quarta-feira, 29 de julho de 2015

Relâmpagos que desabam na noite

            


As nuvens cinzentas finalmente deram passagem à chuva torrencial daquele princípio de noite que a muito Aramyn havia presumido ser sangrenta. Era por isso que seu corpo ainda sustentava a armadura metálica e, vez por outra, suas mãos emolduradas pelas manoplas seguravam firme as amarras do escudo com o símbolo do dragão empalado.

Uma solitária carruagem atravessava a noite desafiando os perigos que esta proporcionava. Um par de cavalos, guiados por uma mulher ruiva de corpo desenvolto e de beleza pouco notória - uma vez que ela nunca se esforçava em ser simpática - estreitavam-se pelos caminhos tortuosos que poucos notariam como uma trilha.

- ‘Cê tem certeza que não vai perder a trilha dessa vez, bárbara? Você nos meteu num poço de merda a dois dias atrás. Esqueceu o caminho de casa? – indagou Jack, o halfling, da forma franca e ríspida que ele costumava atrever-se a falar com todo mundo.

- Eu sou uma guerreira da minha tribo, não uma guia. Você tem sorte que eu tenha algum treinamento para seguir trilhas, seu rato miserável e saltitante! – respondeu igualmente áspera a bárbara, tinha seu machado sempre à espreita caso algum dia o halfling finalmente cedesse aos seus insultos e tentasse atacá-la desprevenida. Felizmente, isso nunca havia acontecido.

Houve um minuto de silêncio enquanto os ouvidos do grupo eram preenchidos pelo barulho dos pingos da chuva que ficava cada vez mais forte e obrigava todos a mergulhar numa escuridão fria e inevitável.

- Estamos no caminho certo apesar de tudo, seu verme! – replicou Freya, ainda muito afetada pelo disparate do halfling.

- Você está indo bem Freya – afirmou Aramyn, já acostumado demais com a troca inofensiva de ofensas entre a dupla que já não mais interpunha sua voz para interrompê-la.

- Tá ficando muito escuro e essa chuva tá cagando tudo! – adicionou Jack dando uma ligeira olhadela para as redondezas sombrias cercadas de planaltos, rochas que saltavam da terra verde e marrom como se fossem os dedos de um colosso – Acho que tá na hora de você criar aquela casa mágica, pedreiro.

            O halfling olhou para as sombras, mas, desta vez, eram as sombras de dentro da carruagem, onde o último membro da equipe mantinha-se em silêncio profundo, como se esperasse pacientemente pelo nada.

- Levanta a bunda do chão, pare de curtir o seu silêncio e faça aqueles truques bacanas, mago. – exigiu Jack.

- Não. – foi o monótono sussurro ecoado da boca de Varuz, quase inaudível por causa do barulho da chuva.

- Porra é essa? O mago não quer mais ser útil nessa droga de grupo? – comentou indignado o halfling.

Mas o silêncio permaneceu.

- Não ouviu o que eu disse, Varuz? Você anda limpando direito seus ouvidos mágicos?
- Sim. – acompanhado de um silêncio pouco revelador.

- Então, vai conjurar a maldita magia agora?

- Não. – uma negação acompanhada pela indignação de Jack.

            É claro que Jack Turner iria tomar maiores satisfações, mas foi interrompido por Aramyn a meio caminho de seus passos pesados.

- Veja ao nosso redor, Jack. Um vale no meio de uma planície chuvosa. Poças de água a cada metro. A estrutura da cabana mágica que Varuz pode conjurar não é imune às mudanças do nível do terreno. Poderíamos morrer dentro dela.

            Jack ouviu Aramyn e observou Varuz ficar satisfeito com a explicação.

- Parem com essa baderna aí e venham ajudar aqui fora! – interrompeu Freya puxando as rédeas dos cavalos e obrigando-os à parar.

- Perdeu a trilha de novo? – zombou o halfling.

- A trilha está exatamente onde eu quero que ela esteja, mas há alguns empecilhos no meio do caminho. Eu acho melhor você se esconder na carroça e esperar a briga acabar. – a bárbara solta as rédeas e empunha seu machado de lâmina larga quase inteiramente feito dos ossos afiados de alguma criatura dos Bosques da Madeira-viva. Fazia algum tempo que a arma era uma amiga fiel dela.

            Jack e Aramyn aguçaram seus olhos e, com a repentina ajuda da claridade de um relâmpago que iluminou o horizonte escuro e chuvoso no momento exato, conseguiram discernir as silhuetas de criaturas humanoides selvagens se arrastarem pelas planícies ralas. Duas dezenas delas. Um grupo de lobos negros com intensos olhos vermelhos liderava a marcha, montados pelos seus respectivos cavaleiros.

- Orcs! Já estava na hora da treta, mesmo! – Jack sorriu intercalando o barulho dos passos ritmados da marcha sangrenta dos orcs, empunhando seu sabre e desenrolando sua capa esvoaçante. Um pouco de vento o obrigou a firmar o extravagante chapéu em sua cabeça, cujo ele insistia em vestir mesmo sendo um tamanho maior que seu número.

            Freya não costumava atrasar lutas e já estava alguns passos adiante com a arma em riste e botas sempre sujas de lama. Varuz balbuciou algo na escuridão da carruagem que foi ouvido apenas por Aramyn. O clérigo conhecia aquelas palavras o suficiente para firmar seu escudo e em ordens pouco exigentes alertou:

- Tomem distância da carruagem. Não queremos que ela seja o alvo dos nossos inimigos. – desceu da carruagem e foi ultrapassado pela prepotente acrobacia do halfling em suas piruetas performáticas – Freya! Não faça investidas impensadas! – alertou o clérigo enquanto esperava o resultado do estrago de Varuz.

            O interior da carruagem ficou iluminado por um breve brilho ígneo que se aglomerou como os vestígios de uma tocha sendo acesa nas mãos do mago e, após um último sussurrar de comando, ela partiu, às pressas, atravessando escuridão, chuva e noite, em direção ao grupo de orcs.

            Um dos orcs, montado na criatura lupina de olhos rubros, ergueu um cajado tortuoso com uma das extremidades emolduradas por um chocalho feito de crânios esmagados, e com voz de comando emitiu uma ordem.

Aramyn vestiu o elmo de prata e o barulho da chuva se somou aos gritos dos orcs. Ele podia entendê-los. Mais do que isso, podia prever o que eles pretendiam fazer. A centelha ígnea arremeteu-se contra os orcs e, ao encontrar o primeiro obstáculo, enfureceu-se drenando cada molécula de água e transformando-as em vapor instantâneo que foi consumido por uma repentina explosão incandescente e barulhenta que varreu as esperanças inimigas.

A bola de fogo ainda mantinha seu serviço quando todo o calor foi repentinamente absorvido pelas órbitas fantasmagóricas que circundavam o interior dos crânios que habitavam o topo do cajado do orc xamã.

- Um dos orcs é xamã, Varuz. Ele tentará dissipar suas magias! – Adiantou Aramyn enquanto alcançava Freya e Jack a alguns metros distantes da carruagem.

- Percebi. – concordou o mago ligeiramente indignado com o fato de o clérigo pensar que ele não havia notado algo tão lógico. Provavelmente Aramyn havia se esquecido de que Varuz havia nascido e treinado em Mordae, o reino da alta magia e, por isso, ele bem sabia que o xamã tivera apenas sorte. Ou, talvez, esse assunto fosse apenas o ego inflamado do mago da guerra.

Resolveu se desafiar. Balbuciou as mesmas palavras e as mesmas fagulhas se aglomeraram em suas mãos. Os orcs não iriam resistir a mais uma de suas bolas fogo.

- Aqueles desgraçados estão vindo devagar demais! – reclamou Jack.

- Apesar de o xamã ter absorvido a bola de fogo do Varuz, parte de seu grupo foi, visivelmente, atingido pelas chamas. – observou Aramyn.

            Freya segurou firme seu machado e adiantou-se:

- Estão fracos! É hora de investirmos! – gritou sem esconder exagero, esperava que pelo menos um dos inimigos reconhecesse sua segurança no combate. E ela estava segura. Mais do que isso, ela ansiava pelas cabeças que iriam rolar diante seu machado de marfim.

- Espere, vamos aproveitar a segunda tentativa de Varuz – Aramyn tentou acalmar seus nervos de combatente.

            Na concha das mãos do mago de Mordae faiscava o vestígio de seu poder, lancetando as sombras que emanavam ao redor do grupo com uma luz fraca que começava a se enfurecer. Porém a mesma escuridão molhada teimava em lutar contra qualquer brilho emitido tão pesadamente que o grupo pode senti-la à espreita, pronto para agarrá-los.

Os pingos de chuva cessaram como se respeitasse a concentração de Varuz e o silêncio foi acompanhado de um fôlego abrupto que partiu as sombras em dois. Freya gelou a espinha, seus sentidos sempre alerta haviam notado não tão antecipadamente o que estaria para acontecer. Suas memórias foram invadidas pela dor de seus ossos sendo esmagados e sua vontade teve de lutar contra o medo que a fez sucumbir no passado. De olhos tensos ela sussurrou:

- Gigante...

            Uma clava caiu do céu como um relâmpago sendo empunhado pela criatura humanoide gigantesca com um esboço satisfeito estampado no rosto. Freya jogou seu corpo evitando o dano e, ao seu lado, Jack rodopiava atônito enquanto sua capa esvoaçava acompanhando a pressão atmosférica condicionada pelo peso do golpe do gigante. Aramyn desequilibrou-se um pouco e manteve estabilidade enquanto lamentava não poder defender Varuz do impacto retumbante.

            A bola de fogo foi, então, arremessada sem mira, contornando a escuridão e alcançando o céu noturno e tempestuoso numa explosão de fagulhas que se desmancharam feito fogos de artifício. As labaredas lambiam o céu quando o grupo notou que orcs e lobos negros agora investiam com velocidade violenta. Como se o festival de chamas tivesse sido o estopim da corrida para matança.

Ainda desprezando os segundos pasmos alheios, o gigante analisou o estrago embaixo de sua clava – nada mais que um rústico tronco de árvore açoitado – e livrou-se do corpo do mago de guerra jogando-o em direção a um ponto onde sua arma pudesse continuar o esmagamento em seu próximo golpe.

            Varuz abria os olhos vagarosamente enquanto analisava a possibilidade de conseguir se mexer novamente. As gotas da água da tempestade caíam violentas em seu rosto e ele não sabia se o frio ao seu redor era devido ao ambiente noturno em que ele se deitava ou se era sua alma lutando para continuar agarrada ao corpo.

Fez isso vagarosamente, seus dedos trêmulos e doloridos tentando alcançar seus pertences arcanos e improvisar uma magia que pudesse protegê-lo de um inevitável fim. Então encarou a face sádica do gigante de dentes apodrecidos e corpo homúnculo, observando o saco de ossos lutar contra a agonia da dor. O gigante descreveu o mesmo ataque esmagador de segundos atrás e Varuz sabia que não teria tempo de reagir. Esperou a morte fria e pesada.

A morte que foi impedida por um estrondo metálico ecoante.

            O escudo com a imagem do dragão empalado desafiava forças com a clava do gigante. Aramyn havia se interposto entre a criatura de corpo medonho e seu aliado, sustentando milagrosamente o ataque. Apenas sua fé permanecia inabalável e seu corpo se esvaía em cansaço enquanto disputava o jogo de esmagamento com o gigante. Suas pernas arquejaram e seu corpo seguiu os demais sinais de enfraquecimento.

- Corra Varuz, saia daqui! – gritou o clérigo entredentes enquanto enfiava sua espada contra o joelho da criatura.

***

            A uma dúzia de passos distante do gigante, os lobos negros saltavam contra Freya, com saliva percorrendo suas presas afiadas, sarnas se desenvolvendo em seus pescoços e pelagem arrancada pelas súbitas chamas conjuradas por Varuz.

A bárbara impediu o avanço do primeiro lobo interpondo seu machado contra o peito volumoso e negro da criatura. Em um impulso, arremessou montaria e cavaleiro para o lado e, então desviou-se de uma segunda mordida que se projetava contra seu pescoço. Freya pôde sentir o mau hálito quente da criatura invadir suas narinas, enquanto pisoteava o chão em busca de um passo seguro afim de desviar seu ombro das presas de outro lobo.

            A chuva para Freya agora era um amontoado de lobos negros e orcs praguejando contra sua vida. Tentou afugentá-los afim de garantir uma brecha na qual pudesse girar seu machado e acertar o crânio de sua primeira vítima, mas surpreendeu-se quando um dos cinco lobos negros abocanhou seu braço enquanto rosnava e deliciava-se com as primeiras gotas de sangue que caíam da bárbara.

O cavaleiro na montaria esmordaçante carregava o estandarte do grupo de orcs – nada mais que uma bandeira cinzenta e suja que já havia perdido o esboço dos crânios rachados que os orcs daquela região costumavam ostentar – e o fincou no chão dando ordens à sua cria de estimação que devorasse aquela caça inteira.

            Outros lobos negros se juntaram ao banquete, enquanto Freya mantinha-se no chão pisoteada por garras afiadas tentando livrar-se do aprisionamento canino antes que seu corpo pagasse o pacto por sua fraqueza. O orc de estandarte rosnou, como se pudesse falar a língua dos lobos, e todas as demais montarias selvagens se afastaram esperando a primeira se refestelar no sangue da vítima.

Uma silhueta saltou sobre as costas do orc e uma lâmina afiada, lenta, porém efetiva, degolou o líder com presteza.

- Parece que você está precisando da ajuda do ratinho saltitante, bárbara. – insultou Jack, ainda livrando-se do corpo sem vida de seu oponente.

- Você é um intrometido! – ganiu Freya, segurando o machado de marfim com firmeza – Aqui está tudo sobre controle! – fincou a lâmina da arma profundamente no peito sarnento do lobo negro que havia lhe mordido e desenhou um caminho de carne mutilada e sangue até que pôde desvencilhar-se de sua escória.

            Os demais lobos negros avançaram feito vultos famintos, sem a necessidade do comando de seus cavaleiros. A lâmina do machado começou a descrever mortes violentas tingidas de vermelho, arrancando o maxilar de um segundo lobo negro e alcançando o pescoço de um terceiro. Os cavaleiros saltavam de suas falecidas montarias tentando encontrar a pele desprotegida de Freya com seus machados tribais. Mas os fracos orcs não eram o foco da atenção da bárbara.

            Depois de acotovelar as fuças de um guerreiro orc, Freya varreu as pernas do penúltimo lobo negro, saltou por cima dele, açoitou seu cavaleiro na boca do estômago, fazendo chover vísceras, e afundou a lâmina na montaria aleijada. O combate de Freya era assim, sujo e violento. Banhado em sangue e fúria. Ela havia nascido em Chattur’gah, a selva de todos os ancestrais e, em luta, carregava o espírito de Zoe, a divindade selvagem que espreita o lar das tribos bárbaras.

            Chutou um dos orcs feridos no peito e o viu esparramar-se no chão, em cima de tantos outros cadáveres. O último lobo negro a encarava com presas salivantes, olhos sangrentos e ferocidade faminta. Ela deseja trilhar seu caminho até a fera e finalizar aquela luta. Dois orcs vieram ao seu encontro antes disso, ela se desviou do primeiro e em um movimento bruto agarrou seu pescoço e o lançou contra o nada, depois ouviu o barulho do crânio do segundo orc intrometido rachar-se quando o cabo de sua arma atingiu-lhe o rosto.

Houve um breve período onde as duas feras – a bárbara e o último lobo negro – se encararam, para depois, como que por consentimento um do outro, partirem para uma última investida, cuja o corpo do lobo negro voou metros no ar enquanto sua cabeça tomava distância rolando e sendo pisoteada pela chuva sem piedade.

- Eu sou filha de Zoe! Vocês precisam fazer mais do que isso! – gritou a bárbara num misto de euforia e fúria.

- Ô, filhinha de Zoe, a luta não terminou ainda! – reclamou sarcástico, Jack, como uma sombra que se misturava à escuridão, ceifando os inimigos.

            Havia uma dezena de orcs que se amontoavam ao seu redor tentando atingi-lo com seus machados, mas tudo o que estes conseguiam era fincar suas lâminas no chão enlameado e perseguir, tão lentamente com os olhos, as acrobacias rápidas do halfling.
Vez por outra, a ventania lhe carregava o chapéu extravagante e o fazia se deslocar ao seu encontro, agarrando-o com uma mão antes que este pudesse se sujar caindo no terreno sujo. O vulto apenas se deslocava e os inimigos eram ceifados na garganta, rosto e pernas, como se cada movimento do pequeno fosse acompanhado de uma rajada de vento cortante. Mas havia mais que um segredo nisso.

            Jack Turner era um Irmão do Manto. Um membro pertencente a uma guilda responsável por guilhotinar inimigos específicos. Sua principal arma era o manto de veludo, agora pesado pela chuva, mas ainda fatal. A vestimenta possuía uma lâmina sutil que se projetava e com a ajuda de seus movimentos acrobáticos, rasgava a carne e jorrava o sangue das vítimas.

            A capa havia se enrolado no pescoço de um orc e agora seu corpo sentia o sangue quente se derramar sobre seus pés. O halfling encerrou seu movimento estocando com o sabre, ainda manchado de sangue do orc de estandarte, uma segunda vítima que se somou aos demais cadáveres jogados no chão. 

O bando de orcs abriu caminho para o xamã de presas que saltavam da mandíbula em proporções bem maiores que a dos orcs comuns. A criatura de maldições chacoalhou seu cajado de crânios e praguejou contra Jack.

- Vem cá, coisa fofa, você vai ser o próximo. – o pequeno indagou para si mesmo, em tom de piada infame.

            Uma fila de lâminas de machado se formou em frente ao halfling enquanto o xamã cuspia ordens para seus súditos, mas aquela disposição podia ser facilmente estudada por Jack. Ele lutava assim, analisando o próximo passo do inimigo. Sabia exatamente onde a arma iria tentar acertá-lo. Sabia exatamente aonde ele deveria tomar impulso para o salto que lhe renderia uma esquiva. Sabia exatamente onde a fina lâmina de seu manto iria se desdobrar e acertar o ponto vital de suas vítimas, mesmo sob a pesada chuva. Como se previsse também a direção do vento.

Firmou seus pés no chão molhado e preparava-se para a aproximação fatal quando o chão tremeu e um baque estrondoso fez o halfling desequilibrar-se por tempo o suficiente para que um trio de orcs bem preparados aproveitasse a lacuna de sua alerta. A lâmina de um machado atingiu sua capa prendendo-a contra o chão, obrigando Jack a danificar sua arma afim de esquivar-se dos dois ataques posteriores.

- Jack! Onde você está? – o halfling podia reconhecer a voz enfraquecida pelo som dos relâmpagos que pareciam ficar cada vez mais próximos – Precisamos de você!

Era Aramyn.

- “ Precisamos de você! ” – chacoteou Jack tentando imitar a voz do clérigo – todos precisam de mim. O mundo precisa de um herói como eu! – cochichou para uma plateia surda enquanto se esquivava de uma dupla de ataques.

            Um relâmpago partiu o céu e faiscou nas rochas além dos montes que circunvizinhavam a batalha. Jack sentiu seus tímpanos zunirem e o golpe do cajado do xamã atingi-lo na cabeça. Uma contusão que partiu sua sobrancelha e deu passagem a um fino risco de sangue.

Não conseguiu abrir os olhos antes de receber uma segunda pancada no ouvido que quase o ensurdeceu de vez. Machados desceram ao seu encontro. Agora vinham de todas as partes. Cada esquiva de Jack parecia enfraquecer e ele esperava a arma vindoura que iria atingi-lo, talvez mortalmente. À sua frente o xamã balbuciava silenciosamente enquanto cuspia na própria mão e lambuzava seu cajado com o escarro, se aproximando com o esboço sádico de sorriso no rosto. O golpe que eliminaria sua primeira vítima.

Jack rodopiou e uma lâmina larga de machado quase o alcançou no ar. O pequeno caiu ajoelhado no chão sujando suas mãos e, finalmente, abandonando o chapéu que pousou lentamente no chão molhado. Pingos de veneno secretavam pelo cajado de crânios do xamã e meia dúzia do resíduo caiu em seu rosto.

            O halfling sentiu o líquido quente encharcar seu rosto e livrou-se dele com uma das mãos molhadas. Ainda enxergava turvo quando focou suas mãos ensanguentadas. Sangue que o orc xamã agora expelia enquanto caía morto no chão. Sua magia, conjurada no cajado, se desperdiçava enquanto Freya o atravessava com o machado de marfim.

- Varuz... – a bárbara carregou mais dois orcs enquanto puxava o fôlego - ... na bolsa do gigante!

            Jack assentiu com a cabeça e, num salto, abandonou os orcs restantes para que Freya encerrasse o festim de sangue.


***

            Aramyn curvou o corpo para a direita e, testando seus limites, livrou-se do golpe esmagador do gigante. Ainda ajoelhado, atando as tiras de couro que prendiam o escudo em seu braço, o clérigo precisava focar-se no grupo inteiro. Tocou o broche oferecido pelo Templo dos Anjos de Pedra e sua capa azulada pareceu desenrolar-se, desocupando seus ombros protegidos pela armadura metálica. Murmurou uma prece implorando pela bênção de Splendor. Esse era seu deus. O deus morto. Um deus que desaparecia aos poucos após os resultados da última guerra de Azran.

 Fazia algum tempo que aquela criança havia sido encontrada nos escombros de Brastav. O grupo de buscas já havia desistido de procurar algum sobrevivente, quando os ouvidos de Lorde Steins, um paladino experiente, manchado pela idade e pelo seu tempo de serviço para igreja, ouviu os prantos de um bebê sufocado por centenas de rochas arruinadas. Ele também foi o primeiro a segurar a criança nos braços e, por fim, mandá-lo ao orfanato do Templo dos Anjos de Pedra, onde Aramyn foi batizado e treinado. Foi onde o clérigo prevaleceu a sua fé e especializou-se em enfrentar as Hordas Trôpegas, tornando-se um iniciante exorcista.

            Um brilho dourado tingiu a armadura de Aramyn enquanto sua mão direita tracejava no ar o símbolo da cruz-espada. Logo, a luminosidade sagrada cobriu feito manto suas orações e elas foram dispersas, sobressaindo-se ao barulho da tempestade e alcançando os ouvidos de seus aliados e inimigos com bênçãos e malogro. Observou Freya ceifar feito açougueiro os lobos negros e a silhueta veloz de Jack Turner desviar-se de tudo. Entre todos, Varuz ainda era o que mais precisava de ajuda.

Dentro de seu elmo, o barulho dos pingos de chuva foi abafado. Agarrou a espada fincada ao chão enquanto a breve oração estava sendo executada e com a lâmina atingiu o próprio escudo visando fazer algum barulho que chamasse a atenção do gigante. Interpôs-se novamente entre inimigo e aliado e gritou:

- Sou o escudo de Splendor! Enfrente-me criatura!

            Varuz contemplava a quietude da noite tempestuosa. Sim, a quietude. Os magos de guerra do reino da alta magia eram capazes de se concentrar tão profundamente que podiam se esquecer da dor, dos pingos violentos de chuva, dos ventos de uma tempestade e do barulho ensurdecedor de um campo de batalha. Aquela noite não era a dele, mas, afinal de contas, ele nunca guardava boas recordações das noites. Ele era mais do que um militante de Mordae. Ele havia sido treinado por um membro do Círculo de Alamut. Carregava cicatrizes e queimaduras em todo corpo devido a isso. Em alguns sonhos, relembrava do hálito ácido do dragão de escamas esverdeada, um desafio que ele havia superado com seu falecido mentor.

            Lembrou-se de pássaros. Dos pássaros livres buscando o caminho de casa. Gesticulou e foi acompanhado por um pio estridente que se somou a uma dezena de outros enquanto globos de luz azul apareciam fantasmagóricos ao redor de si mesmo. As esferas luminosas desenrolavam pequenas asas e as batiam numa velocidade sônica. Cada um rodopiando desorganizadamente, esperando pela chance certa de alcançar suas vítimas. Um presente de mentor. Uma magia lapidada, concentrada em reconhecer os aspectos das energias primais. Aqueles pássaros rasgarão pele e se afundarão na carne retaliando tudo em seu caminho. O gigante reconheceu o estardalhaço chilreante vindo da escuridão à frente. Recordou-se de sua primeira vítima, ainda de pé e, à passos pesados, ignorou Aramyn e suas ameaças divinas.

            O clérigo livrou-se de ser pisoteado e fincou a lâmina acima do calcanhar da criatura errante. Aramyn segurou firme o cabo da espada que agora era um espinho doloroso. O gigante tropeçou enquanto sentia a carne rasgar-se, mas enfim manteve-se de pé. Por teimosia, acelerou seus passos afim de alcançar o mago de guerra, como se a luta agora fosse entre a teimosia de alcançar e ser impedido de fazê-lo.

Sem a necessidade de um segundo comando, Varuz assistiu seus pássaros feitos de magia voarem feito espiral em direção ao gigante. Eles encerraram suas rápidas batidas de asas e planaram ao redor da vítima procurando o melhor lugar para atacar. Para a medonha criatura, os pássaros eram como moscas, difíceis de serem agarradas, mas diferente destas, cada deslizar de suas asas sobre a pele, rasgava e as faziam buscar por carne. O mago pôde se satisfazer enquanto o gigante ajoelhava-se, sucumbindo à dor, arquejando enquanto os pássaros pousavam sobre ele. Aramyn  livrava sua espada do calcanhar do gigante e recomponha-se, a luta parecia ter sido controlada.

            O gigante livrou-se de sua clava e segurou o peso do próprio corpo, afanou um dos pássaros azuis e ele simplesmente desapareceu, não antes de causar algum estrago. Tomou fôlego, curvou-se, finalmente, e varreu sua fronte com a palma da mão gigantesca atingindo Varuz com violência arrasadora. O mago de guerra foi lançado metros no ar e chocou-se contra o chão de forma desastrosa, rodopiando e sentindo seu corpo quebrar-se em vários pedaços, feito vidro.

Os pássaros azuis piaram uma última vez e desapareceram. O clérigo saltou para as costas arquejadas do gigante e o golpeou entre as costelas, arrancando mais um jorro de sangue enquanto gritava:

- Jack, precisamos de você!

            O gigante levantou-se e o corpo de Aramyn foi lançado contra o chão. O clérigo suportou o peso da queda com o escudo e analisou os próximos passos do gigante. Vitorioso da teimosia, o gigante afanou o corpo de Varuz, levantando-o desajeitadamente pela perna e observando seu estado. Ele não se movia. Jogou-o em um saco de couro preso à sua armadura rústica e encardida, cujo também guardava dezenas de quinquilharias – dentre estas, os restos mortais de outras pequenas criaturas abatidas.

Agora a criatura voltava para sua segunda vítima. Alcançou sua clava e Aramyn recolheu-se atrás de seu escudo, firmando os pés e esperando o baque inevitável que veio sem mais espera, afastando pingos de chuva e a resistência do ar. O escudo com o símbolo do dragão empalado contorceu-se, as manoplas apertaram os dedos do clérigo e ele sentiu o estalo de alguns pequenos ossos se quebrarem, os pés afundaram-se no chão e arrastaram o corpo de Aramyn na direção exercida pelo gigante.

Mas Aramyn manteve-se estável. De pé. Ferido e cheio de fé, interpondo-se entre o gigante e o vulto que agora saltava tomando impulso em seu ombro para alcançar o braço do inimigo. O gigante tentava afanar o novo desafio, mas em um rodopio realizado no momento certo, Jack Turner usou o braço da clava para alcançar altura e jogar-se dentro do saco de couro.

            O halfling viu-se nadando em restos de corpos, pedras lascadas, galhos mascados e resquícios de uma carruagem completamente destruída. Precisou tatear até encontrar o corpo inerte de Varuz, em seguida, com o sabre, rasgou a base da bolsa de couro e permitiu que algumas bugigangas caíssem no nada.

- Aramyn, a coisa tá fodida aqui! Vem pegar seu amigo! – gritou Jack, sustentando o corpo de Varuz para que não caísse junto com a sujeira imprestável contida na bolsa do gigante.
            O clérigo não pensou duas vezes. Deslocou-se entre as pernas do gigante e a clava opressora atingiu o chão após um rolamento bem executado de Aramyn. O corpo de Varuz desabou e o clérigo agora o tinha em mãos. O gigante buscou uma forma de pisoteá-los, mas foi surpreendido por uma estocada:

- Coisa fedida. Você sujou minhas roupas! Porque não enfrenta alguém do seu tamanho agora? – riu vaidosamente, orgulhoso de sua piada engenhosa.

            Torcendo para que o plano de Jack desse certo, Aramyn depositou o corpo de Varuz no chão, apoiando a cabeça em seu joelho e derramou um pouco de líquido oleoso na testa do aliado, murmurando as preces certas e, milagrosamente, assim como todas as magias que os clérigos ostentavam, reuniu as reservas de energia do mago de guerra, braços e pernas estalavam, ferimentos, mesmo que ainda sangrentos, fechavam aos poucos e o semblante pálido da morte vindoura desaparecia do rosto de Varuz.

Freya eliminou o último orc e tomou cuidado para não pisar nas vísceras escorregadias que agora empoçavam todos os lugares. Firmou as mãos em seu machado de marfim, semicerrou os dentes e, ainda em excesso de fúria, fitou o gigante e partiu numa investida decisiva. Jack Turner livrou-se das mãos do gigante e encontrou algum nível de segurança agarrando-se nas costas do inimigo, sacolejando como uma formiga.

            Os olhos de Varuz se abriram e não tinham mais a cor escura de sua íris. Aramyn podia enxergá-los fervilhando de ódio. Notou também que a pele do mago de guerra tornava-se cada vez mais quente e, sem um agradecimento prévio, Varuz levantou-se, empurrou o clérigo e caminhou decidido até o gigante.

- Freya, pare! – alertou Aramyn, mas a verdadeira razão da bárbara interromper sua investida, foram as chamas que começaram a incendiar Varuz e transformá-lo em uma fogueira nômade prestes a perder o controle.

- Puta que o pariu! O que esse maldito mago-tocha pensa que vai fazer? – admirou-se Jack ainda livrando-se dos agarrões do gigante.

            Os relâmpagos cessaram em respeito à iluminação ígnea e furiosa da noite. O gigante esqueceu o halfling em suas costas e firmou seu olhar em Varuz que balbuciava uma de suas magias menos sutis. A criatura uniu as duas mãos numa tentativa de golpe mais efetivo, mas antes de alcançar o alvo, as chamas engolfaram-no como um turbilhão de brasas incandescentes. Jack Turner tomou um impulso veloz e livrou-se da explosão aliada.

O gigante tentava alcançar o mago, mas o impacto explosivo arrastava seu corpo e o obrigava a proteger os olhos. Porém, todas as defesas eram vãs. O fogo interior de Varuz expandiu-se, abandonando seu estado físico e, em volúpia, abraçou o gigante rompendo carne e ossos, incinerando violentamente cada resto, até que o gigante titubeou e, transformando-se em restos mortais, finalmente desabou no chão molhado.

            Varuz agora era o mesmo de antes, emoldurado por fagulhas e fumaça. Jack levantou-se incrédulo. Havia caído à pouca distância do gigante. Freya aproximou-se de Aramyn que respirava aliviado em honra à vitória.

- Acabou? – perguntou a bárbara.

- A chuva acabou. – afirmou Aramyn, pois a tempestade, repentinamente, também havia encerrado.

- Esse mundo não facilita para a gente, não é? – interrompeu o halfling já afanando os restos do gigante, em busca de algo que lhe servisse.

            Varuz ainda analisava o corpo gigantesco em chamas, como num ritual de vitória. Mas a noite logo carregou cada faísca e o grupo se reunia novamente para continuar a viagem para Chattur’gah.

***

- Se aquele bosta do Darius tivesse continuado conosco, a luta não teria sido tão difícil. – indagou Freya, alguma hora da noite – Eu avisei para ele não se afastar.

Aramyn tinha maus pressentimentos sobre o amigo também.

Mas resolveu ficar calado.

terça-feira, 28 de julho de 2015

Prelúdio de dias cinzentos

Prelúdio de dias cinzentos


            As ruas de Santa Helena não mudaram tanto nos últimos vinte anos. Ainda continuam sendo uma miragem das estradas e becos cinzentos de décadas atrás, e essa eterna aparência é desencorajadora para um idiota nostálgico como eu. Coloco minhas luvas, visto minhas calças e meu casaco, alcanço meu guarda-chuva e piso no chão de pedras ainda molhadas da última neblina. A água a escorrer sutilmente para dentro dos bueiros nas encostas das calçadas. Meus passos carregam-me pelas vielas e acompanham o baque surdo da marcha dos transeuntes que mantêm os olhos fixos no movimento dos próprios pés. Um ou dois acenos de cabeça – é o que as pessoas dessa cidade acreditam que seja o mesmo que desejar um bom dia – e nada mais. Será mesmo que estou aqui?
Santa Helena é, antes de tudo, uma cidade de esquecimento.

            Meus pensamentos estão tão presentes nesse começo de dia que, apenas depois de alguns minutos de andanças aleatórias, lembro que minha intenção era chegar até um café. Esquentar minha garganta e talvez sanar minha consciência, mesmo que seja pelos segundos que deixo escapar no intervalo de cada gole, é tudo que eu preciso para reestruturar a minha sina de vida.

E então, o cinza das ruas e do horizonte urbano é manchado por um vermelho flutuante. Um garotinho acaba de recolher um balão a ele presenteado por um homem de aparência amistosa e que provavelmente é seu pai. O moleque, é claro, não tinha o hábito de agradecer, mas um sorriso provido de inocência e uma corrida saltitante enquanto contemplava seu frágil brinquedo, já era o suficiente para deixar o pai satisfeito. O garoto desfilava uma felicidade incompreendida pela vereda enquanto meus olhos reconstruíam uma lembrança preta e branca de minha infância.

Um par de enormes asas negras de um corvo rasgavam o ar e um aglomerado de pessoas boquiabertas tentavam alcançar sua plumagem em vão. A marionete constituída de finíssimas linhas de metal puxadas organizadamente pelos marionetistas que se escondiam dentro do carro de desfiles, erguiam e baixavam as asas projetando uma sombra tenebrosa sobre o boneco de cera pálido com cabelos bem penteados, um par de olhos profundos cercados de olheiras e uma vestimenta preta clássica. Poe.

            Aquele era “El día de los muertos”, um presente cultural ofertado pelos muitos antecedentes mexicanos que, um dia, vieram à Santa Helena para trabalhar nos extintos e vastos campos ao redor da cidade. A figura do corvo, assim como os demais veículos que apresentavam à plateia curiosa um mar de gatos pretos, o tic tac de pêndulos insistentes e a representação insana da entidade caótica criada por Lovecraft, não deixava restar dúvidas de que a celebração havia se tornado um tanto americanizada. Mas as máscaras macabras, as velas negras perfumadas e os esqueletos-humanos que se contorciam numa dança desajeitada ainda resgatavam o espírito original do dia dos mortos.

As pessoas se amontoavam para observar cada detalhe do desfile. Minha mão deslizou e abandonou a de meu pai e, naquele momento, eu senti medo. Não devido à solidão ou à falta de segurança que na hora eu tinha enquanto permanecia longe de meu protetor. Passei a infância me acostumando com a ausência dele e observando as crianças normais brincando nas ruas sempre cinzentas do outro lado de uma janela de vidro empoeirado. A única TV que eu tinha disponível. Mas sim por causa dos rostos de olhares apreensivos.

Mãos e dedos inquietos de pessoas que não queriam perder seu campo de visão que era insuficiente para assistir ao desfile de veículos macabros detalhadamente. Essas que tentavam me afogar no esquecimento. Será mesmo que eu estava ali?

 - Aqui filho. – Escutei a voz de meu pai.

            Logo depois deixei que um braço me puxasse e me erguesse. Ele me pôs em volta de seu pescoço e logo percebi que aquela era uma visão privilegiada para assistir ao desfile.

Um grupo de esqueletos cultivava na areia de cemitério as rosas de pétalas negras que, de alguma forma, eu sabia, deviam ser plantadas sobre os cadáveres para disfarçar o cheiro da morte. Aquelas rosas se chamavam amaranto, elas também serviam para drenar os últimos vestígios de lembranças maldosas de um falecido. De acordo com meu pai: elas evitavam a aparição de espectros.

- Este é o dia em que os mortos visitam os vivos, Fabrício. – revelou-me ele.

            Lembro-me que não discordei. Já havia lido isso em um punhado de livros empoeirados do meu quarto ou durante os longos momentos em que passeava pela biblioteca de Santa Helena. Tinha pouca idade, mas a inocência dificilmente me afetava. Sabia bem qual era o significado de mitologia ou de crenças populares. Deixei que meu pai se divertisse enquanto tentava me assustar com informações tão ilusórias.

- A maioria deles querem ser presenteados, é por isso que Santa Helena realiza esse festival e seus habitantes decoram suas casas com esses apetrechos macabros, para aqueles que andam sem a necessidade de pés não estranharem a mudança contraditória do ambiente.

            Continuou a explicar e, lá das alturas, tentava imaginar como os mortos atravessariam o véu que os impedia sair de seu lar mórbido e os permitia visitar seus parentes vivos apenas uma vez por ano. Não parecia ser tanto tempo de espera. Entre os vivos, há pessoas que esperam muito mais para se encontrarem. Há amores que demoram muito mais para se concretizar. De certa forma, portanto, a morte poderia ser mais do que um alívio apenas físico.

- Mas alguns, meu pequeno, vêm ao nosso mundo para presentear.

            Aquela sim era uma informação nova. É claro, talvez, que ele poderia estar inventando. Acrescentando algo original à antiga mitologia. Não me deixou de passar pela cabeça que, decididamente, afinal, era assim que as crenças populares se esticavam e tornavam-se parte da cultura: línguas afiadas e imaginações férteis.

- É preciso estar preparado para presentear os mortos, Fabrício. Mas é ainda mais importante estar preparado para ser presenteado por eles.

            Um veículo maior afastava a multidão curiosa para as bordas da rua onde ocorria o desfile. Uma sombra, tão escura quanto a noite, se estreitava em retalhos carregando uma foice esculpida em ossos tortuosos. Um crânio assombroso parecia flutuar em meio ao manto da representação da morte e seus olhos vazios pareciam olhar diretamente para mim.

“Não é seu pai quem está falando, Fabrício. Sou eu. ”

- Pois quando eles te presenteiam, exigem algo em troca. E mais ninguém é capaz de decidir qual será essa mercadoria, filho.

            Não me recordo se ficamos no desfile até o fim daquele dia. A cena em minhas lembranças repentinamente se desfaz e se reconstrói no momento em que me mantinha debruçado sobre o corpo dele, caído no chão da sala. Um policial segurava-me firmemente pelos ombros e afirmava:

“Vai ficar tudo bem, filho. ” – meu protetor, tão repentinamente, havia mudado.

Meu pai havia empurrado a mesa de centro e, junto com ela, um pequeno jarro com flores falecidas durante seu suposto derrame. Ele deveria ter se contorcido estranhamente calado por sinal, uma vez que, de meu quarto solitário, não ouvi um só pedido de socorro, ou sequer um ganido de dor.

Os médicos não souberam explicar o repentino derrame ocorrido em alguém relativamente jovem e de boa saúde, por isso, nunca puderam esclarecer-me sua morte. Mas eu sabia: ele havia sido ceifado.
Desde aquele dia, eu o odeio.

Odeio como quem sabe que ele poderia ter feito outra escolha. Como quem reconhecia ingenuamente que a voz da morte não o convenceria, independente do presente ofertado. Então, ele me deixou aqui, sob o flagelo de minhas visões cinzentas, padecendo aos poucos do conhecimento que atravessa os véus e temendo reconhecer mais das pessoas do que elas mesmas.

***
            Não preciso mais de lembranças, por enquanto. Dou um tempo para o moleque cansar-se de seu brinquedo e alcanço os pequenos três degraus da entrada da cafeteria quando me deparo com um par de olhos cinzentos, como uma nuvem carregada. A estranha bizarrice estende suas mãos sujas de unhas tortas e cercadas de sujeira em minha direção, prestes a dizer algo.

Não é preciso. Recolho uma nota e meia dúzia de moedas no bolso do meu casaco e as entrego diretamente na mão frágil do mendigo:

“ Deus lhe pague em dobro. “

Apresento-lhe um sorriso satisfeito e ensaiado. Como se ele pudesse vê-lo. E abro a porta da cafeteria.

            As luzes opacas não ajudam a colorir o ambiente cinzento que a cafeteria carrega. Um amontoado de mesas vazias implora por acolher um estômago vazio e em uma delas eu me sento.

A moça dos pedidos escreve delicadamente sobre um bloco de notas as exigências de um homem acima da idade com um jornal em mãos e olhar vazio. O mesmo que possivelmente se senta em frente ao balcão todos os dias e espera que ela o reconheça e lhe traga o mesmo pedido de sempre. Em poucos segundos, uma xícara funda e quente é colocada ao lado do fiel consumidor.

“Obrigado” – uma resposta rápida e pouco agradecida para o trabalho que ela tem a obrigação de exercer sem falhas, ele deve imaginar.

            Agora ela caminha até mim. Morena e despreocupadamente, com seu bloco de notas em mãos.

- A mesma coisa de sempre? – pergunta ela com um sorriso intocável na boca e um olhar que disfarça sua monotonia.

- Por favor – eu respondo educadamente, como ela havia previsto. Depois uma breve troca de olhares atípica das pessoas daquela região.

            Uma troca de olhares significa muita coisa. A solidão pode ser desdenhada pelo simples incitar alheio. Em um ambiente onde o cinza é capaz de transformar as pessoas, algumas buscam apenas moldar sua capacidade de provocar emoções. Então, ela se afasta com seu sorriso cálido e com metade da missão bem-sucedida. Não pude deixar de retribuir o sorriso pateticamente, deixando-me alvo claro de sua maestria em envolvimentos. Sabia, porém que, era ali, onde ela pretendia parar.

Quando seu expediente acabasse e ela pudesse voltar ao seu quarto escuro cheio de telas e desenhos pintados à mão própria – claramente uma mensagem de seu subconsciente implorando para que ela consiga expressar, de alguma forma, algo que lhe falta – seus pensamentos seriam anulados e inundados pela presença de um único. As boas e más lembranças compartilhadas com seu exigente ex-amante.

Ela ficaria a imaginar um final diferente ou um recomeço ideal onde ele abriria a porta de seu quarto e compensaria os minutos da última discussão com beijos sufocantes e uma explicação plausível do porquê ele tão custou a encontrá-la nas últimas semanas.

É claro que isso nunca iria acontecer.

Eu matei ele.

            Sim, faz parte do meu serviço fabricar corações abandonados, independente da forma ilícita que isso possa parecer soar. Lembro-me daquele garoto de cabelos despenteados com a camisa estampada dos Ramones. Uma mente ilusoriamente poética que mastigava as palavras e as emitia defendendo um ideal sem que ao menos ele mesmo soubesse se era o certo. Pessoas assim eram fortes em suas convicções, mas facilmente eram alcançadas pela voz que lhes preenchia os ouvidos com algo mais que a razão. E era assim que um bom revolucionário se tornava uma peça importante para aquilo que se arrasta no escuro: bons ouvidos que concordassem com qualquer besteira que ele tivesse disposto a compartilhar.

            E foi ironicamente acompanhado pela melodia de Highway to Hell de AC/DC, ecoando dos fones de ouvido de seu celular, que o garoto de causas nobres foi arrastado para as sombras aquela noite enquanto ele percorria as ruas escuras de Santa Helena sem nenhum aviso de perigo. A voz peculiar do frontman da banda de rock gritava o refrão enquanto uma mão fria cobria a boca do andarilho desavisado.

Medo. Ele tinha medo de morrer e, por isso, as lágrimas jorraram de seu rosto.

Eu estava lá, esperando pelo tempo certo que nunca chegou. Dispondo-me do crucifixo e da água benta que deveriam ter sido usados segundos antes de seu desaparecimento.

Porque eu não o fiz?

Daquele dia em diante, o garoto metido a diplomata irracional ocupou todas as lacunas de seu tempo arrastando corpos frescos pelas vielas da cidade cinzenta. Como um cachorro arrastava a carniça e a defendia de outros cães famintos. E ele, assim como os outros escravos de sangue, tinha consciência dos pecados que estava a cometer. Seus olhos logo se acostumaram com o escuro. Os olhos sempre se acostumam quando o sujeito é obrigado a conviver com a plenitude sombria.

Carregava baldes de água suja e trapos molhados que ele arrastava pelas ruas limpando o sangue de suas vítimas e cobrindo-lhe o rastro. Eu estive lá observando, esperando que alguma hora o rato me mostrasse onde estava o buraco que lhe servia de lar. 

            Certa noite, enquanto perseguido por uma trêmula luz de lanterna, o garoto, agora com a mente distorcida, foi obrigado a usar dentes e mãos para desfiar o cadáver de uma de suas vítimas afim de fazê-lo caber na passagem de um dos bueiros da cidade que eram constantemente regados pela água da chuva sempre presente nessas temporadas.

Debruçou-se ele mesmo no buraco e esperou impaciente a vigília noturna averiguar a situação. Um policial acima do peso, com um cassetete, uma pistola simples e uma lanterna a iluminar os caminhos sangrentos. O garoto esperou a aproximação do intrometido para dar o bote, caso esse percebesse seu rastro.

E o policial percebeu. Iluminou o bueiro e temeu a escuridão. Ignorou. No dia seguinte, ele mesmo diria aos companheiros que não havia percebido nada de estranho naquela região.
Essa atitude covarde, de alguma forma, me ajudou.

            A pérfida criatura, agora completamente entregue à escuridão, passou a usar o lugar como esconderijo secundário. Quando as noites avançavam e as mortes bem estudadas pareciam ficar mais frequentes, decidi agir.

            Aquela noite era fria, pois os espíritos costumam pressentir o valor das mortes, e sob aquela névoa cinzenta que impregnava tudo, desci o bueiro afim de surpreendê-lo. Como se pudesse farejar a criatura, andei pelos caminhos sujos e abarrotados de lama dos esgotos de Santa Helena e escutei a voz esganiçada de minha vítima a indagar os grandes pensadores.

“ Para cada mil homens dedicados a cortar as folhas do mal, há apenas um atacando raízes.”
Citação de Thoreau. Eu bem me recordava dos livros.

“ Todas as coisas boas foram noutro tempo más; todo o pecado original, veio a ser virtude original. ”
Nietzsche.

            Então me aproximei com cautela para vislumbrar o santuário sangrento da criatura e enxerguei as paredes escorrendo uma bíblia de pensamentos de sangue escritos a dedo por aquele garoto que um dia perdeu seu caminho no meio das estradas de Santa Helena e passou a seguir sua estrada para o inferno.

Risquei um de meus fósforos alquímicos na parede e a escuridão foi lancetada por faíscas luminosas de chamas. A criatura ali, então, me percebeu. Ganiu enraivecida. Depois olhou os arredores e viu seu livro de sangue escorrendo pelas paredes do esgoto. Frases de pensamentos coagulados. Ele sentiu vergonha e esse sentimento o fez sentir ainda mais raiva.

            Das longas mangas de minha batina negra – minha armadura de guerra contra o sobrenatural – desenrolou-se um par de correntes molhadas e se fixaram firmes ao meu punho.

Não precisei de fé.

Meus lábios balbuciaram as mesmas frases usuais para esse tipo de situação, o sermão em latim antigo encontrado nas escrituras sagradas. A criatura saltou sobre mim com boca, mãos e olhar sangrentos.

            O barulho ferroso das correntes na mandíbula da criatura ecoou pelos corredores sujos e sangrentos dos esgotos de Santa Helena. Ela rolou no chão como um animal que acabava de sair de dentro de uma fogueira. Cuspiu alguns dentes e me olhou com fúria intimidadora.

Eu sabia: a criatura agora era ódio em sangue e fome de carne. Ela não ia encerrar sua violência tão rápido. Nem eu iria encerrar minha caçada.

Saltou teimosamente contra mim e seus pés sujos criaram um rastro de excremento e sangue que ele estava acostumado a pisar ali, em seu novo habitat. Esquivou-se de meus punhos e agarrou-me pelo torso, erguendo meu corpo com facilidade e me jogando contra uma das paredes de frases sangrentas.
Minha batina manchou o dialeto escrito a sangue e o tornou impossível de ler. Tentei recuperar o fôlego, a pancada havia sido forte, mas meu inimigo me impediu de fazer isso, pois, como uma sombra súbita, arrastou-se até mim e agarrou-me pela garganta.

Pude ver seus olhos díspares. Um ainda negro, como assim o era quando ainda pensava como um humano, e o outro vermelho, como se uma cortina de sangue tivesse inundado a íris. Ele estava me analisando, procurando me reconhecer, tirando de algum lugar de sua memória a imagem de minha face e comparando se esta era semelhante à de alguém que ele já havia visto no mundo de cima.  

Talvez esse possa ter sido seu erro. Deus sabe o que ele pudera ter pensado naquela hora. Um monstro que recorda sua humanidade tende a ficar preso em pensamentos nostálgicos e isso é o terror deles.

Bem, isso acontece muito comigo.

            Juntei forças e o empurrei com as pernas. Os dois corpos caíram no chão. Ele havia escorregado em seus próprios rastros sujos. O barulho das correntes se desenrolando de meus pulsos se estendeu pelos túneis esquecidos e, dessa vez, me obriguei a ser mais veloz do que a criatura com a qual eu lutava, sendo que, a próxima reação de meu inimigo foi a notável falta de ar quando sentiu as correntes gotejantes cercarem-lhe o pescoço.

Senti as correntes apertarem meus pulsos e a pele rasgar-se enquanto enforcava a criatura. Senti o sangue jorrar por debaixo de minhas mangas longas e me obriguei a concentrar apenas no esforço que estava a fazer. O inimigo era muito forte. Eu tinha que suportar a dor. Meus olhos ficaram apertados e meus dentes friccionavam tentando empurrar uns aos outros. Segundo a segundo a criatura que eu estava a subjugar estava perdendo forças e, enfim, seus últimos momentos de fôlego se iniciaram e, aos poucos, deixei-a livre de minhas correntes.
           
            Agora o que ecoava nos túneis esquecidos eram meus esforços de recuperar o fôlego e os batimentos acelerados do meu coração. Arrastei-me até o lado do cadáver e sentei-me enquanto enxugava o suor de meu rosto e massageava minhas têmporas. Sem perceber que o sangue presente em minhas mãos estava a inundar-me a face de tinta vermelha que escorria, junto com lágrimas involuntárias.

Não sabia dizer se as lágrimas eram de alívio passageiro ou de raiva contida. Mas elas continuavam a escorrer e a salgar-me os olhos.

            A imagem dos esgotos escuros iluminados pelo tom ígneo das chamas mal distribuídas ficou turva e nem pude notar quando o cadáver se moveu e laçou meu pescoço com seu braço franzino e pálido, cheio de cicatrizes bizarras. Ele sustentou a manobra e arrastou-me para a escuridão.

“O desgraçado ainda estava vivo”, foi o óbvio que imaginei de forma atrasada, quando o fôlego já não me era mais uma opção.

            Parecia óbvio o que eu tinha que fazer naquele momento. O unguento oleoso depositado em frascos dentro de minha bata funcionava tal qual a água benta funcionaria em um demônio. O garoto não deixava de ser um, agora. Mas ao invés de agir imediatamente, contemplei as passagens cinzentas de minhas lembranças. Aquelas que sempre acompanham qualquer mortal quando este encara a morte.

Talvez a maior luta de um exorcista é suportar essa contemplação da vida nos meados da morte. Lembrar-se de como a vida foi tão indigna com você. Escolhendo-o a dedo entre tantos fortuitos. Desafiando seu ego e sua moral até que você, e apenas você mesmo, consiga encontrar alguma razão para manter-se vivo.

            Minha vítima agora gritava de dor. O fluido sagrado atingiu-lhe no rosto quando uma das minhas mãos pôde alcançá-lo. Agora a única íris que me encarava era a de órbita vermelha. A pele fervilhando e o desespero estampado no rosto e ecoado nos gritos colaboraram para que a cena fosse digna de agonia e dó.

Enquanto ele se debruçava como um verme no chão, pisei em suas costas e estendi as correntes em volta de seu pescoço. A criatura cuspia e vomitava um sangue negro e espesso, mas, nem todos aqueles ferimentos que a transformaram em uma sombra de retalhos seriam capazes de enfraquece-la o suficiente.

“ Deem-me uma selvageria cujo o vislumbre nenhuma civilização consegue suportar. ” – citei Thoreau.

A criatura acolheu meu pensamento.

“ E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse... ” – a vítima agora estava dividida entre o esperneio da sobrevivência e a loucura de seus pensamentos. Pouco a pouco cedia aos encantos dos versos mortais de Nietzsche.

“ Esta vida, assim como tu a vives agora e como a viveste, terás de vivê-la mais uma vez e ainda inúmeras vezes; e não haverá nela nada de novo, cada dor, cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indizivelmente pequeno e de grande em tua vida há de retornar, e tudo na mesma ordem e sequência ”

            E ali, o fôlego de minha presa ficou, segundo após segundo, mais fraco e lento. Acalentador. Quase não se podia ouvi-lo, pois, meu fôlego de cansaço era o predominante.

Na segunda instância, certifiquei-me que seu pescoço estava quebrado e que a vida havia finalmente se esvaído definitivamente.

***

            E agora eu retorno à angústia ainda pouco explorada da garota do café.

O sorriso dela foi ainda mais encantador quando me deixou a xícara. Tocou-me o ombro com dedos tão pesados quanto uma pena e disse:

- Você está bem? – Confrontou-me com ludíbrio, mas certamente não pôde diferenciar se eu estava perdido em pensamentos ou em suas curvas.

            Confirmei positivamente. Ali estava eu, usando o típico acenar de cabeça que tantos se obrigavam a copiar nas ruas de Santa Helena. Aquilo podia significar muita coisa.

            Talvez eu não volte a falar sobre essa garota novamente nesses retrospectos de lembranças e pensamentos. Pelo menos pelo tempo em que eu puder evitar um de seus sorrisos. Ainda assim, café é minha bebida favorita.

***

“ Uma esmola para um pobre cego ”

O mendigo em frente à porta do café repetiu a mesma frase. A mesma que ele usava toda vez que escutava alguém sair do lugar.

Bem, eu já havia lhe entregue algumas pratas e até uma nota.
Mas como ele ia saber?

            Afanei algum trocado que havia sobrado do meu desjejum e depositei em sua mão calejada.

“ Deus lhe pague em dobro “

Ele respondeu. E eu caminhei de novo pelas estradas cinzentas de Santa Helena a procura de lembranças.