Era
noite e Horic encharcou a face com a água da pequena lagoa e mesmo com a pouca ajuda
da luz da lua naquele imenso deserto, ele pôde enxergar seu próprio rosto no
reflexo. Seus cabelos haviam crescido, pelos faciais agora estavam maltratados
e ele podia notar sua pele inundando seu rosto com os primeiros efeitos do
envelhecimento.
“Envelheci
dez anos em algumas semanas”
Horic, líder dos chantre de guerra, távola de Asaron |
Pensou
consigo mesmo e acompanhou o vento frio do deserto noturno soprar nas palmeiras
do oásis e fazer seu manto drapejar. Tomou fôlego e, enfim esbaforido, deixou-se cair
no chão. Seus cabelos – agora compridos – deitaram-se
sob seu rosto e cobriram sua visão, sobrando apenas o barulho do vento que
acompanhava sua respiração.
Está em algum lugar de Quéops, ele
imagina. Qualquer lugar entre as cidades de Mênfis e Sael’garath, ele
descobriria amanhã. Não fazia muito tempo que, ao longe, havia avistado uma das
seis torres-oráculo do reino deserto. Lembrou-se do grande problema que eram os
dias áridos nas dunas de Quéops, mas acabou sentindo saudades de pelo menos um
simples sopro quente em seu rosto naquela noite congelante. De qualquer forma
se sentia abençoado, pois havia encontrado um pequeno oásis. Se pensasse como o
povo nômade do deserto, ele estaria convencido que o caminho trilhado o levaria
a seu desejo – encontrar um oásis no meio do deserto baseando-se apenas na
própria sorte era, sem dúvida, uma proteção do deus-sol para um simples
andarilho.
Mal
havia sentido as pálpebras pesarem quando notou a presença de algo à espreita.
Abriu os olhos, atônito. Sussurrou algumas palavras, em tom tão baixo que até o
vento foi capaz de abafar cada sílaba e ergueu-se despejando aleatoriamente aos arredores
uma dezena de esferas brilhantes de cor amarelada que passaram a flutuar
inofensivas ao redor dele mesmo iluminando cada fresta de escuridão.
-
É você novamente! – indagou o surpreendido bardo que não se prestava a
disfarçar sua situação derrotada pelo esforço de caminhar milhas pelo deserto.
-
Sou aquele que tu vens a procura. De
certo. – respondeu o estranho visitante numa voz melancólica que soou quase
como um sussurro, embora os ouvidos de Horic não tivessem tido problema para
escutar perfeitamente cada palavra pronunciada.
A presença era um tipo encapuzado e qualquer um num relance rápido confundiria seu manto com o breu que era a
escuridão da noite. Quando levantou o rosto, Horic pôde ver sua face pálida e
apática, de lábios quase invisíveis e expressão quase austera, não fosse a
empatia do bardo para descobrir que o estranho carregava uma dúvida inquietante,
ele descreveria o sujeito de manto como um assassino frio, incapaz de
demonstrar sentimento.
-
Responda-me, pelo menos desta vez, porque preciso perseguir os caminhos
apontados por você. Porque não conta a história inteira de uma vez? – perguntou
Horic, num tom de súplica.
-
Por causa dos ouvidos da morte, meu caro
mortal. - respondeu o estranho visitante.
O sombrio já havia respondido a
mesma coisa em outro encontro, mas o bardo não havia entendido completamente o
significado real da resposta. Teve muito tempo para pensar em sua viagem
solitária. Há três dias Horic havia encontrado os Saed, uma tribo nômade que
era uma cidade inteira a vagar pelo deserto, sempre em constante mudança. Os
Saed foram simpáticos, deram-lhe de comida, bebida e descanso. Horic suspeitou
que sua chegada havia sido prevista pelo oráculo da tribo – uma aparentemente
jovem garota de pele clara e que nunca abria os olhos – pois havia ouvido em
outras paragens que os Saed são intolerantes para com estrangeiros.
Nay’ala
era o nome do oráculo que ensinou o desavisado Horic a guiar-se durante o
dia apenas observando a coroa do sol e, durante a noite, através das
constelações.
“Para
tanta gentileza vinda de uma importante representante do deus-sol, não poderia
existir um agradecimento à altura, mas se houver algo que eu possa fazer como
recompensa, eu não pensaria duas vezes em fazê-lo.”
“Apenas
termine o que você veio fazer aqui no deserto de meu senhor Selloth, meu
querido estrangeiro. Isso já basta.”
“Nay’ala,
eu acredito piamente em seus poderes de vidência, mas, perdoe-me se eu parecer
estar sendo rude, eu acredito que você não tenha enxergado com tanta clareza o
ponto final de minhas andanças. Não sou um adivinho, mas aprendi a confiar em
meus sonhos e pesadelos. Eu persigo algo escuro e, devo dizer que minha
curiosidade pode definitivamente me matar, se não...”
“Basta,
Horic. Tudo o que posso fazer é confiar nas vozes que o Lorde com a Coroa de
Fogo sussurra em minha mente. Eu não esconderia curiosidade pelas suas
respostas, mas, eu não devo conhecê-las.”
Horic assentiu com a cabeça e
decidiu ir embora no mesmo instante. Seria um grande alívio compartilhar tudo o
que tinha acontecido com ele até aquele momento e o porquê de ele teimar em
seguir aquela estrada duvidosa.
No Vale do Abismo da Ventania – um
estreito rochoso na qual Horic teve de atravessar para, enfim, pôr os pés em
Quéops – aconteceu algo semelhante. Lá ele conheceu Ikarus, um rei entre os
raptorans – uma raça exótica e quase extinta de humanoides portadores de asas e
incrivelmente hábeis na caça – o bardo teria sido devorado pelos homens-abutres
caso um grupo desses homens-pássaros não tivesse combatido aquele mal e depois
o aprisionado para levá-lo diretamente aos pés do sábio rei.
Assim
como Nay’ala, Ikarus sabia de muita coisa, mas não se importou em revelar
muitas informações. Horic ficou no vale durante quatro dias e foi tempo o
suficiente para descobrir que os raptorans eram devotos religiosos dos
elementais do ar mais antigos que se tem notícia em toda Draganoth.
“Em
caso de dúvida, siga sempre a direção do vento”
Repetiam
os raptorans durante a visita obrigatória do bardo. Era quase um lema. Horic
aprendeu os primeiros indícios de sobrevivência no deserto graças aos
homens-pássaros e ganhou, inclusive, uma escolta pessoal até os limites que
dividiam o Vale do Abismo da Ventania e Quéops. De alguma forma, foi graças a
esta dica que Horic havia chegado naquele oásis e se encontrado novamente com
aquela figura estranha.
-
Em quantas partes você pretende dividir essa história? – perguntou Horic
enquanto amontoava tocos de madeira da sua mochila de carga e pilhava-os afim
de acender uma fogueira. Se ia ouvir mais algumas horas de tragédia, preferia
fazer isso bem aquecido.
-
Em pelo menos mais duas. – respondeu
a figura pálida, olhando hipnotizado para a chama que começava a se acender.
Horic sabia que o visitante era incapaz de sentir calor.
-
Me arrisquei muito chegando até aqui. Se Endimion não tivesse me abençoado com
a sorte ou se os deuses daqueles que me ajudaram não fossem complacentes, eu
estaria morto.
-
Sim, você estaria. Na verdade, em
comparação com nossos últimos encontros, sou capaz de farejar a morte muito
mais próxima de você do que antes. Isso é um problema. Devo começar a contar a
história imediatamente. Onde havia terminado?
-
O sexto filho de Sybila foi derrotado aos pés das Montanhas Tempestuosas.
-
Isso mesmo. O sexto caiu do céu
trovejante sendo cavalgado pelo destemido halfling e teve seu fim ao chocar-se
com o chão encharcado pelas lágrimas da primeira maldição. As escamas continuam
a espalhar o odor de morte desde esse acontecimento...
-
Espere. Existe uma informação falsa em sua história. – a fogueira já crepitava
quando Horic embrulhou-se no manto e impediu que o vento o drapejasse. Tirou de
sua mochila uma das repetitivas rações de viagem e espetou a carne defumada num
galho seco e reto que havia conseguido em Beltine, a cidade das árvores gêmeas.
– disse-me que Ragnar, o exilado, havia morrido nas mãos da tempestade mas...
-
Ele continua vivo. Como você sabe disso?
-
Bem... isso é importante?
Horic só recebeu como resposta um
silêncio inquietante que foi o suficiente para convencê-lo.
-
Samantha, minha... uma amiga minha em Zarast. Ela conhece formas de se
comunicar comigo.
- Sua amiga está
certa. E também está errada. Ragnar morreu. Eu o vi nas escadarias de mármore
esperando pelo castigo dos exilados. Ele permaneceria lá se o destino não
tivesse lhe afagado a face.
-
O que quer dizer com isso?
-
Havia um outro grupo procurando os Sete.
Eles foram menos eficientes que os heróis que atravessaram o rio Aomame, mas,
ainda assim, foram responsáveis pela morte de três.
-
Que outro grupo poderia estar naquela mesma trilha? Como eles puderam resistir
sem a ajuda do Guardião dos espíritos?
-
Eles não resistiram. Pelo menos, a
linhagem real não resistiu.
Horic
tinha muitas perguntas. Aquele definitivamente era um assunto novo. Beliscou um
pouco da carne esquentada e preparou-se para não se intrometer mais na
história.
-
Você poderia, ao menos, se sentar?
- Isso é importante
para você? –
perguntou o contador de histórias, um pouco inquieto.
E recebeu como resposta apenas um
silêncio inquietante.
Concordou
e aninhou-se ao chão frio, preenchido pelos grãos da areia do deserto.
- Daûgrin nascera em
Hefasto, o vulcão divino, assim como Ragnar nascera...
***
Hefasto, deus e moradia da raça anã,
é um vulcão. O sangue que corre em suas veias é quente como lava. Um monumento
divino e natural tão imenso que se propaga pelos territórios da selva de
Chattur’gah e brota de rochas escuras emolduradas por rios de magma.
Exteriormente a estrutura já pode ser reconhecida como o reino anão. Muralhas e
fortalezas, patamares e pátios feitos da própria rocha vulcânica aglomeravam a
marcha incansável dos anões. Vestidos com suas armaduras pesadas, eles
vistoriam o horizonte ígneo que circunda o vulcão divino.
Os
anões estão entre os melhores forjadores, comerciantes e, também, mais
fervorosos soldados em combate. À primeira vista rústicos em estratégia, à
segunda, estrategistas eficientes, incapazes de serem surpreendidos. Os anões
estão entre as raças sobreviventes das eras e toda a sua glória dá-se,
primeiramente à fé incondicional que carregam para com sua divindade e, em
segundo, a organização ordeira de sua linhagem.
Eles compõem três clãs distintos.
Cada clã foi responsável pelo desenvolvimento eficiente de um dos três ofícios mais
prestigiados da raça: a mineraria, a forja e o combate militar. Cada anão
ensinado, desde cedo, a respeitar o ofício de sua linhagem e reconhecer a
importância dos demais. E, por fim, cada clã também possui um líder e
representante da linhagem.
Muitos
moradores de Hefasto, naquele dia, se amontoaram no Salão do Pendrake – uma
câmara colossal, sustentada engenhosamente por pilastras que desenham, em alto
relevo, as feições de grandes anões em suas poses austeras e pétreas. Haviam
também pontes de rocha magmática que interligavam as cavernas que são as
entradas e saídas do salão e, é claro, o próprio Pendrake – uma pedra rústica
que parece ter sido desenterrada do coração de Hefasto e cujo as runas anãs
foram cravadas permanentemente na rocha para que todos os membros da raça
pudessem justificar as leis religiosas do ser divino.
A Tribuna da Hoste é um evento raro,
até para os anões, e costuma acontecer uma vez a cada século ou mais, sempre
com a importância de compartilhar e procurar sanar os perigos e ameaças que
aflige os territórios anões.
Com
o próprio Pendrake como plano de fundo, a reunião é organizada pelos três
líderes dos clãs que ficam dispostos em seus tronos de rocha magmática cravados
artisticamente em pedras bem polidas cercadas de rostos e runas anãs. O
murmurinho se assomava na plateia, os anões discutindo com seus próprios irmãos a
causa daquele evento. Eles ralhavam e defendiam suas opiniões aos gritos, como
os anões costumam fazer, mas nunca chegando a violentar ou desrespeitar um
irmão.
O balbuciar de todos apenas cessou
quando Thaindrininbael bateu com seu martelo de bronze em um dos braços do
trono e um trovão, como se partisse de um céu limpo, ecoou pelo Salão do
Pendrake. Thain é o líder do clã do martelo, os senhores da forja e, por isso,
obrigava-se a sustentar maior riqueza que os demais, adornando-se com anéis nos
dedos e barba, uma coroa dourada encrustada de joias e a figura da cabeça de um
javali, manto vermelho de seda e um peitoral de aço que, de tão reluzente,
parecia ter sido forjado de um diamante enorme e inteiro.
“Há
uma semana, no Posto de Tibmustryl, ao leste de Hefasto, três de nossos vigilantes
notaram o aparecimento dos asas negras cortando o céu noturno. Eles descreveram
os olhos das criaturas como um par de rubis voando na noite, sangrando na
escuridão de nosso território. Em Grimgdorn, nossos soldados chegaram a
disparar contra um dos escamosos para afugentá-lo e, assim, o fizeram. No Monte
Palathyr, um grupo de seis irmãos desconfiaram da estranha ausência de gigantes
na região e visitaram as Ruínas de Almodórr, com o propósito de espertar a
colmeia. Tudo que tiveram de enfrentar foi uma dúzia de ogros para, enfim,
descobrirem que as ruínas foram abandonadas. Vasculhando vestígios, o grupo
descobriu uma estatueta de ébano que carregava a figura desforme de um dragão.
Nossos farejadores também perseguiram rastros por quilômetros, descobrindo que
os gigantes iniciaram uma longa jornada para o norte.”
“Como
a maioria de nós sabe, o norte é domínio das feras, do culto de Kaz e das
pirâmides de sacrifício.” – revelou Adgrimbarbag, o senhor dos minérios, com
sua pele cor de rocha, olho esquerdo desbotado e manchas amarronzadas na pele.
Chamavam-no de o barba-de-pedra, pois de seu queixo brotava uma barba que mais
parecia meia dúzia de estalactites. Era conhecer de todos os caminhos, fossem
eles no subterrâneo de seu mundo ou no vasto e desorganizado exterior. – “Tudo
leva a crer que nossos inimigos se reúnem num lugar onde nossa picareta,
machado ou martelo não alcançam. Tentando ofuscar nossa atenção para os perigos
que jorram como sangue na capital do terror.”
“Essas
não são as únicas notícias.” – adiantou-se Theóingrignam, o senhor dos
soldados, com sua armadura esculpida na rocha vulcânica capaz de avolumar ainda
mais seu corpo robusto, pesado também devido aos seus músculos rígidos como
pedra. Theóin carrega uma cicatriz que lhe atravessa a boca e o deixara
eternamente marcado pelo seu ofício de guerra. – “O reinado humano fracassou em
defender uma de suas principais capitais e Lorde Irun, o senhor da flâmula
esmeralda, obrigou-se a partir e ver as ruínas de seu reino que nós, anões,
ajudamos a erguer. Eles lutam para que o mal vindo do reino-cemitério não
adentre o que sobrou de Azran. Outras ameaças assolam o reino vizinho,
obrigando aos conhecidos matadores de dragão, liderados pelo Príncipe Aisen, se
reunirem pela primeira vez em cinquenta anos contra um mal despertado. Nossos
primos malignos desapareceram. Um grupo de meus melhores soldados seguiram-nos
até as profundezas de Gargantuah e descobriram que eles escavam cada vez mais
profundo na rocha, buscando caminhos completamente aleatórios e distantes de
nossa terra natal, como se também quisessem sua parte do tesouro nessa união
vil de criaturas malignas em marcha.”
As discussões se iniciaram entre o
acúmulo de anões que havia escutado todo o discurso em silêncio, até aquele
momento.
“Silêncio!
Por favor.” – adiantou-se Thain. – “A maioria de vocês questiona porque
convocar uma tribuna para compartilhar essas informações. Isso será esclarecido
se vocês estiverem dispostos a ouvir.”
“Porque
devemos nos preocupar com os perigos que não afrontam diretamente nossas
terras, meu lorde?” – perguntou Edráin, vigília do Posto de Belzerk.
“Muitos
de nossos irmãos estão lá fora, compartilhando nossas experiências com os
humanos. Não é dever deles agir contra essas enfermidades?” – questionou Drosglo,
o sangue de troll.
“Vamos
marchar em direção à Ankhasadalûr com o intuito de salvar os humanos, é isso?”
– levantou-se Tybunrim, mineiro da Garganta Reverberante.
“Devido
a estes questionamentos, abrimos a tribuna para compartilhar nossas decisões e
discutir a melhor forma de agir em relação à este propósito.” – explicou Thain,
austero, como se esperasse exatamente pelas mesmas perguntas.
“Nosso
povo, irmãos, é invencível aqui, em Hefasto, mas, recolher-se em nosso lar
indestrutível não orgulhará nossas Hostes Eternas. Nossos antepassados que
lutaram contra os gigantes do antigo império e os orcs dos canyons de
Katarsh’motta, vigiam nossas decisões. Devemos agir como guerreiros. Devemos
usar nossos machados, ao invés de apenas nossos escudos.” – discursou Theóin,
levantando-se do trono acompanhado de um estardalhaço metálico produzido por
sua vestimenta robusta que lhe cobria até o pescoço.
“Nossos
inimigos partiram, mas eles retornarão.” – acrescentou o barba-de-pedra –
“Retornarão mais fortes, profanados pelo mal que conquistaram nas terras
exteriores. Trarão aliados e tentarão conquistar nossas terras divinas. Nós
ainda resistiríamos por muito tempo, mas conviveríamos com o terror de ter um
de nossos inimigos infiltrados no nosso reinado.”
“Mandar
uma porção de nós enfraquecerá nosso coletivo. Uma centena de anões ainda seria
pouco para este propósito, meus senhores.” – Edráin falou novamente.
“Enfrentar
as escamas negras, os gigantes do império e ainda correr o risco de tropeçar em
duergars, orcs e servos de Kaz trará para nós uma guerra difícil de evitar.” – adicionou
Grungilnir, líder da Presa Ávida, a torre ao sul de Hefasto, responsável por
abater as caravelas advindas do reino orc de Katarsh’motta.
“Não
mandaremos uma tropa inteira.” – explicou Theóin, as manoplas se fechando num
punho cerrado que bateu na mesa e exigiu o silêncio dos ouvintes. – “Tampouco
temos a intenção de enfrentar todos esses inimigos juntos.”
A centelha de dúvida pôde ser vista
desenhada no rosto de cada anão no Salão do Pendrake. Eles queriam respostas,
queriam saciar suas dúvidas. Thain fez isso.
“Um
grupo seleto de representantes de nosso reino ficará responsável por encontrar
e derrotar os asas negras. Eliminar os riscos de enfrentar as criaturas capazes
de arranhar nossos alicerces durante uma possível investida de todos esses
inimigos. Também cremos em outro fato...” – dito isso, Thain manteve-se em
silêncio e permitiu que o Barba-de-pedra continuasse.
“Os
sete filhos de Sybila são vistos como os vigilantes de Ankhashadalûr. Cada cria
pretende expandir um império e fazer com que seus olhos rubros alcancem as
terras mais distantes. Assim, eles são capazes de garantir maiores informações
e oferecê-las aos líderes da pirâmide. Tudo leva a crer que seja isso.” – o
anão da face pétrea ponderou as palavras e pousou seus punhos de rocha nos
braços do trono esquerdo da assembleia.
“Finalmente
chegamos aos propósitos principais desta tribuna, irmãos. Além de deixar cada
um de vós atônitos ao que ocorre além dos territórios protegidos pelo fogo
divino, também apresentaremos a única solução satisfatória às nossas decisões e
aos questionamentos de vocês.” – ergueu-se Thain, acompanhado do Barba-de-pedra
e de Théoin (que já estava de pé desde seu primeiro argumento). – Apresento-lhe,
o filho de nossa linhagem, príncipe de nossa raça, sobrinho distante de Theóin,
o machado dos justos. Seu nome é Daûgrin, o filho da chama.”
O nome do príncipe anão foi
sussurrado pelas bocas desconfiadas e o murmurinho calou-se apenas quando os
soldados anões, vestidos em suas armaduras de batalha bem polidas, curvaram-se
e se afastaram cumprindo ordens militares e abrindo passagem até uma figura
robusta, coberta por um manto vermelho como o vinho. A fumaça de um cachimbo
com a figura da cabeça de uma górgona, exalava diante seu capuz e o príncipe
levantou-se da mesa de pedra ajeitando o manto a partir do emblema do clã do
machado. Sua barba era negra e bem tratada, decorada com meia dúzia de anéis de
prata e ouro. Sua manopla era como uma perfeita mão metálica, feita de um aço
de ofício raro em Hefasto e quase inexistente no resto do mundo. Os anões
sabiam: o príncipe Daûgrin era portador da chama divina. Seu toque podia causar
morte instantânea, como se ele fosse capaz de imergir seu inimigo no fogo líquido
que Hefasto abriga.
Ele
andou sem pressa até diante dos três tronos e foi a atenção de todos os olhares
enquanto o fazia. Soldados anões voltavam aos seus lugares enquanto o príncipe
prosseguia. Ele alcançou o seu destino e virou-se afim de encarar seus irmãos.
Livrou-se do capuz e mostrou-lhes o rosto jovem, os lábios mordiscando a
extremidade do cachimbo, os olhos semicerrados procurando analisar os
julgamentos da plateia para com ele.
“Pedimos
para que sejam complacentes e que ouçam o que um dos príncipes de nossa raça
tem para compartilhar e que, de agora em diante, a missão dele seja a vossa
também.” – apresentou Theóin, orgulhoso por ter o sobrinho como representante
da missão.
“Sou
Daûgrin, filho da chama. Carrego o fogo divino em meu peito e a fúria de meu
machado nas mãos.” – falou o príncipe com altivez. Sua voz ecoou pelo Salão do
Pendrake e soou como autoritária e segura demais para alguém de sua idade. – “A
mim fora incumbida a missão de exterminar as escamas negras e, como escolhido
dos meus próprios reis, não pude recusar a oferta de ingressar nas Hostes
Eternas de nossa raça. Meu machado não poderia servir à causa mais honrada.
Sei, através de reuniões, que sabemos a localização de dois dos ninhos de
dragões e, é por isso que desejo partir o quanto antes.”
Olhares confiantes e desconfiados se
debruçaram sobre o príncipe e ele permaneceu austero, com a paciência de uma
rocha imóvel.
“Ele
é tão jovem?” – resmungou a maioria da assembleia.
“Precisamos
de experiência para tal missão. Há tantos devotos de Hefasto tão mais
acostumados com a trilha que esse jovem príncipe irá caminhar. Porque ele foi
justamente o escolhido?” – os murmúrios saíram de algum lugar dentro da
multidão.
Daûgrin olhou para os três líderes,
como se em busca de consentimento. Thain, Theóin e o Barba-de-pedra assentiram.
O príncipe buscou no volume de seu manto um machado feito do metal da cor da
rocha incandescente, com veias alaranjadas e vermelhas pulsando como se
estivesse vivo. Ele firmou a manopla no punho do machado e sentiu o aço
queimar. Seu manto drapejou dando liberdade às nuvens de fumaça, as mesmas
produzidas quando o calor da têmpera de uma espada é exposto à água. Seus olhos
faiscaram e a barba passou a se comportar como uma dezena de serpente-de-fogo,
lambendo a face do príncipe.
Perante
aquela audiência, Daûgrin ajoelhou-se com o machado em mãos, fechou os olhos,
como se meditasse uma oração passageira. Quando os abriu novamente, seus olhos
eram a chama divina e o calor impregnou-se na pele de cada presente.
“Sou
príncipe dos anões!” – Daûgrin falou, mas não com sua voz habitual, ao invés
disso, todos ouviram o clamor de uma presença advinda das profundezas
vulcânicas. Uma voz parecida com o retumbar de mil tambores de guerra, forte
como mil marteladas numa bigorna e temerosa como uma montanha inteira
desabando. – “E estou aqui para essa missão sagrada. Não me tomem como um
qualquer. Sou a ardência da chama divina! O carrasco dos inimigos de nossa
raça! Sou portador do fogo de Hefasto e, em meu peito, carrego o calor que
incinera a tudo!”
A chama tornou-se uma com o príncipe
durante poucos segundos e, por fim, foi controlada, transformando-se num corpo
de cinzas e fumaça exalando pelo Salão do Pendrake. Daûgrin pareceu exausto
depois da proeza, mas, isso não incomodou seus irmãos. Eles continuaram
boquiabertos até que somaram suas euforias num grito disforme de júbilo.
A
partir daquela demonstração, os anões passaram a enxergar o jovem príncipe
Daûgrin como um fortuito e exemplar membro da raça. Um indivíduo tão jovem, mas
com a capacidade de sustentar a chama divina. A maioria daqueles que tentam
alcançar tal proeza morrem consumidos pelo toque de Hefasto. Daûgrin, porém,
era um prodígio nessa habilidade e, tão logo, recebeu o consentimento de todos
os seus irmãos para a longa jornada.
Ele não sairia sozinho para a missão
sagrada. A ele se juntaram Aurin, uma clériga de Hefasto, serva fiel do Templo
da Chama Divina durante cinquenta anos de sofrimento na luta dos anões contra
as salamandras das Terras do Manto-de-fogo. Orchestra, um anão bardo de tranças
ruivas que anunciava com o retumbar de seu tambor de guerra as ameaças vindas
da direção da Torre Cavernosa e, posteriormente, Dugnimb, um rastejador de
masmorras ambicioso com foco nas antigas ruínas do Império Gigante.
Eles
vagaram por Chattur’gah durante dois meses inteiros até se depararem com o
primeiro ninho de dragão negro. Consumido pela chama de Hefasto e abatido por
um virote de balestra certeiro no peito, a primeira cria de Sybila foi abatida
na Garganta de Yogarmund, e seu corpo de escamas ainda pode ser encontrado
cravejado pelas estranhas árvores-espinhosas que nascem nas laterais daquele
abismo.
O
caminho do grupo coincidiu uma única vez com o de Ragnar, o exilado. Eles o ajudaram
a libertar seu grupo que sofria nas garras de Abranabam, um beholder que
assolava a região das Árvores Esparsas. Ragnar o viu usar a chama de Hefasto
também uma única vez. Foi na luta contra Dedelit, a bruxa-de-escamas e
impressionou-se com seu poder divino. Dali em diante, o exilado se despediu de
seu antigo grupo e passou a seguir o príncipe, ajudando-o a derrotar o segundo
escama negra nos Montes Íngremes. Foi quatorze dias depois, na trilha das
antigas covas, que Ragnar abandonou o príncipe e tomou rumo às Muralhas de
Azran.
***
-
Então, o príncipe Daûgrin e seu grupo foram importantíssimos para essa vitória
nas Montanhas Tempestuosas. – concluiu Horic, acostumando-se com a penumbra que
o cercava naquele oásis.
-
De certo. – assentiu o estranho de
face pálida.
-
Com a ajuda de um príncipe anão, a luta contra a Primeira Maldição tornou-se
mais possível, ao
meu ver.
-
Teria sido simplificada, se Ragnar e
Daûgrin tivessem se encontrado novamente alguma vez mais em suas jornadas.
Aquela despedida foi o último aperto de mãos entre o príncipe e o exilado. Eles
não voltaram a se ver, pelo menos nesse plano.
-
O que aconteceu?
-
O príncipe foi derrotado. – afirmou o
estranho, sem sentimento algum, como se houvesse previsto a morte de Daûgrin mesmo
antes de ter acontecido.
-
Como? – perguntou Horic relutando em agir tão friamente como seu contador de
histórias havia feito.
-
Se é que isso vale a pena ser contado,
Daûgrin e seu grupo enfrentaram a terceira cria de Sybila nos Desfiladeiros das
Presas Tortas e tiveram que consumir todas as suas energias para derrotar o
inimigo. Saíram vitoriosos e esgotados e, logo depois, foram surpreendidos por
Borlog e sua trupe, um bando de ogros vindos das ruínas do antigo império
gigante, já citadas anteriormente. Num último suspiro, para salvar seus irmãos,
o príncipe invocou os poderes da chama divina e permitiu-se ser consumido pela
fé, tornando-se uma chama persistente e evitando que sua linhagem fosse mantida
refém pelos odiosos inimigos.
-
Se o príncipe Daûgrin morreu em sua jornada, porque é importante contar sua
história?
-
Daûgrin e Ragnar tornaram-se um.
-
Como isso é possível?
-
Lembra-se do último trecho da história
que lhe contei em nosso último encontro? Ragnar foi visitado pela alma de
Daûgrin nas escadarias de mármore, em frente aos portões de entrada para as
Hostes Eternas, o céu dos anões.
-
Sim, lembro-me muito bem.
-
Recorda-se também que Asafe, o guia do
grupo que trafegou pelo rio Aomame recebia a alcunha de “guia dos espíritos”?
Horic
coçou o queixo e tirou alguma sujeira da barba desgrenhada.
-
Você fala de reencarnação? – perguntou o bardo após pensar não mais de alguns
segundos.
-
Chame do que quiser. Eu não batizei essas
possibilidades. O verdadeiro nome, para mim, é resgate de alma. Foi isso que
fizeram com Ragnar, quando arrastaram seu corpo queimado e fundido às placas de
metal da armadura: buscaram o auxílio de um guia dos espíritos.
***
-
Vocês retornam da missão sem ao menos se aproximar do destino e esperam que o
espírito de Apuaña fique satisfeito em mandá-los de volta? – desconfiou Asafe,
o guia dos espíritos. – Os espíritos se tornam vingativos com o tempo, meus
viajantes desavisados, eles invejam a liberdade que vocês têm de usar as pernas
para caminhar de um lugar para o outro. A eles são reservadas apenas a
possibilidade de ansiar por algo.
O grupo havia tomado a decisão, seus
rostos esboçavam tanto cansaço quanto incredulidade. Precisaram se convencer de
que a desistência era a melhor das escolhas. Dias atrás, após embalsamar o
corpo de Ragnar, eles tiveram de discutir sobre a possibilidade de fuga.
“A
verdade é que, além de perdermos alguém que julgávamos essencial para o sucesso
de nossa missão, temos de encarar o fato que tudo aos pés das Montanhas
Tempestuosas é o domínio da primeira maldição.” – revelou Aramyn enquanto
levantava o corpo apressadamente e o amarrava à tiras improvisadas nas costas
de Freya, que havia concordado em carregá-lo pelas primeiras horas de viagem.
“...
e se continuarmos, a tendência é que a tempestade se avolume.” – concluiu Khali,
num sussurro quase involuntário, mas que foi ouvido por todos os reunidos. – “O
que nos aguarda na boca do refúgio de Noroi?”
“Meu
treinamento militar, mesmo diversificado do exercício de escudo e espada, me
diz que as possibilidades são mínimas.” – acrescentou Varuz, ainda indignado
com a luta anterior. Não pela morte de Ragnar, que ele a pouco conhecia, mas
por sua incapacidade de conjurar magias decisivas devido à forte tempestade. –
“Quando alcançarmos aquele recinto, o que enfrentaremos será um mar de água,
raios e trovões e uma leva de inimigos tão superior que meus dedos já estão
frios só de imaginar. A tempestade impedirá que eu use as magias certas. Mesmo
a magia mais furiosa necessita de concentração para funcionar.”
“Perderemos
também os arqueiros e as preces divinas de Aramyn.” – completou Khali, tateando
o chão de lama e observando o horizonte cinzento pelas nuvens e gotas
insistentes de chuva. Ao fundo, escutou o barulho de trovões ansiosos pela
visita do grupo. – “Minhas flechas e as de Azanthe não são tão eficientes numa
luta onde elas podem ser arrebatadas pela ventania.”
E Aramyn propôs uma votação e,
agora, eles estavam ali, a bordo de uma caravela que insistia em não navegar.
-
Asafe, guia dos espíritos, eu espero que reconheça nossa atitude como racional.
Se existia alguma possibilidade de sairmos vitoriosos, perderíamos muito mais
do que apenas uma alma de nosso grupo. O peso da morte de Ragnar é demasiado
grande até mesmo para aqueles que ainda não o encaravam como aliado ou amigo.
Estamos decididos, se não recebermos a ajuda de Apuaña, faremos nosso caminho a
pé.
O guia dos espíritos e o grupo se
encararam por segundos silenciosos e, até naquele momento, onde toda a atenção
se dirigia à discussão, todos puderam ouvir os ruidosos trovões de além e
sentir o frio que a lamentosa chuva trazia daquele pântano de lágrimas. Aramyn
já havia presenciado silêncios tão inquietantes quanto aquele e foi justamente
uma figura silenciosa que o quebrou.
Azanthe,
sempre uma presença de plano de fundo, desviou-se de seu grupo e pôs-se tão
perto do guia dos espíritos como nenhum dos ali presentes ousaria fazê-lo.
Ajoelhou-se e estendeu a linha dourada de seu arco.
-
Isso é o que de mais valioso carrego comigo. – a linha era, na verdade, um
simples fio de cabelo aloirado, presenteado a ele pela rainha dos Bosques
Rubros, um lugar que o arqueiro decidira chamar de lar.
Ninguém do grupo decidiu interromper
a súplica. Todos estavam surpresos com aquela atitude, embora a maioria não
soubesse porque um simples fio de cabelo loiro seria capaz de convencer Asafe
ou Apuanã do contrário.
Mas
o guia dos espíritos é um ser de sabedoria e descobriu no gesto de Azanthe mais
do que simples humildade. Deslizou o dedo indicador no aparentemente frágil fio
de cabelo e surpreendeu-se com aquilo que somente ele podia ver.
-
Talvez vocês tenham uma nova escolha e uma nova ajuda. – assentiu Asafe
aceitando o presente com apreensão. Azanthe levantou-se e austero encaminhou-se
para o plano de fundo da imagem, amarrando uma nova linha em seu arco.
***
Horic havia se levantado e agora
bebia um pouco da água do lago. De noite ele não podia enxergar mais do que um
borrão de sua própria imagem. O contador de histórias parecia paciente a
esperar o bardo saciar a sede.
-
Todos os bardos, um dia, chegaram a ouvir histórias sobre Azanthe. Mas, com
base no que andei escutando, muitos dos contos parecem falsos. Eles não se
encaixam com o personagem, por isso, tudo me leva a crer que boa parte do
conteúdo das histórias seja apenas lenda. Entretanto, ao Asafe aceitar o fio de
cabelo que Azanthe ofereceu, prova que aquele era mesmo um artefato tirado das
próprias madeixas da Rainha Sidhe.
-
Quem sabe? – o estranho impôs um
grande ponto de interrogação nesse questionamento. – Talvez o fio de cabelo fosse mesmo da rainha das fadas, talvez ele
tivesse sido de outro alguém muito especial para o arqueiro. O guardião dos
espíritos aceitou o presente, pois soube que Azanthe privava-se de algo raro e valoroso
para ele. Asafe enxergava mais do que o sacrifício de ter de se livrar de um
artefato, mas também o de estar disposto a tudo para alcançar aquilo que quer.
-
Bem, se for verdade, ao livrar-se do cabelo da rainha, Azanthe limitou muitas
de suas proezas. Os poderes do arco foram usados algumas vezes durante a
história e todas as vezes seus efeitos foram imprescindíveis.
-
Talvez Azanthe soubesse exatamente o que
receberia em troca ao fazer aquele empreendimento.
-
O que ele recebeu em troca?
-
Dever cumprido e honra.
***
Borlog se considerava justo. Exigiu
um javali inteiro só para ele, mas dividiu os restos com seus soldados. O
sangue da caça ainda pingava de suas presas e lábios rochosos quando ele saiu
de sua tenda suja e malcheirosa. Ele viu os dois ogros responsáveis pela
vigília da chama eterna fazendo exatamente o que ele havia mandado. Os demais
se deleitavam discutindo uns com os outros e comendo os restos de qualquer
coisa oferecida à eles.
O
líder dos ogros já esperava por cinco longos dias o esvaecimento da chama. Cinco dias
atrás, ele mandara um de seus capangas apagar o fogo e trazer o corpo que este
consumia até sua barraca – adorava anões e quando reconheceu o príncipe naquele
invólucro de chamas decidiu que a linhagem nobre da raça saciaria ainda mais
sua fome eterna – tudo que recebeu foram os gritos agonizantes de seu súdito
enquanto este tentava se livrar do fogo que o incinerou até que lhe restasse
somente cinzas. A partir dali, Borlog decidiu que esperaria e montou
acampamento ali, pelo tempo que fosse – o anão havia se tornado um prato ainda
mais valoroso.
Borlog |
Seus capangas nem cogitaram discutir
essa decisão. Eles haviam visto Borlog cuspir um véu de chamas – foi assim que
Borlog derrotou Thrakadûr, o antigo líder da tropa de ogros – e agora o bruxo-ogro
era temido pela própria raça. O que significava respeito na língua daqueles
gigantes.
Borlog
não era tão incapaz de raciocinar quanto seus súditos. Era uma figura ímpar
entre os ogros, tinha, em suas veias, o sangue de alguma entidade e isso já era
o bastante para ele se considerar um tipo de deus em terra. Sabia também que a
chama iria apagar um dia, e a carne do anão estaria no ponto para ser
degustada.
-
Senhor, a gente fareja carne humana vindo pra cá! – avisou um dos ogros
súditos, em sua estranha língua rústica.
-
Quanto tempo? – perguntou Borlog, aparentemente despreocupado.
-
Pouco. – respondeu o súdito, incapaz de discernir uma quantidade de tempo
certa.
Borlog assentiu e pensou o porquê de
humanos virem até aquela região tão distante de suas terras. Não pôde discernir
qualquer outra coisa que não fosse roubar-lhe seu futuro prato principal. Ele
não podia deixar que isso acontecesse. Reuniu todos os seus súditos. Uma dúzia
de ogros que haviam saído a mais de quatro meses de suas terras, nas ruínas do
antigo império dos gigantes.
-
Vocês protegem a chama eterna! – gritou Borlog quando todos os demais ogros
estavam reunidos, pilhando pedras ao redor de tudo, criando empecilhos para
usarem contra os odiosos humanos.
-
Chefe, porque proteger chama que nunca vai apagar? Não lembra que qualquer
toque nela mata? – arriscou palpitar um dos súditos de Borlog.
-
A gente não deve subestimar humanos. – explicou Borlog e sorriu, pois pensara
numa ideia bem melhor do que simplesmente expulsar os visitantes à murros e
clavadas. – Vamos jogar todos na chama! – ordenou com olhos arregalados,
gostando muito da própria ideia. Os súditos pareceram adorar a sugestão. Tudo o
que tinham a fazer era esperar suas desavisadas vítimas.
Khali havia subido em uma árvore a
mais de cem metros distante do acampamento de Borlog. Cobria a face com uma das
mãos evitando a luz do sol e perscrutava com seus olhos élficos a reunião de
ogros, descobrindo que eles já estavam bem preparados para o encontro. Avisou
aos companheiros.
-
Ogros são burros. Eles não sabem se organizar. – desdenhou Freya, que já havia
ouvido histórias o suficiente daqueles gigantes para julgá-los como
incompetentes.
-
Você também é bem burra, bárbara, e ainda continua de pé. – disparou Jack,
recebendo um olhar desagradado de Freya.
O grupo havia chegado ali, tão
distante do rio Aomame e de Apuaña, com a ajuda de Asafe. O guia dos espíritos
os levara até uma grande árvore cujo as raízes se desenterravam da lama e
formavam uma toca suja e cheia de vermes rastejantes.
“Outros
viajantes também caminhavam em direção às Montanhas Tempestuosas, embora estes
não soubessem que iriam se deparar com a primeira maldição. Suas missões eram
outras e vocês acabarão por tropeçar no que estes procuravam. Ragnar é um velho
conhecido daqueles que foram derrotados.
Um príncipe da raça anã e seus
companheiros. Eles juraram um dia se reencontrar, mas isso jamais acontecerá
fisicamente. Vejo o amigo de vocês, uma alma derrotada em escadarias de
mármore, esperando por uma eternidade de súplicas. Vencido. Seu espírito se
recusará à retornar para este plano, mas, talvez, o príncipe o convença.”
Como se entrassem numa masmorra, um
por um seguiram Khali, que foi o primeiro a entrar por entre as raízes quando o
guia dos espíritos explicou.
“Nós,
os xamãs de Chattur’gah conhecemos uma forma de guiar espíritos para novos
corpos. O resgate da alma é algo raro de acontecer e precisa de um motivo muito
maior do que se é possível explicar pela lógica. Tragam-me o corpo do príncipe
e trarei o espírito de Ragnar novamente.”
-
Esperem! – alertou Khali enquanto contava a quantidade de ogros ao redor da
grande pira – Se meus olhos não me enganam, há um corpo sendo queimador. Parece
ser o de um anão!
-
Não há mais tempo! Freya, Khali, vocês são os mais rápidos nessa floresta e
precisam chegar o quanto antes, nós... – adiantou-se Aramyn preocupado com o
corpo que deveria ser resgatado.
-
O corpo do anão não parece estar virando cinzas. – interrompeu Khali.
-
Como isso é possível? – Freya já estava passos à frente de todos, pois acolhera
a decisão de Aramyn para que ela enfrentasse os inimigos o quanto antes.
Aramyn recordou-se de seus
ensinamentos religiosos. No templo dos Anjos de Pedra – o lugar onde ele havia
sido levado depois de sobreviver milagrosamente à ruína de Brastav – ele foi
acolhido e lá não somente aprendeu sobre sua própria religião como também as
demais. É necessário conhecer aliados e inimigos. Lembrou-se do velho padre
Edmund mostrando-lhe uma câmara adornada de armas bem manufaturas, com entalhes
religiosos. Seu tutor lhe explicara que aqueles eram presentes dos anões e que
os anões eram os maiores forjadores de armas e armaduras existentes. Ainda
jovem, Aramyn segurou firme em mãos uma espada bastarda – tão pesada que ele
mal pôde conter a carga – admirou os anões por aquele ofício.
“Os
anões receberam uma grande dádiva de Splendor, padre.”
“Os
anões têm seu próprio deus, meu pequeno Aramyn. Eles, de fato, são aliados de
nossa religião, mas seguem uma crença diversificada.”
O
pequeno Aramyn franziu a testa devido aquela informação nova.
“Hefasto.”
– respondeu padre Edmund com um sorriso pacífico no rosto – “Hefasto é um deus
feito de fogo e chumbo, alguns dizem. Os anões afirmam que ele é um vulcão
inteiro, cuspindo lava divina nos traidores. A raça mora no próprio deus,
Aramyn.”
Levaria
algum tempo para que o jovem clérigo pudesse entender todo aquele significado.
Deixou passar algumas observações naquele momento.
“No
reino vulcânico dos anões, eles usam o fogo divino. Uma chama que somente é
encontrada lá e que é capaz de derreter qualquer metal ou minério. Eles dizem
que a chama de Hefasto queima o corpo e o espírito e que um indivíduo de má fé
que a tocar, morrerá incinerado por um fogo que nunca apaga.” – Padre Edmund
continuou a explicar.
“Como
os anões manipulam essa chama sem morrer?” – deixou finalmente sair uma
pergunta enquanto depositava a espada bastarda novamente na pilastra onde ela
estava.
“É
um presente da raça, meu pequeno. Alguns deles fazem mais do que isso. Alguns
deles portam a chama e a manipulam através da fé e da vontade.”
Agora, longe em tempo e espaço
daquele ensinamento, Aramyn sabia o que estava a perseguir.
-
Mas, é claro, um príncipe, portador da chama de Hefasto. – pensou alto – É o
corpo que precisamos resgatar.
Sem mais perguntas, o grupo inteiro
caminhou até o encontro de Borlog e seus capangas e resgatou o corpo do
príncipe anão.
***
-
Apenas isso? Lutaram e resgataram o príncipe? Porque você não dá mais detalhes?
-
É necessário?
-
Toda história de aventura precisa de ação alguma hora. – discutiu Horic.
-
Você quer dizer, mais ação do que o grupo
já andou enfrentando até agora?
-
Como eles conseguiram o feito?
-
Entraram no combate com afinco. Aquele
dia não havia sombra ou tempestade. Nem raios ou trovões. O espírito dos heróis
ainda estava manchado pela jornada, mas seus corpos estavam leves e firmes. Foi
uma luta pouco demorada. Freya riu sadicamente quando acertou o rosto de um dos
ogros, uma luta em que ela podia tornar-se o açougueiro de sempre, sem se
importar se o próximo passo poderia ser o último. Varuz engatilhou suas magias
e elas jorraram no acúmulo de inimigos, queimando e eletrocutando, porque agora
ele era a tempestade. Jack e o Ceifador voaram em seus súbitos movimentos e
desferiram cortes invisíveis, porém, letais nos súditos de Borlog. Cada flecha
de Azanthe ainda se mostrava potente, cada disparo aprofundando-se na carne
inimiga dolorosamente e o mesmo podia-se falar de Khali, que se aproveitou de
toda a possibilidade de deslocamento, antes limitada pelas poças profundas de
água, para encaixar seus disparos nos pontos letais que antes não conseguia
enxergar. E Aramyn distribuiu suas preces, protegeu seus aliados com o escudo e
abençoou a vitória, pois de todos ali, ele sabia o quanto aquele resultado
ajudaria para levantar a moral do grupo. Borlog teve sorte. A sorte que um
covarde tem uma vez na vida. Viu seus súditos sucumbirem à maldição humana e
fugiu a tempo.
-
Borlog ainda vive?
-
Ele viveu suas últimas semanas. Não tinha
mais a ajuda de um bando de ogros estúpidos, mas, era um feiticeiro e conseguiu
um refúgio no alto de um monte pedregoso. Domou lobos cinzentos, naturais na
região de Chattur’gah, pilhou crânios ao redor de seu território e uma bandeira
anã rasgada que ele havia tomado de um campo de batalha abandonado. Mais tarde,
Freya o farejou sozinha. Despediu-se do grupo apenas para embrenhar-se na selva
e enfrentar a alcateia para, enfim, tomar a cabeça de Borlog como prêmio pessoal.
Os bárbaros de Chattur’gah respeitam a vingança e desrespeitam os covardes. Um
dia falaram isso para ela e, como eu disse, covardes só têm sorte uma vez.
O
sono estapeou o rosto de Horic. Não por menos. Ele havia passado três longos
dias de caminhada no deserto, seria um verdadeiro herói se não estivesse exausto
no final do dia. Entretanto, não podia permitir-se dormir, nem que sua atenção
fosse prejudicada. Sabia que se agarrasse ao sono não acordaria até o amanhecer
e, até lá, o estranho visitante desapareceria e, quem sabe, só poderia ser
encontrado nos confins do mundo.
Levantou-se
e foi lavar o rosto – a água estava mais fria do que a uma hora antes, foi
deveras refrescante senti-la molhar sua garganta – tomou um pouco do fôlego dos
justos e deixou o corpo cair no chão por um momento, para que absorvesse todas
as informações que o estranho havia lhe contado naquelas horas ao redor da
fogueira. Observou o céu escuro e estrelado. Admirou-se. Em nenhuma outra noite
havia se ocupado em vê-lo com tanta admiração. Era, de alguma forma, mais limpo
do que o habitual, como um minério de adamantina bruto, com a poeira prateada e
ofuscante a chover em todo o espaço criando um tipo de mapa estelar.
Voltou a atenção para o contador de
histórias e o viu encarar a chama com uma certa nostalgia. Nos últimos
encontros, enquanto Horic mantinha-se afastado da fogueira, o estranho parecia
fascinado pela chama, perseguindo com os olhos as ondulações ígneas.
Agora, ele parecia convencido de que o calor não era tão cativante assim, ou,
talvez, sabia que a chama jamais lhe pertenceria. Horic o viu tentando tocá-la,
mas o fogo simplesmente enfraquecia e perdia forma. Relutante em deixar a
fogueira se apagar completamente, o contador de histórias afastava sua mão e o
fogo tornava-se forte de novo.
-
Você havia dito que os ogros não podiam tocar a chama que emanava do corpo do
príncipe ou morreriam. O que os heróis fizeram para apagar a chama? –
levantou-se Horic e aproximou-se da fogueira. Agora queria olhar diretamente
nos olhos pálidos do estranho.
-
Os heróis não podiam fazer nada. Quem o
fez foi o próprio príncipe Daûgrin.
-
Mas você disse que ele havia morrido.
-
De fato, ele estava morto. Mas a morte
não é a última consciência de um ser vivo. Aconteceu que, após serem
bem-sucedidos, os heróis receberam a visita inesperada de Asafe, o guia dos
espíritos. Este obrigou que todos nas proximidades mantivessem o silêncio e
sentou-se fronte à pira sagrada, de olhos fechados e mente quieta. Mesmo que
ninguém pudesse ouvi-lo sussurrar para os espíritos, os presentes sabiam o que
ele estava prestes a realizar: o resgate de alma. Foi um silêncio duradouro e
quem sabe quais as palavras que o guia dos espíritos pronunciou para convencer
o príncipe do que deveria ser feito.
***
“Você
é Ragnar, o exilado marcado pela mancha da perdição. Eu sou Daûgrin, príncipe
entre os anões, portador da chama divina.” – apresentou-se o príncipe ao
espectro entristecido de Ragnar nos degraus das escadarias de mármore.
Ragnar se acordou do sono eterno das
almas. Ele enxergou os portões de mármore, entalhados com rostos e runas anãs,
vigiado por imensas estátuas forjadas do aço divino. A angústia invadiu seu
peito. Ele podia reconhecer seu cruel destino.
“E
a ti será dada uma segunda chance, pois minha linhagem necessita de um
representante. Meu corpo a mim, não mais pertence, pois, minha alma não pode
esperar por mais tempo e a chama que me protege definhará e meu corpo se
tornará um com a terra e minha missão estará perdida, assim, minha entrada nas
Hostes Eternas, negada.”
Ragnar sentiu o calor tocar-lhe o
ombro quando o espectro do príncipe Daûgrin o encostou. Sentiu medo. Um medo
muito maior do fracasso.
“Não
tema, meu escolhido. Sei da tua jornada, a mancha em teu espírito quase se
desfaz por inteiro. Os anões de nosso lar não tardarão a perdoá-lo. Continue
sendo justo e terá de volta o anseio pelos portões de mármore.”
Distante
dos portões das Hostes Eternas, dos espectros e do medo, a chama de Hefasto
enfurecia-se diante Asafe. Azanthe ajoelhou-se e fechou os olhos, percebeu que
fazia muito tempo desde que não repetira suas orações a Splendor, muito menos
os juramentos de sua ordem. O fez de qualquer jeito, saltando entre as estrofes
perdidas de seu pensamento. Aramyn o notou e decidiu fazer a mesma coisa.
Familiarizado com a vida espiritual, Khali balbuciava algumas palavras em
élfico, repetia um mantra que seus irmãos chamavam de “aquietar os espíritos”
e, mesmo tão distante de casa, tinha de se prender a alguma crença.
Foi
em um repentino desfazer de luzes que a chama de Hefasto cessou e deu caminho a
um príncipe atordoado, ainda envolto pelo calor das chamas. Ele ergueu a cabeça
e os ombros, olhou para as próprias mãos e sentiu os músculos contraindo-se em
reação aos seus movimentos. Aquele era o príncipe e também Ragnar, o exilado.
Almas resgatadas, linhagens perdoadas.
“Os
espíritos nos abençoam com certas escolhas. Seu retorno para estas terras,
Ragnar, não é vão.” – Asafe comentou e foi a primeira frase que Ragnar escutou
em seu novo corpo.
***
-
A essência de Ragnar retornou no corpo do príncipe? – perguntou o ansioso Horic
-
Se é assim que você enxerga as coisas,
meu caro ouvinte.
-
Então, a linhagem do príncipe Daûgrin agora pertence à Ragnar. Isso significa
que, um exilado entre os anões pode ser um detentor da chama de Hefasto?
-
Quem sabe? Talvez, Ragnar nunca seja
espirituoso o suficiente para controlá-la, talvez o destino se encarregou de
trazer o espírito certo para o corpo certo. Seja qual for a sua escolha, não
tornaremos a ver a chama de Hefasto até que ela se torne uma opção real para o
exilado.
-
Com Ragnar de volta, os heróis terão novas atitudes perante a tempestade eterna
ao redor do refúgio de Noroi?
-
De certo ficaram mais confiantes, mas o
retorno de Ragnar não mudaria o resultado do combate. Eles pereceriam de
qualquer forma. A figura que mudaria a direção de toda a história ainda está
para aparecer.
-
Quem seria esse personagem, ou criatura... ou, coisa? – Horic não se esforçava
para esconder sua curiosidade.
O contador de histórias levantou-se.
O manto a varrer os grãos de areia do deserto, o ar ao seu redor a enfraquecer
a chama da fogueira.
-
Estivemos próximos por tempo demais. Para
nossa segurança, devemos nos encontrar em outro lugar.
-
Como? – reclamou o indignado Horic.
Horic
reconhecia que aquele era o ponto final do capítulo. Assim como da outra vez, o
estranho viajante contador de histórias iria desaparecer após lhe indicar um
caminho incerto. Ele havia fisgado o peixe certo – Horic era demasiadamente
curioso, especialmente com histórias que nunca haviam sido contadas
inteiramente. Não tinha escolhas, procuraria o estranho seja lá onde ele se
metesse. Contentava-se, pois sabia que o próximo encontro, seria o último.