas preces, protegeu seus aliados com o escudo e abençoou a vitória, pois de todos ali, ele sabia o quanto aquele resultado ajudaria para levantar a moral do grupo. Borlog teve sorte. A sorte que um covarde tem uma vez na vida. Viu seus súditos sucumbirem à maldição humana e fugiu a tempo.

- Borlog ainda vive?

- Ele viveu suas últimas semanas. Não tinha mais a ajuda de um bando de ogros estúpidos, mas, era um feiticeiro e conseguiu um refúgio no alto de um monte pedregoso. Domou lobos cinzentos, naturais na região de Chattur’gah, pilhou crânios ao redor de seu território e uma bandeira anã rasgada que ele havia tomado de um campo de batalha abandonado. Mais tarde, Freya o farejou sozinha. Despediu-se do grupo apenas para embrenhar-se na selva e enfrentar a alcateia para, enfim, tomar a cabeça de Borlog como prêmio pessoal. Os bárbaros de Chattur’gah respeitam a vingança e desrespeitam os covardes. Um dia falaram isso para ela e, como eu disse, covardes só têm sorte uma vez.

            O sono estapeou o rosto de Horic. Não por menos. Ele havia passado três longos dias de caminhada no deserto, seria um verdadeiro herói se não estivesse exausto no final do dia. Entretanto, não podia permitir-se dormir, nem que sua atenção fosse prejudicada. Sabia que se agarrasse ao sono não acordaria até o amanhecer e, até lá, o estranho visitante desapareceria e, quem sabe, só poderia ser encontrado nos confins do mundo.

Levantou-se e foi lavar o rosto – a água estava mais fria do que a uma hora antes, foi deveras refrescante senti-la molhar sua garganta – tomou um pouco do fôlego dos justos e deixou o corpo cair no chão por um momento, para que absorvesse todas as informações que o estranho havia lhe contado naquelas horas ao redor da fogueira. Observou o céu escuro e estrelado. Admirou-se. Em nenhuma outra noite havia se ocupado em vê-lo com tanta admiração. Era, de alguma forma, mais limpo do que o habitual, como um minério de adamantina bruto, com a poeira prateada e ofuscante a chover em todo o espaço criando um tipo de mapa estelar.

            Voltou a atenção para o contador de histórias e o viu encarar a chama com uma certa nostalgia. Nos últimos encontros, enquanto Horic mantinha-se afastado da fogueira, o estranho parecia fascinado pela chama, perseguindo com os olhos as ondulações ígneas. Agora, ele parecia convencido de que o calor não era tão cativante assim, ou, talvez, sabia que a chama jamais lhe pertenceria. Horic o viu tentando tocá-la, mas o fogo simplesmente enfraquecia e perdia forma. Relutante em deixar a fogueira se apagar completamente, o contador de histórias afastava sua mão e o fogo tornava-se forte de novo.

- Você havia dito que os ogros não podiam tocar a chama que emanava do corpo do príncipe ou morreriam. O que os heróis fizeram para apagar a chama? – levantou-se Horic e aproximou-se da fogueira. Agora queria olhar diretamente nos olhos pálidos do estranho.

- Os heróis não podiam fazer nada. Quem o fez foi o próprio príncipe Daûgrin.

- Mas você disse que ele havia morrido.

- De fato, ele estava morto. Mas a morte não é a última consciência de um ser vivo. Aconteceu que, após serem bem-sucedidos, os heróis receberam a visita inesperada de Asafe, o guia dos espíritos. Este obrigou que todos nas proximidades mantivessem o silêncio e sentou-se fronte à pira sagrada, de olhos fechados e mente quieta. Mesmo que ninguém pudesse ouvi-lo sussurrar para os espíritos, os presentes sabiam o que ele estava prestes a realizar: o resgate de alma. Foi um silêncio duradouro e quem sabe quais as palavras que o guia dos espíritos pronunciou para convencer o príncipe do que deveria ser feito.

***

“Você é Ragnar, o exilado marcado pela mancha da perdição. Eu sou Daûgrin, príncipe entre os anões, portador da chama divina.” – apresentou-se o príncipe ao espectro entristecido de Ragnar nos degraus das escadarias de mármore.

            Ragnar se acordou do sono eterno das almas. Ele enxergou os portões de mármore, entalhados com rostos e runas anãs, vigiado por imensas estátuas forjadas do aço divino. A angústia invadiu seu peito. Ele podia reconhecer seu cruel destino.
“E a ti será dada uma segunda chance, pois minha linhagem necessita de um representante. Meu corpo a mim, não mais pertence, pois, minha alma não pode esperar por mais tempo e a chama que me protege definhará e meu corpo se tornará um com a terra e minha missão estará perdida, assim, minha entrada nas Hostes Eternas, negada.”

            Ragnar sentiu o calor tocar-lhe o ombro quando o espectro do príncipe Daûgrin o encostou. Sentiu medo. Um medo muito maior do fracasso.

“Não tema, meu escolhido. Sei da tua jornada, a mancha em teu espírito quase se desfaz por inteiro. Os anões de nosso lar não tardarão a perdoá-lo. Continue sendo justo e terá de volta o anseio pelos portões de mármore.”

Distante dos portões das Hostes Eternas, dos espectros e do medo, a chama de Hefasto enfurecia-se diante Asafe. Azanthe ajoelhou-se e fechou os olhos, percebeu que fazia muito tempo desde que não repetira suas orações a Splendor, muito menos os juramentos de sua ordem. O fez de qualquer jeito, saltando entre as estrofes perdidas de seu pensamento. Aramyn o notou e decidiu fazer a mesma coisa. Familiarizado com a vida espiritual, Khali balbuciava algumas palavras em élfico, repetia um mantra que seus irmãos chamavam de “aquietar os espíritos” e, mesmo tão distante de casa, tinha de se prender a alguma crença.

            Foi em um repentino desfazer de luzes que a chama de Hefasto cessou e deu caminho a um príncipe atordoado, ainda envolto pelo calor das chamas. Ele ergueu a cabeça e os ombros, olhou para as próprias mãos e sentiu os músculos contraindo-se em reação aos seus movimentos. Aquele era o príncipe e também Ragnar, o exilado. Almas resgatadas, linhagens perdoadas.
“Os espíritos nos abençoam com certas escolhas. Seu retorno para estas terras, Ragnar, não é vão.” – Asafe comentou e foi a primeira frase que Ragnar escutou em seu novo corpo.

***

- A essência de Ragnar retornou no corpo do príncipe? – perguntou o ansioso Horic

- Se é assim que você enxerga as coisas, meu caro ouvinte.
- Então, a linhagem do príncipe Daûgrin agora pertence à Ragnar. Isso significa que, um exilado entre os anões pode ser um detentor da chama de Hefasto?

- Quem sabe? Talvez, Ragnar nunca seja espirituoso o suficiente para controlá-la, talvez o destino se encarregou de trazer o espírito certo para o corpo certo. Seja qual for a sua escolha, não tornaremos a ver a chama de Hefasto até que ela se torne uma opção real para o exilado.

- Com Ragnar de volta, os heróis terão novas atitudes perante a tempestade eterna ao redor do refúgio de Noroi?

- De certo ficaram mais confiantes, mas o retorno de Ragnar não mudaria o resultado do combate. Eles pereceriam de qualquer forma. A figura que mudaria a direção de toda a história ainda está para aparecer.

- Quem seria esse personagem, ou criatura... ou, coisa? – Horic não se esforçava para esconder sua curiosidade.

            O contador de histórias levantou-se. O manto a varrer os grãos de areia do deserto, o ar ao seu redor a enfraquecer a chama da fogueira.

- Estivemos próximos por tempo demais. Para nossa segurança, devemos nos encontrar em outro lugar.

- Como? – reclamou o indignado Horic.

            Horic reconhecia que aquele era o ponto final do capítulo. Assim como da outra vez, o estranho viajante contador de histórias iria desaparecer após lhe indicar um caminho incerto. Ele havia fisgado o peixe certo – Horic era demasiadamente curioso, especialmente com histórias que nunca haviam sido contadas inteiramente. Não tinha escolhas, procuraria o estranho seja lá onde ele se metesse. Contentava-se, pois sabia que o próximo encontro, seria o último.